A liga portuguesa está cada vez menos portuguesa. Esta é a conclusão de um estudo apresentado pelo Sindicato dos Jogadores que revela que, pela terceira época consecutiva, há uma quebra na utilização de jogadores portugueses, com a percentagem a cair dos 46 por cento da época passada para 43 por cento na presente edição. Nos números disponíveis até meio da época, a percentagem de jogadores nacionais utilizada nos jogos é a mais baixa desde 2011/12. Uma tendência que se alastra à II Liga, onde, apesar dos portugueses ainda estarem em maioria, a aposta no jogador nacional caiu pela quinta temporada consecutiva. Números que fizeram soar os alarmes no Sindicato de Jogadores que, neste sentido, promoveu um debate para discutir o tema, com a participação de José Couceiro, treinador do Vitória de Setúbal [a equipa que mais apostas nos jogadores portugueses na Liga], Armando Evangelista, treinador do Penafiel [a equipa mais portuguesa da II Liga], e de Joaquim Milheiro, coordenador técnico das seleções de formação.

Mas vamos primeiro aos números apresentados pelo Sindicato. Num universo de 251 jogadores da liga principal, foram utilizados na primeira volta 142 jogadores estrangeiros contra apenas 109 portugueses, o que reflete um aumento de três por cento em relação à última temporada [135 estrangeiros/116 portugueses].

Dividindo os dados por grupos etários, os estrangeiros são os jogadores mais utilizados em todos os escalões, com exceção dos mais velhos [mais de 29 anos]. Mesmo entre os mais jovens, isto é, jogadores com menos de 23 anos, os estrangeiros estão em maioria, neste caso, com 40 estrangeiros contra 39 portugueses. Uma tendência que se reforça em todos os grupos etários, menos nos «veteranos» onde se nota um volte-face em comparação com a última temporada, com 28 portugueses contra 24 estrangeiros.

Analisando jornada a jornada, tendo em conta apenas os dados da primeira volta, os estrangeiros estiveram em maioria em todas as rondas entre os jogadores utilizados, desde a primeira até à 17ª jornada. As rondas mais desequilibradas neste sentido foram a 5ª, com 148 estrangeiros e apenas 104 portugueses, e a 7ª, com os mesmos 148 estrangeiros e apenas 102 portugueses. As rondas com mais jogadores nacionais foram a 11ª [114 portugueses], a 15ª [114] e a 16ª [116].

Olhando para esta análise clube a clube, Vitória de Setúbal [média de 10 portugueses e 4 estrangeiros por jogo], Tondela [9/5] e Paços de Ferreira [9/5] são os únicos que, em média, jogam com uma maioria de portugueses nos jogos da Liga. Depois seguem-se Belenenses, Rio Ave e Boavista, que jogam com o mesmo números de portugueses e estrangeiros [7/7], enquanto os restantes clubes jogam todos com mais estrangeiros do que portugueses.

FC Porto e Moreirense são os que revelam maior discrepância, com uma média de onze estrangeiros utilizados por jogo contra apenas três portugueses. Segue-se Benfica com uma média de nove estrangeiros contra cinco portugueses, enquanto o Sporting, no que diz respeito aos três «grandes», está mais próximo da paridade, com uma média de oito estrangeiros e seis portugueses utilizados por jogo.

José Couceiro é, assim, o treinador da Liga que mais recorreu aos jogadores portugueses na primeira volta, mas o treinador do Vitória desvaloriza esse facto. «Para mim, como treinador do Vitória, não há nacionalidades, como não há religiões ou raças. Não me interessa se é português, brasileiro ou russo. Quando estamos no estrangeiro também não gostamos de ser tratados de maneira diferente», referiu. O treinador sadino considera que se trata, acima de tudo, de um «problema do regulador» e defende que «os valores de compensação pela formação têm de ser revistos», sugerindo uma partilha do risco entre o clube formador e o clube comprador.

José Couceiro defende que o caso especial do Vitória também se deve ao ADN do clube que, ao longo da sua história, sempre apostou na formação. «Temos dez a onze jogadores que este ano estão a jogar pela primeira vez na Liga, mas têm de jogar para crescer. Nunca vi um jogador que crescesse sem jogar». E deu o exemplo de André Pedrosa que se estreou na Liga na época passada e esta temporada, com vinte anos, já é um dos habituais titulares no Bonfim. «Jogava abaixo de diesel, agora já joga com turbo-diesel», atirou. A mesma receita que aplicou a João Carvalho, jogador que regressou esta época ao Benfica depois de um ano no Vitória. «Ninguém põe em causa o seu talento, mas só ganhou dois dos catorze jogos que fez no Setúbal. Só repararam nele quando marcou ao FC Porto, mas antes disso perdeu cinco jogos consecutivos e continuou a jogar. Isto de lançar jovens é tudo muito bonito, mas as condições têm de se alterar», destacou o treinador que também foi presidente do Sindicato de Jogadores de 1993 a 1997.

Voltando ao estudo que o Sindicato de Jogadores tem promovido todos os anos, época a época, esta temporada revela uma tendência clara do aumento de estrangeiros utilizados na I Liga. Em 2015/16 os estrangeiros já estavam em maioria, com 131 jogadores utilizados contra 120 portugueses. Na época seguinte, em 2016/17, a tendência reforçou-se em dois por cento [135/116] e na presente temporada, contabilizando apenas a primeira volta, aumentou ainda mais três por cento [142/109].

Para José Couceiro, o grande problema da Liga não está relacionado com o crescente número de jogadores estrangeiros, mas sim com a falta de competitividade da maioria dos clubes que o treinador relaciona com a enorme discrepância na divisão das receitas proporcionadas pelas televisões. «Temos de equilibrar a competição. Fazemos tudo para que três tenham um campeonato e os restantes tenham outro. O que os jogadores querem é ter sucesso. As entidades criadoras de riqueza estão estruturalmente com problemas económicos e financeiros e quem está por fora deste círculo está bem, portanto alguma coisa tem de estar errada. Não pode existir um negócio em que isto aconteça. Quem está por fora gera mais-valias e quem cria a riqueza está na situação em que está. Há uma análise profunda quem tem de ser feita», destacou.

Para Couceiro, mais importante do que estabelecer cotas, é imperativo elevar a competitividade da I Liga. «Isto são números, mas estamos a falar de pessoas. Não podemos analisar isto apenas de um ponto vista matemático ou estatístico. Os jogadores são a base do futebol. O crescimento deles faz-se criando estruturas de qualidade, criando competições melhores e criando mais equilíbrio para poderem chegar a um patamar superior. Mas o que temos estado a fazer em Portugal é criar mais desequilíbrios e isso não tem, em termos futuros, vantagens para ninguém. Tem pontualmente para quem ganha, mas para o conjunto da competição não tem nenhuma vantagem», insistiu.

Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato de Jogadores, também relativiza os números apresentados, mas manifestou-se preocupado com a evidente tendência. «O Sindicato não distingue jogadores nacionais e estrangeiros, mas nesta sala, por exemplo, há uma mulher e três homens com barba. Porque é que só há uma mulher? É nesse sentido que coloco a questão. Temos uma função social em relação aos nossos [portugueses]. O regulador não é só a liga e a federação, somos todos nós. Temos de fazer chegar as nossas preocupações aos reguladores liga e federação. A ideia de que o jogador português é mais caro tem de ser desmistificada», referiu.

II Liga: portugueses ainda estão em maioria, mas o número de estrangeiros também está a crescer

Na II Liga, a maioria dos jogadores utilizados continua a ser portuguesa, mas a tendência dos últimos cinco anos também aponta para uma inversão favorável aos estrangeiros. Atualmente, num universo de 279 jogadores utilizados, 147 foram portugueses [53%] e 132 estrangeiros [47%]. Mas numa comparação com a época anterior, nota-se um acentuado decréscimo em relação à utilização de jogadores nacionais. Na temporada passada, a média na II Liga, num total de 307 jogadores, era de 180 portugueses [59%] para 127 estrangeiros [41%].

A quebra na utilização de portugueses na II Liga é ainda mais evidente se recuarmos até à temporada de 2012/13, em que a maioria dos portugueses era de 69 por cento, bem mais evidente do que os atuais 53 por cento.

No escalão secundário, o escalão etário mais utilizado é o mais jovem, até aos 23 anos, com um total de 146 jogadores, mais de metade entre todos os utilizados [52%], mas mesmo neste caso nota-se uma quebra em relação aos portugueses, mais uma vez favorável aos estrangeiros.

Analisando jornada a jornada, os portugueses estiveram em maioria em dezasseis das dezanove jornadas, mas houve três rondas em que os estrangeiros utilizados igualaram o número de portugueses [9ª 12ª e 16ª]. Aliás, a supremacia dos portugueses é clara até à oitava jornada, mas depois nota-se um equilíbrio constante até ao final da primeira volta.

A nível de clubes, o Penafiel, com uma média de onze portugueses e três estrangeiros por jogo, e Académica, com dez portugueses para quatro estrangeiros, são os que mais recorrem aos jogadores nacionais na II Liga. Seguem-se a Oliveirense, Famalicão FC Porto B e Sporting B, todos com uma média de 9/5. No campo oposto, destaca-se o União da Madeira que, em média, joga com dez estrangeiros e apenas quatro portugueses. A aposta em jogadores estrangeiros é ainda evidente em clubes como Cova da Piedade [9/5], Nacional [9/5], Real Massamá [8/6], Sp. Covilhã [8/6], Leixões [8/6] e Arouca [8/6].

Armando Evangelista, treinador do Penafiel, tal como José Couceiro, também desvalorizou a questão do crescente número de estrangeiros. «Quando cheguei ao Penafiel o plantel já estava formado. O clube dá preferência ao jogador português, pois 20 dos 26 elementos do plantel são nacionais, mas não fechamos portas aos estrangeiros. Sempre que se fala em problemas financeiros, vem-se falar na aposta da formação como a solução para todos os males», referindo, para depois deixar uma questão. «No total temos 38 equipas profissionais. Temos formação em quantidade e qualidade para tornar estas 38 equipas competitivas? Tenho dúvidas. Nesse sentido, não me parece tão grave como isso valores apresentados», destacou.

O treinador do Penafiel considera que, em muitos casos, o aumento do número de estrangeiros na II Liga está relacionado com apostas falhadas dos clubes da I Liga. «O futebol na I Liga é um negócio, mas é um negócio em que se cometem muitos erros. Esses jogadores são depois cedidos aos clubes da II Liga como uma segunda oportunidade de rentabilizar o investimento». Armando Evangelista também considera que é preciso espaço e tempo para se apostar na formação, recordando um episódio quando orientou o V. Guimarães B. «Nem imaginam as criticas que ouvi nesse ano, numa equipa que serviu para catapultar jogadores como Cafú, Hernâni, Josué entre muitos outros», destacou ainda.

Redução na aposta nos portugueses choca com o sucesso das seleções

Apesar da quebra evidente na utilização de jogadores portugueses nas ligas profissionais, a formação continua a dar cartas ao nível das seleções. Um contrassenso que Joaquim Milheiros, coordenador das seleções de formação, explica pela maior aposta na qualidade em detrimento da quantidade. Uma aposta que ganhou um novo embalo com o regresso das equipas B ao futebol profissional. «Os números têm de ser analisados pela qualidade que eles refletem e não exclusivamente pela quantidade. Os números em termos de espaço da seleção nacional, naquilo que é valorização do jogador português e o reconhecimento internacional, o que identificámos é uma evolução. Ainda há um caminho muito longo para percorrer e há um conjunto de estratégias que estão a ser definidas para o futuro que podem ajudar o futebol português a melhorar», destacou em conversa com o Maisfutebol no final do debate.

Para o responsável das seleções dos escalões de formação, a aposta nos jovens tem de ser paciente, não pode exigir resultados imediatos. «Uma árvore tem de ter tempo para crescer, para poder dar os seus frutos, isso é fundamental. Depois encontrar os enquadramentos competitivos para que os jogadores possam continuar a crescer num contexto de exigência, num contexto de desafio que os coloque permanentemente à prova, que joguem com adversidades, para que possam jogar nos limites», destacou.

Neste sentido, as equipas B, na II Liga, desempenham um papel fundamental na visão de Joaquim Milheiros. «Parece-me que as equipas Bs são cruciais para a passagem dos jovens da formação para as equipas A. Há uma decalage de exigência competitiva significativa entre aquilo que é o campeonato nacional de juniores e aquilo que é a nossa I Liga. É um salto muito grande. Temos aqui jovens com muito talento, mas como o contexto que se lhes depara é muito superior às capacidades que têm no momento, esta frustração e insucesso a que estão submetidos diariamente vai levar a que haja um atraso significativo no desenvolvimento. Não quer dizer que o jogador não possa recuperar esse tempo, mas retarda aquilo que podia ser a afirmação do jogador», acrescentou.

Para o responsável pelas seleções de formação, o sucesso a nível de seleções [Portugal ocupa o primeiro lugar no ranking da UEFA de sub-19] também se deve ao acompanhamento continuo que a federação proporciona aos jovens internacionais. «Temos uma seleção que tem um conjunto de jogadores jovens que estiveram associados a todo este percurso de aculturação precoce à identidade de Portugal, no contexto das seleções nacionais. Isto permite que cheguem à seleção A com um número significativo de internacionalizações que lhes permite uma melhor adaptação à Seleção A. Ou seja, há toda uma progressividade, não são queimadas etapas de desenvolvimento. As etapas são respeitadas em função da sua velocidade de crescimento», destacou ainda.

A qualidade tem mesmo de prevalecer sobre a quantidade para Portugal poder competir como outros países formadores. «Temos, atualmente 145 mil jogadores portugueses a praticar futebol nos nossos atuais quadros competitivos. A Alemanha tem cerca de dois milhões de praticantes. São realidades distintas. Temos de fazer das tripas coração para termos qualidade. Vale a penas apostar no jovem jogador português enquanto projeto, enquanto processo. Os bons exemplos, as boas práticas, valem mais do que mil palavras», insistiu.

Joaquim Evangelista concorda que a aposta na qualidade da formação é importante e dá como exemplo o crescimento exponencial do futebol feminino. «Dantes era só o Fofó e o 1º Dezembro, este ano apareceu o Sporting, mas as jogadoras são as mesmas. Qual foi a grande diferença para o crescimento do futebol feminino? A aposta da formação», destacou ainda.