É outro que vai valer milhões daqui a uns tempos

A frase ecoa pelos corredores, faz ricochete no betão deixado em cru, sem cor, resvala nas placas berrantes que apontam para os sítios, ali perto do acesso ao relvado. E ele, logo ele, falha o domínio no peito do pé esquerdo.

Não era fácil, reconheça-se. Vinha cheia de efeitos em espiral, desgovernada e quase a despenhar-se, traiçoeira como poucas.

O bom do Oscar – o Wilde e não o craque-betinho do Chelsea – é, lá bem no fundo, o culpado de tudo isto. Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde escreveu uma vez, ou talvez várias se contarmos com os rascunhos emendados e com as que repetiu mentalmente a ideia a fim de ver se fazia sentido, qualquer coisa do tipo

Todo o crime é vulgar, assim como toda a vulgaridade é criminosa

O raio do irlandês era um dos muitos que gostavam das frases que engolem a própria cauda, das conclusões pescadinha-rabo-na-boca se aportuguesarmos a coisa, mas deixou-nos esta sentença que, muitas vezes, nos faz aspirar ao génio em toda a gente. Será correcto? Será justo?

Muitas vezes, dizem-se essas frases sem se pensar, como se fosse um mero exercício de lógica barata, como se filosofar fosse só trocar sujeito e predicado outra vez até ao ponto final. Mas os génios não. Pensam cada letra como se dela estivesse dependente toda uma frágil cadeia de ADN. Wilde fez o que todos fazem, mas com sentido.

Uma coisa é certa. Não basta acumular alcunhas nessa luta diária para fugir da vulgaridade. Mas, mesmo assim, Anderson há muitos. Há que ser diferente.

Talisca porque se é alto e magro. 

Yaya Talisca porque se é alto e magro e alguém vê em nós aquele pulmão e força quase sobre-humanos made in Costa do Marfim.

D’Artagnan ainda, já que o treinador atirou uma das suas frases para o ar, praticamente sem pensar, naquele jeito gingão e com resíduos mínimos de lógica. E que, mesmo assim, foi capaz de sobrevoar o Canal da Mancha e despertar a fúria de quem, anedoticamente, aspira a sentar-se na cadeira de Deus.

Eles, o Talisca, o Yaya e o D'Artagnan, chegaram sem saber quem eram, apenas com uma vaga ideia.

Disseram-lhe que era qualquer coisa entre 8, 9 e 10. Uma delas, à vez. Começou atrás, onde não conseguia ouvir e acompanhar, a defender e a atacar, os tempos dos movimentos

Larghissimo… Grave… Adagio… Moderato… Presto… Prestíssimo...

e mandaram-no ir para o lado do ponta-de-lança. Aproveitou marcações defeituosas, ressaltos inesperados, um ou outro livre a jeito, uma grande dose de felicidade e juntou-lhes talento. A capacidade de levar a bola em progressão e drible, e um remate que parece querer finalmente soltar-se, depois de adormecido pelo jetlag

Preencheu o formulário que solicitava toda a sorte do mundo e foi-lhe entregue de bandeja. Os deuses abraçaram-no sem pestanejar, coisa incrível.

Cá, viveram muitos anos, quase felizes, com um Cardozo parecido. Menos móvel. Com menos argumentos técnicos também. Mas alto, franzino, com dificuldades em impor o físico no meio da floresta densa de defesas, à procura insistentemente do pé esquerdo. E, sobretudo, fim de quase tudo e ponto de passagem de muito pouco.
 
Viveram quase felizes! Sempre à espera que deixasse de marcar ou aparecesse qualquer coisa que justificasse a entrada de alguém mais colaborante, útil a pressionar quando se defende, e participativo na construção das jogadas. Era inevitável.

Vai valer milhões!

Talisca é a soma de algumas vulgaridades e talento. Muitas vulgaridades ainda, também, mas não só, por apenas ter 20 anos. O seu treinador, esse, tem uma fé inabalável. Todas as somas têm o seu nome e mais dez. E poucos conseguem demovê-lo de mais essa sua ideia.

Mas e se os golos deixarem de aparecer, se nada mais mudar? Se não acrescentar também ele algo ao  jogo colectivo? Jesus também desiste muitas vezes. Muitas. Não se lembram?

Aí estou com o esperto do Oscar! Endeusá-lo agora, três meses depois, por tão pouco além dos golos é um crime. E temos de continuar a acreditar que se vai transformar em algo maior, porque é muito cedo. O génio tem ainda muito espaço para se manifestar na sua plenitude. 

Podemos aspirar a tal? Deixam-nos?

Se quiser, podemos chegar àquele momento cinematográfico dos dois comprimidos e um copo de água. Aquele com que Wilde nunca deve ter sonhado, literalmente. Na prática, não são mais que realidades alternativas. Virar à direita ou à esquerda? Avançar ou recuar? Sim ou não?

Se escolher o vermelho, vai ficar com um sorriso ainda mais rasgado sempre que Talisca marcar um golo. Se, pelo contrário, preferir o cinzento então viverá a angústia de querer sempre mais. 

O que é que vai ser?

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«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias. Pode segui-lo no     FACEBOOK  e no     TWITTER . O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.
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