Fernando Santos riu e fez rir, contou histórias, ofereceu conselhos, deu uma lição num tom descontraído e ao mesmo tempo sério. O selecionador esteve na Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa, para falar aos alunos do curso de Desporto.

A ideia era contar o seu trajeto de vida, de engenheiro num hotel no Estoril a treinador de primeiro plano, mas Fernando Santos foi muito mais longe do que isso.

«Ser adjunto é mais difícil do que ser treinador. Um adjunto tem que ser leal, mas ao mesmo tempo não pode ser um yes man. Tem que pensar pela cabeça dele e tem que discutir as ideias dele, porque todos nós pensamos de maneira diferente. Mas no fim, se eu disser que aquela parede é preta, o meu adjunto tem que dizer que é preta, mesmo que esteja a ver claramente que é branca», referiu.

«Se vocês pensarem que não é assim, vão bater muitas vezes com a cabeça na parede. Porque, quando forem adjuntos, não queiram ser líderes. O líder sou eu, o líder é o treinador. E isto é um equilíbrio muito complicado. Não se pode ser um yes man, tem de se pensar pela própria cabeça, mas no fim tem de se perceber que quem decide é o líder.»

Em cerca de uma hora de palestra, Fernando Santos deixou muitos avisos, fez sugestões e mostrou sabedoria. Pautando os conselhos com histórias curiosas da própria vida.

Como por exemplo aquela de quando chegou à Grécia.

«Vocês têm de saber adaptar-se às circunstâncias. Se um presidente vos disser que só têm meio campo para treinar e que só há uma bola no clube, não vão depois queixar-se das condições. Saibam adaptar-se. Por exemplo, quando fui para a Grécia, não percebia nada de grego. No primeiro dia disseram-me que a Grécia era complicada, porque estava muito calor e havia muito trânsito, enfim. Então marquei o primeiro treino para as oito horas da manhã», contou.

«Os capitães vieram falar comigo e disseram que não podia ser às 8 horas, porque a essa hora havia muito trânsito e não conseguiam chegar a tempo. E eu, está bem. Fui ao quadro na parede e meti: Treino às sete horas. Passado um pouco os capitães vieram falar comigo a dizer que afinal podia ser às oito. Depois explicaram-me que o grego vive muito na rua, deita-se tarde e que não gosta de treinar cedo. É cultural. Portanto é preciso adaptarmo-nos às circunstâncias e saber viver com isso.»

Fernando Santos habituou-se desde muito cedo a viver com as circunstâncias. Habituou-se a isso, aliás, desde que ainda não era sequer jogador profissional. O pai obrigou-o a tal quando tinha 17 anos e foi a um treino de captações no Benfica.

«Eu jogava no Oriental e um dia fui convencido por uns amigos a ir fazer um treino de captações para os juniores do Benfica. Na altura estudava na Escola Técnica. Fui e no fim vieram falar comigo: queriam que ficasse para a equipa principal e iam fazer-me um contrato. Eu saí de lá muito contente e fui para casa para contar ao meu pai e à minha mãe, convencido que ia haver foguetes e festa em minha casa. Só pensava nisso: na alegria que ia dar aos meus pais», recordou.

«Sentei-me à mesa para almoçar e disse ao meu pai: Pai, vou jogar para o Benfica. E responde ele: Não vais. E eu: Não vou? Vou, vou, não estou a brincar. E ele: Não vais. E eu: O pai não está a perceber, fui contratado pelo Benfica. Eles até me pagam mil escudos por mês e pagam os estudos. E o meu pai: É pá, já te disse que não, esquece isso. Não vais. Eu comecei a pensar aiiiii, queres ver?! Lá começámos a falar, expliquei-lhe o que aquilo significava, bem, ao fim de uma hora chegámos a um acordo. Ok, então vamos fazer assim: no dia em que chumbares, acabou-se o futebol. Só vais com esta condição, no dia em que chumbares um ano, não há mais futebol. Pronto, fizemos aquele acordo, ele assumiu que me deixava ir jogar e eu assumi que nunca chumbaria, como nunca chumbei. Foi um compromisso que marcou a minha vida.»

Ora a circunstância de não poder deixar de estudar, nem reprovar um ano que fosse, condicionou determinantemente a carreira de jogador de Fernando Santos. Mas o agora selecionador nacional soube adaptar-se a isso, e tirar o melhor rendimento das duas atividades.

«Joguei dois anos no Benfica, no segundo ano o treinador era Jimmy Hagan, que saiu do Benfica e foi para o Estoril. O Benfica tinha 40 e tal jogadores, pelo que era muito difícil jogar na equipa principal, mesmo nas reservas era difícil. Joguei algumas vezes, mas era difícil. A maior parte dos jogadores como eu, como o João Alves, como muitos outros, eram normalmente emprestados a um clube fora de Lisboa», acrescentou.

«O Benfica quis emprestar-me ao Beira Mar e eu disse que não, que a minha vida era em Lisboa, estava no Instituto Superior de Engenharia e portanto recusei. O Jimmy Hagan tinha ido para o Estoril e indicou-me ao clube. O Estoril reuniu comigo em dezembro de 1973 e perguntou-me se eu queria ir para o clube. Respondi que dependia das condições. O Estoril tinha para mim duas vantagens: a primeira é que só treinava à noite, a segunda é que me ofereceram quatro contos por mês, o que era uma fortuna. Pude continuar a jogar futebol e a estudar sem grandes problemas.»

Durante cinco anos, Fernando Santos foi jogador do Estoril e estudante de Engenharia. Acabou o curso em 1977, com 23 anos, e deixou ficar o canudo na gaveta. Mas não por muito tempo.

«Depois de terminar o curso, durante três anos fui exclusivamente profissional de futebol: dois no Estoril e um no Marítimo. Quando estava no Marítimo a minha mãe adoeceu e o médico disse que era importante a minha presença», recordou.

«Nessa altura regressei ao continente e pouco depois o presidente do Estoril telefonou-me a perguntar se queria regressar. Respondi que ia se me arranjassem emprego na área de engenharia. Negociámos um acordo e eu lá fui para o Estoril novamente. Fiz a pré-época, treinei o mês de agosto, treinei o mês de setembro e emprego nada. Deixei de ir aos treinos.»

O selecionador tomou a decisão de não voltar enquanto não tivesse um trabalho. Por isso todos os dias se sentava na receção do Hotel Palácio, onde trabalhava o presidente do Estoril, à espera que este lhe apresentasse o emprego prometido.

«Vinha a secretária do diretor dizer-me que tinha de ir treinar e eu: enquanto não houver trabalho não há treino», acrescentou.

«Um dia a secretária veio ter comigo: Olhe, está aqui um bilhete de avião, você vai para a Madeira. Eu comecei a rir-me: Para a Madeira? Então eu vim de lá agora. Responde-me ela: Não, não, você vai fazer um estágio à Madeira, para em janeiro começar a trabalhar aqui no Hotel Palácio. E assim foi, no dia 5 de janeiro entrei no Hotel Palácio, como diretor técnico.»

A partir daí Fernando Santos passou a ter dois empregos: um no clube, outro no hotel. O que muito o ajudou, considera. O selecionador lembra que numa altura de renovação do hotel, tinha 130 trabalhadores à responsabilidade dele a trabalhar naquele espaço.

«Ser gestor hoteleiro claramente que me ajudou a ser melhor gestor de recursos humanos enquanto treinador. Mas isso acontece com todos, as nossas experiências de vida vão permitindo lidar assim ou assado perante determinada situação. Gerir 130 homens no hotel e mais 30 ou 40 no balneário foi uma experiência fantástica e que me ajudou a ser melhor nas duas tarefas», referiu.

«Em Marcoussis tinha de gerir uma equipa de 70 pessoas, porque não eram só os jogadores, era toda a gente que trabalhava com a seleção. E eu era o diretor de todas estas pessoas. Por isso o mais importante é criar um grupo coeso entre todos. Se todos estiverem unidos em torno do mesmo objetivo, então é possível ganhar alguma coisa. Mas unir toda a gente é responsabilidade nossa.»

Voltando ao hotel, e ao Estoril, Fernando Santos tinha seis anos de jogador-engenheiro quando algo aconteceu: o clube estava mal, falhara a subida à Liga e estava tecnicamente falido. Por isso o presidente pediu ao agora selecionador para ser jogador-treinador de uma equipa feita de muitos jovens e sem grandes ambições. Fernando Santos disse que não, mas indicou António Fidalgo.

«O António disse ao presidente que só aceitava se eu ficasse como adjunto. Como a amizade é muito importante para mim, aceitei. Lá fomos os dois», sublinha.

«O António Fidalgo fez um trabalho excelente e a meio da época foi convidado a ir treinar o Salgueiros. Ele foi e eu fiquei para orientar a equipa seis meses. Fui falar com os meus patrões no hotel e lá disse que sim, que aceitava ficar seis meses. Acabaram por ser seis anos.»

Até que um dia foi despedido. Naquela que ainda é uma das maiores mágoas. Após vinte anos no Estoril, conta, foram dois funcionários que o informaram que já não era o treinador da equipa.

«Curiosamente se não tivesse sido despedido não estava aqui. Eu tinha recebido convites de clubes fora de Lisboa, mas nunca quis ser treinador e sair de Lisboa não era opção. Até que surgiu o Estrela da Amadora. Aí já foi diferente», refere.

«Primeiro fui falar com a minha entidade patronal e consegui ficar em regime de part-time. Mais tarde, numa altura em que já aparecia o FC Porto, meti uma licença sem vencimento que ainda mantenho. Se quiser, posso voltar a trabalhar no Hotel Palácio amanhã, porque estou de licença.»

Certo é que a partir daí, a carreira de Fernando Santos nunca mais parou e o treinador não precisou de voltar a trabalhar no hotel. FC Porto, AEK, Panathinaikos, Sporting, Benfica, PAOK, seleção grega, seleção portuguesa. Uma carreira rica em títulos e rica em experiências.

Mas uma carreira que deu muito trabalho, garante.

«Para se ser génio, é preciso 100 por cento de trabalho e 100 por cento de talento. Para se ser muito bom, é preciso 80 por cento de trabalho e 20 por cento de talento. Mas ser muito bom, dá muito, muito trabalho. Não se convençam do contrário, porque é mentira. É preciso trabalhar muito.»

Para além disso, acrescenta para terminar, ser treinador não deve ser uma coisa que as pessoas procurem por ganância: porque provavelmente não vão ganhar muito dinheiro.

«O que ganham os jogadores é uma grande mentira. Mas é mesmo. A relação oferta-procura é muito desequilibrada e por isso a maior parte dos jogadores e treinadores não encontra clube. Só dois a três por cento dos treinadores ganham no futebol o necessário para viver em exclusivo disso. Mais de 80 por cento nunca conseguirá viver só disto. Só os melhores o conseguem.»

No fim disto tudo tinha passado uma hora: tinha voado uma hora, alias.

Fernando Santos agarrou a plateia com muitas histórias e bom humor. Quem é que disse que ele é demasiado carrancudo?

(Artigo originalmente publicado às 23:52 de 14-02-2019)