O 10 no futebol é mais do que um número. Foi, anos a fio, uma camisola mítica a destacar o craque da equipa, o seu génio. Foi pele de Pelé, e de verdadeiros maestros como Zico, Platini e Maradona. Portugal teve a sua grande referência em Rui Costa, ao mesmo tempo que Zidane se assumia como sucessor de Platini em França. No Brasil houve Raí, que não vingou, mas depois Rivaldo encantou. E na Argentina muitos foram os que acabaram por ser rotulados de novos Pelusa, como Pablito Aimar e Riquelme, que não chegaram tão alto. A Alemanha teve Matthäus como sua grande referência, mas foi recuando em campo até pendurar as chuteiras como líbero. Em Inglaterra, foi coisa que pouco se criou. Itália teve Il Codino Roberto Baggio e Del Piero, mas mais que dez eram noves-e-meio. No Calcio, criar é missão demasiado pequena para um  fantasista inteiro.

As camisolas 10 perderam o brilho quando outros, craques menores, começaram a usá-las. E os DEZ, verdadeiros altruístas, começaram a refugiar-se noutros números. Houve quem tivesse mantido a tradição, outros que não se importaram com o anonimato. A verdade é que o peso de um número pode ser demasiado difícil de suportar.

Nesta análise, não vamos pensar muito nos números das camisolas, embora em muitos dos casos seja coincidente. Quantas vezes não nos perguntam que tipo de jogador é alguém que chega ao clube x e nós respondemos: acho que é um DEZ! Para nós, esse futebolista tem uma parcela no terreno mais ou menos delimitada, de onde constrói a maior parte das jogadas ofensivas da sua equipa. Pensamos num DEZ e temos por decidido que deve jogar ali, a uns metros da entrada da área, para desmarcar companheiros com assistências ou passes de rotura. Pode não começar exatamente nessa posição, pode pegar na bola um pouco mais atrás, pode derivar daí para os flancos e inclusive chegar na área e marcar, mas a imagem que temos, marcada pelos anos de ouro da sua espécie, não anda muito longe dessa realidade.


No entanto, o futebol de hoje mostra-nos o quanto já estamos ultrapassados. Há outros DEZ, DEZ diferentes, que pisam outros terrenos para fugir aos duplos-pivot ainda tão na moda e à aglomeração de pernas em zonas mais centrais do terreno. Menos físico do que os médios agressivos que agora surgem no eixo e mais apertado no que ao espaço diz respeito, o nosso craque refugiou-se em outras zonas do terreno, ao recuar ou ao aparecer numa das alas.

O jogador mais produtivo até agora no Campeonato do Mundo foi
James Rodríguez. O antigo jogador do FC Porto soma seis golos e duas assistências (Thomas Müller equipara-se com cinco golos e três passes decisivos) e foi utilizado em três dos cinco jogos que disputou em posições mais centrais, enquanto nas restantes começou na esquerda. Frente ao Uruguai, o encontro em que bisou, partiu do lado canhoto para aparecer entre linhas, à entrada da área, atrás do meio-campo defensivo
celeste, para disparar para o golo do Mundial.

Quando utilizado em posições mais centrais, James procurava os desequilíbrios na esquerda, de onde Ibarbo subia para terrenos mais adiantados e onde aparecia o lateral Armero, cheio de vigor físico para correr até à linha final.

A Côlômbia em 4x4x2:

A Colômbia em 4x2x3x1:


Mesut Özil , talvez o jogador mais criativo que existe na Alemanha, alternou entre a direita e a esquerda nos seis jogos já realizados. A mudança de flanco foi causada pelas dificuldades sentidas no encontro com a Argélia, com a zona central a ser bem bloqueada pelos africanos, expondo dificuldades de construção do conjunto de Joachim Low. 

No jogo dos quartos de final, frente à França, o selecionador fez com que Lahm deixasse o meio-campo e passasse a lateral, fazendo entrar Schweinsteiger para a posição 6 e o recordista Klose para o eixo do ataque. Foi necessário arranjar um espaço para Müller, indiscutível, e Özil derivou para a esquerda, remetendo Götze para o banco. Os resultados mostraram que a seleção germânica tinha ficado mais forte, ao eliminar com facilidade os Bleus e, depois, o Brasil nas meias-finais.

A Alemanha da reta final do Mundial:


A situação de Özil é bem diferente da de Eden Hazard na Bélgica. O médio criativo dos Diables Rouges é sobretudo um flanqueador, procurando criar espaços com diagonais para terrenos mais centrais ou rodeando o lateral pela linha de fundo. Em todos os jogos do conjunto de Marc Wilmots atuou na esquerda, com De Bruyne em posição mais central. Não fez um grande Mundial, mas terá vários outros à sua frente.

A influência de Hazard no sistema belga:

Na Argentina, Léo Messi é mais do que um DEZ . É esperado que resolva os jogos, com a sua criatividade ou com a capacidade de drible. Com um livre. Com um remate de fora da área. Neste Mundial, Alejandro Pachorra Sabella colocou-o praticamente ao lado de Agüero durante a estreia frente à Bósnia, mas a decisão durou 45 minutos quando foi obrigado a fazer entrar Higuaín face à parca produção ofensiva. De nove-e-meio , a Pulga passou a um dez de transporte no último terço do terreno, tentando reproduzir algumas das jogadas que o imortalizaram ao serviço do Barcelona.

Os arranques de Messi no esquema argentino:


No Brasil, era a Óscar que se pedia que fosse o braço direito de Neymar. O menino do Barcelona tinha uma missão semelhante à de Messi, mas com uma autonomia ainda maior, caindo nas alas. O avançado do Chelsea jogou em cinco dos seis encontros numa posição mais central, e reclamava-se que fosse o catalizador do antigo futebolista do Santos e também de Hulk, com Fred mais fixo na área. Não foi claramente o seu Mundial, com dois golos marcados (um deles o de honra frente à Alemanha) e uma assistência. No entanto, apesar de ter chegado às meias-finais, o «Escrete» esteve sempre bem abaix o das expetativas. Os problemas não são exclusivos do seu número 10, vêm de mais de trás, com um duplo-pivot que só convenceu na primeira parte frente à Colômbia. Enquanto houve Neymar (quatro golos e uma assistência), o Brasil foi resolvendo os problemas. O pior veio depois.

Óscar e Neymar no onze-tipo do «Escrete»:


Na Croácia, Modric e Rakitic foram duas metades do mesmo cérebro, a jogar à frente dos centrais. A ideia era construir desde trás, privilegiando a posse de bola, mas depois faltou maior criatividade em terrenos mais adiantados. Kovacic ainda é demasiado novo, e as boas ações de Perisic não foram suficientes para levar mais jogo a Mandzukic. No jogo decisivo, frente ao México, o selecionador Niko Kovac fez subir o médio do Real Madrid para terrenos mais avançados, mas a intensidade do México a somar à confiança que já apresentava na altura acabaram por destruir o plano.

A bicefalia croata:


Na Holanda, Sneijder começou o Mundial em baixo de forma, mas com o passar dos jogos revelou-se essencial na boa caminhada da Oranje até às meias-finais. No 3x4x1x2 que Louis van Gaal montou para a maior parte dos jogos - frente à Costa Rica não tinha De Jong e o médio do Galatasaray teve de recuar para o lado de Wijnaldum, gerando assim um 3x4x3 que se apoiava também em Depay como extremo esquerdo - nunca houve dúvidas sobre quem devia municiar a velocidade de Van Persie e de Robben. O  DEZ  terminou o Mundial com um golo (decisivo, frente ao México) e uma assistência apenas, mas não desiludiu na missão que começara há quatro anos, na África do Sul.


Jogando no meio, na esquerda ou na direita, ou até vários metros atrás, como uma espécie de lançador de contra-ataques, o DEZ continua bem enraizado na cultura do futebol mundial. Se olharmos para outras seleções que não as representadas acima, ainda encontramos Valdivia, pouco utilizado no Chile, Honda no Japão, Lodeiro no Uruguai, Bryan Ruiz na Costa Rica, um tal de Pirlo na Itália, Pjanic na Bósnia, Bradley nos Estados Unidos, Feghouli na Argélia e Dzagoev, também a tentar afirmar-se na Rússia de Fabio Capello. Todos diferentes, todos a ocupar zonas diferentes do terreno, mas todos com um talento enorme para criar os desequilíbrios suficientes para desbaratar as defesas adversárias.

Perante um cenário de dificuldades extremas, com meios-campos muito povoados e agressivos, o  DEZ  adaptou-se , transformou-se. Passou a pisar terrenos que antes não eram os seus, a estar no início de tudo às vezes ou no fim de muita coisa, com a obtenção de golos, noutras. O DEZ  clássico, o DEZ  que víamos em Zico, Platini e Rui Costa, já não existe. A sua espécie evoluiu para várias subespécies evolutivas. Como será daqui a quatro anos ?