Brasil e Uruguai perfilados num momento de respeito. Ao longe, no ecrã lá no topo, é Aldyr Schlee na imagem. Foi em sua homenagem o minuto de silêncio que antecedeu o encontro de sexta-feira passada no Estádio Emirates, em Londres, uma incrível coincidência a saudar a vida deste homem que tinha partido na véspera. Brasileiro, adepto do Uruguai e criador daquele que é um dos grandes símbolos do futebol no planeta: a camisola amarela do Brasil.

O nome dirá muito pouco à maioria dos adeptos. Aldyr Schlee morreu a 15 de novembro, perto de completar 84 anos, depois de uma vida cheia. Foi ilustrador, jornalista, professor, escritor. Antes de tudo isso, foi um adolescente que fazia desenhos e decidiu participar num concurso promovido por um jornal brasileiro. O desafio era conceber uma nova camisola para a seleção do Brasil, que queria enterrar de vez as memórias traumáticas de 1950. As memórias do Maracanazo, quando o Uruguai levou o título de campeão do mundo debaixo do nariz de um Brasil em choque.

A seleção equipava então de branco e na tentativa de exorcizar todos os fantasmas do Maracanã decidiu-se mudar também a camisola. A então Confederação Brasileira dos Desportos sancionou uma iniciativa promovida pelo jornal carioca «Correio da Manhã» para o fazer através de um concurso público.

Estávamos em 1953 e Aldyr Schlee tinha 19 anos. Nascido em Jaguarão, Rio Grande do Sul, mesmo na fronteira do Brasil com o Uruguai, trabalhava para um jornal de Pelotas, a uma centena de quilómetros de distância da sua terra natal, a desenhar golos, no tempo em que não havia futebol em direto na televisão e a fotografia também não era acessível a toda a gente. Já vamos ver mais abaixo essas imagens deliciosas de golos transformados em «quadrinhos».

Quando ouviu falar do concurso decidiu tentar a sorte. Não era fácil. O regulamento dizia que o equipamento tinha de ter todas as cores da bandeira do Brasil: verde, amarelo, azul e branco. Aldyr fez muitos esboços, muitas tentativas, algumas usando como «modelos» virtuais jogadores da altura.

Alguns dos esboços de Aldyr Schlee para a camisola amarela, reproduzidos pelo Museu do Futebol

«Fiz mais de cem desenhos. Fiz duas faixas com um x. Fiz um v como o do Vélez Sarsfield. Cheguei à conclusão de que a camisa tinha que ser toda amarela», contou Aldyr mais tarde, citado num trabalho especial do Museu do Futebol, em São Paulo, dedicado à história da «Amarelinha».

Esse especial mostra o processo criativo de Aldyr e pode ser visto a partir daqui.

Ou por aqui, numa ligação mais direta.

Aí se conta como na versão final do desenho Schlee «usou as cores que tinha à mão: camisa ficou em amarelo-ouro e o shorts tornou-se azul-cobalto»: «Não eram exatamente as mesmas cores da bandeira nacional, mas as tonalidades foram aceites, e assim estão no uniforme da seleção até hoje.»

Entre 200 candidaturas, a sua proposta foi mesmo a vencedora. Schlee contou mais tarde ao jornal «Zero Hora» como soube que tinha ganho: «Fui na agência da Varig em Pelotas buscar os jornais do dia. Entre eles, o Correio da Manhã. Na terceira página, lá estava o meu desenho, com a manchete: esta será a nova camisa do Brasil. Fiquei louco. Nem sei como cheguei ao trabalho.»

Camisola amarela com rebordos verdes na gola e nas mangas, calção azul e meias brancas. Esta era a primeira versão do equipamento criado por Aldyr Schlee, que no essencial perdura até hoje, 65 anos depois.

A camisola amarela foi estreada nas eliminatórias para o Mundial 1954 e o Brasil já jogou a fase final na Suíça com ela. Desde então ganhou vida e identidade como poucas. Tornou-se imagem de marca do Brasil, de Pelé à esperança renovada a cada Mundial do país que é pentacampeão do mundo. A aura do «Jogo Bonito», da alegria e do prazer de jogar, são indissociáveis daquele amarelo solar.

Aldyr Schlee ganhou o equivalente a 20 mil reais (4600 euros) com a vitória no concurso, além de um estágio no jornal. Depois seguiu a sua vida, longe de tudo isto. Futebol, só como adepto. E não tanto do Brasil. Ele sempre foi torcedor confesso do Uruguai, paixão que nasceu obviamente da proximidade geográfica das suas origens. Em criança seguia o futebol do Uruguai. «Sou torcedor da Celeste Olímpica», assumiu em 2007 numa entrevista ao «Globoesporte».

No dia do Maracanazo estava numa sala de cinema no Uruguai, contou anos mais tarde o jornal britânico «Independent». O filme foi interrompido para anunciar que o Uruguai era campeão do mundo. Aldyr foi nesse dia um dos poucos brasileiros felizes com a vitória da «Celeste».

A criação da camisola não foi mais que um episódio na vida de Aldyr. Ele fez muita coisa para além disso, foi professor de direito internacional e escreveu mais de uma dezena de livros, entre contos e romances. Ganhou prémios literários, mas nunca alcançou fama nacional. Aliás, dizia que tinha mais reconhecimento no Uruguai.

«Sou bem conhecido no Uruguai. Sou considerado um escritor uruguaio», dizia nessa entrevista ao «Independent», que aconteceu antes do Mundial 2014 e na qual revelava até alguma amargura em relação ao assunto. «Estou farto de falar sobre isso. E vem um bocado tarde. Falam sobre mim por algo que fiz há 60 anos. Depois deste Mundial não volto a falar sobre isso.»

Esse sentimento tornou-se mais amargo com o passar do tempo e a razão é a atualidade política e futebolística brasileira. Em março deste ano, Aldyr Schlee assumiu o divórcio com a sua criação. Ou antes com o aproveitamento que dela fizeram. «A camisa da Seleção foi utilizada na campanha contra a Dilma, como símbolo de nacionalidade. A camisa é a própria corrupção, tem o símbolo da CBF», desabafou numa conversa com o «Correio Braziliense»: «Eu não me arrependo de ter feito (a amarelinha), mas fico indignado com gente mal informada, ignorante. Fazer campanha contra a Dilma com uma camisa que é o próprio símbolo da corrupção no país?!»

A apropriação política da camisola amarela foi generalizada na última campanha eleitoral pelos apoiantes de Jair Bolsonaro, o candidato de extrema-direita vencedor, e essa é uma associação que afastou muita gente, quem está do outro lado da barricada.

Mas na essência a «Amarelinha» é futebol. Puro, como este filme em que Aldyr Schlee fala com uma simplicidade cativante sobre a sua criação, numa campanha promocional de um banco brasileiro antes do Mundial 2014. Dois minutos e pouco que valem ouro. Ouro amarelo.