9 de outubro de 1967. Há precisamente 56 anos morria na Bolívia, assassinado a tiro numa escola da pequena aldeia de La Higuera, para onde tinha sido levado depois de capturado, Ernesto Guevara de La Serna.

O Che, como ficou imortalizado, foi uma das 100 mais influentes figuras do século XX, segundo um estudo da revista Times.

O Maisfutebol recupera, por isso, uma reportagem já publicada e viaja à relação profícua que Che Guevara sempre manteve com o desporto. Ele que foi guarda-redes e treinador, mas também deu um saltinho ao golfe, ao basebol e até ao xadrez.

95 anos após o seu nascimento e 56 depois da sua morte, não páram de surgir histórias sobre Che Guevara. Relatos que o transportam do mito à realidade, que humanizam o ícone e o símbolo de uma geração. A relação estreita de Ernesto com o desporto (na infância, na adolescência e mesmo na fase de guerrilheiro) destapam-lhe uma face menos visível.

E foi esta ligação umbilical, esta paixão, que levou o escritor argentino Walter Vodopiviz à criação do livro Che e os desportos. O Maisfutebol esteve à conversa com o autor, que nos traçou uma resenha mais ampla sobre o desportista Ernesto Guevara.«Ele não jogou apenas futebol. Nos primeiros anos de vida nadava muito bem na piscina do Sierras Hotel, situado na provincia de Córdoba, para onde os pais iam com regularidade. E desde muito cedo se tornou um combatente. Não combatía inimigos nas selvas do Congo ou na Bolívia, mas sim uma asma que o acompanhou até à morte», explica Walter Vodopiviz.

«Foi esse problema que o levou para a natação e o atirou para a baliza no futebol. Ele não podia jogar à frente pois cansava-se rapidamente.»

Perante o ar subitamente irrespirável, Ernesto Guevara lutou. Tornou-se um nadador exímio, um guarda-redes muito razoável e descobriu um talento intrincado para o rugby. Nesta modalidade representou oficialmente três clubes: o San Isidro, o Yporá e o Atalaya. «Ficou conhecido como o Furibundo Serna (sobrenome da mãe), pois era duríssimo», lembra Walter Vodopiviz.

Mais tarde meteu na cabeça a escalada ao Monte Popocatépetl (5.425 metros de altitude) e não desistiu até tocar o cume.

«A sua principal característica enquanto homem do desporto era a obstinação. Podia não ser o mais talentoso, mas compensava essa limitação com a obssessão pelo triunfo. Quando decidiu jogar rugby, nem o amigo Alberto Granado acreditou ser possível e desafiou-o a saltar um muro, simulando uma placagem. Pois bem, o Ernesto não só saltou o muro como repetiu o gesto várias vezes. No final, quis placar o próprio Granado», relata-nos, bem disposto, Vodopiviz.

«Mais tarde jogou basebol em Praga, na Rep. Checa e apaixonou-se por esse desporto. Quando chegou a Cuba, tornou-se um excelente executante da modalidade. E ainda em Córdoba, onde viveu grande parte da infância devido às recomendações médicas - pois essa cidade tem um clima seco e é propícia aos doentes asmáticos - jogou golf e ténis com o pai.»

Não foi apenas nos desportos ao ar livre que Che Guevara se destacou, porém. Segundo Walter Vodopiviz, também no xadrez mostrou «concentração e talento» assinaláveis. «Em pequeno, o mais complicado era encontrar um adversario à altura. Cresceu e disputou duas partidas (em Mar del Plata e em Havana) contra o mestre Miguel Najdorf, um dos melhores xadrezistas de todos os tempos.»

«Só não derrotou o Najdorf porque foi pouco paciente. Arriscou demasiado. No final do primeiro duelo o campeão polaco até quis oferecer-lhe a mesa do jogo. Mas o Ernesto recusou. Considerou que só os vencedores tinham direito aos prémios.»

Ernesto adorava o xadrez. «É um passatempo mas também um educador do raciocinio. Os países que têm grandes equipes de xadrezistas marcham também à frente do mundo em outras esferas mais importantes», defendeu um dia o Che, depois de vencer o campeoníssimo cubano, Rogelio Ortega.

 

Relatos de Granado e o encontro com Di Stéfano

A primeira viagem de Ernesto Che Guevara pela América Latina chegou a Hollywood pela mão do brasileiro Walter Salles. Na película, o realizador acompanha a expedição de Ernesto e Alberto Granado, inseparável camarada, na mota La Poderosa desde Buenos Aires até à península de Guajira, na Venezuela. A perda da inocência em mais de dez mil quilómetros.

Numa linguagem escorreita, Salles explora a evolução da consciência social e política que desabrocha em Ernesto, colocando num plano subalterno as experiências desportivas mantidas pelos dois colegas ao longo da travessia. E foram muitas, conforme explica ao Maisfutebol Alberto Granado, num emocionante testemunho desde Havana, Cuba.

«Jogámos em Iquique, no norte do Chile, e no Hospital de San Pablo, para leprosos, no Peru. O dinheiro era cada vez mais curto e tínhamos de ser muito criativos. Mas a mais marcante de todas as experiências aconteceu na Amazónia, numa pequena cidade colombiana chamada Leticia», recorda Alberto Granado.

Voz trémula, lucidez absoluta, a imponência de uma vida riquíssima a cada palavra proferida. «Chegámos à cidade e apresentámo-nos como treinadores de futebol. As pessoas eram humildes e acreditaram nas nossas credenciais. Como a equipa era fraquinha concordámos em jogar e treinar o Independiente Sporting Club. Era assim que se chamava o clube. Creio que já não existe.»

Ernesto, limitado pela asma, ocupou a posição de guarda-redes. «Era valente, metia a cabeça e as mãos em qualquer jogada.» Alberto tornou-se o goleador da equipa. «Chamavam-me Pedernerita, pois todos conheciam o Adolfo Pedernera, que na altura era o astro do River Plate.»

A experiência em Letícia durou «alguns jogos, cinco ou seis» e terminou da melhor maneira. «Na final da competição marquei um golo e o Fuser [n.d.r. como Alberto tratava Ernesto] ainda defendeu um penalty. A vitória valeu-nos dinheiro e alimentos necessários para chegarmos a Bogotá.»

Na capital da Colômbia, conheceram Alfredo Di Stéfano, um dos maiores jogadores de todos os tempos. «Lembro-me que tudo aconteceu num restaurante. Vimo-lo e não resistimos a meter conversa. Era uma simpatia. Deu-nos dois bilhetes para o amigável entre o Milionários e o Real Madrid.»

Alberto Granado esteve «mais de dez anos» sem ver o amigo Ernesto. «Fui viver para Cuba. Reencontramo-nos em Havana e vi-o pela última vez num jogo de futebol.» Che era já na altura ministro da Economia de Cuba, num governo presidido por Fidel castro.

«Fizemos um jogo contra uns universitários. O Fuser era ministro mas na baliza comportava-se como um guarda-redes doido. Logo no princípio saiu-se aos pés de um espanhol chamado Arias e deixou todos espantados. Era muito competitivo.»

Ernesto Guevara era adepto do Rosario Central e do Sportivo Alta Gracia. O jogador que mais admirava, além de Di Stéfano, chamava-se Ernesto Chueco García, o «poeta da canhota».

[Artigo originalmente publicado a 9 de junho de 2009]