Paul Newman disse um dia que tinha as tarefas domésticas bem definidas lá em casa: ele tratava das coisas importantes e a mulher das menos importantes.
 
A mulher decidia onde moravam, em que escola os filhos estudavam e de que forma organizavam as poupanças. Ele preocupava-se com o aquecimento global, o armamento químico e o conflito israelo-palestiniano.
 
Em minha casa acontece também um pouco isso.
 
O que tem uma vantagem: deixa-me muito tempo para refletir. Por isso vou criando uma série de teorias sobre a humanidade.
 
Não digo que sejam boas ou más, mas são minhas e gosto muito delas por isso.
 
Ora uma dessas teorias que gosto de anunciar é que consigo imaginar como as especificidades locais acabarão por praticamente desaparecer dentro de meio século.
 
Em 2064, 2065 no máximo, acabarão por exemplo os sotaques. Diferentes pessoas terão a mesma atitude perante situações semelhantes e até a arquitetura será a mesma por todo o país.
 
Numa escala mais global, os miúdos cometerão menos erros gramaticais na língua inglesa do que na língua local. Gostarão dos mesmos carros, das mesmas roupas e dos mesmos ídolos em todo o mundo ocidental.
 
A explicação é simples e tem nove letras: televisão.
 
A caixinha que mudou o mundo tende a unificá-lo. Hoje conhecemos melhor Nova Iorque do que por exemplo Viana do Castelo, que é uma cidade encantadora, já agora.
 
Sabemos mais da vida de Kim Kardashian do que do vizinho de cima e tendemos a emocionar-nos mais com a morte de Rodrigo Menezes do que a de um primo em segundo grau. Com sorte até conseguimos encontrar um amigo que gosta de futebol americano, de beisebol ou de hóquei no gelo sem nunca o ter visto ser jogado ao vivo.
 
Ora no futebol, digo eu, acontece precisamente a mesma coisa.
 
Vemos mais vezes jogar o Bayern Munique do que o V. Setúbal e conhecemos melhor os jogadores do Chelsea do que da Académica. Sabemos tudo sobre as estratégias de Carlo Ancelotti e pouco sobre as de Lito Vidigal.
 
Atenção, não estou a criticar a televisão. É apenas a constatação de um facto.
 
Por isso também o futebol tende a uniformizar-se. O futebol inglês deixou de ser apenas chutão para a frente, o futebol alemão já não é só físico e até o futebol espanhol perdeu aquela fúria impaciente de querer fazer tudo muito depressa.
 
À exceção das especificidades de cada equipa, que têm uma raíz mais profunda nas ideias do treinador do que na cultura do país, até a discriminação das diferenças do código genético entre um Valencia e um Liverpool se torna um exercício delicado.
 
Este fenómeno tem a ver muito, naturalmente, com a liberalização do mercado de trabalho que levou por exemplo Mancini e Gerard Houllier para Inglaterra, Guardiola para a Alemanha e Mourinho para Espanha.
 
Mas tem a ver sobretudo a ver com a globalização da imagem: com operações semanais de baralhar ideias, conceitos, culturas e genes.
 
Nesta altura, e era a este ponto que queria chegar desde o início, é necessário elogiar a diferença. No futebol europeu de ponta, a diferença está em Itália.
 
Eu sei que é quase pecado elogiar o futebol italiano, e por isso peço já perdão. Já o critiquei muitas vezes e sempre com evidente alegria. A última pode ser vista aqui.
 
Mas nesta altura tenho de destacar o mérito do calcio por ter resistido sempre a importar as ideias dos outros. Tem dirigentes que não existem em mais lado nenhum, treinadores que não existem em mais lado nenhum e conceitos que não existem em mais lado nenhum.
 
Por isso continua diferente de todos os outros e igual ao que sempre foi: feio, chato e até hipócrita.
 
Bem haja por isso. Que Deus o guarde assim por muitos anos.
 
Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias