Depois do Adeus é uma rubrica lançada no Maisfutebol em junho de 2013 e dedicada à vida de ex-jogadores após o final das suas carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para valvarenga@mediacapital.pt.

Maisfutebol, Tarantini e Carlitos. Uma conversa animada para um Depois do Adeus especial. O médio do Rio Ave apresentou a sua causa em setembro de 2016 e aceitou o desafio de vestir a pele de entrevistador neste diálogo à mesa. Sem refeições incluídas. 

Rumámos a Barcelos para encontrar Carlitos no Turismo Lounge. O antigo extremo de clubes como Gil Vicente, Sp. Braga, Benfica e V. Guimarães tem 40 anos e apostou num restaurante de qualidade superior quando terminou a sua carreira.

Carlitos investiu uma quantia considerável para montar o espaço, conquistar clientela e procurar retorno financeiro a longo prazo. O percurso não tem sido fácil. Envolveu grande dedicação, dúvidas, lágrimas. Mais dedicação. Mais lágrimas. Mais dúvidas.

«O restaurante vai fazer seis anos. Os primeiros três/quatro anos foram muito complicados. Havia dias em que nem tínhamos dinheiro para ir às compras. Certas noites, eu e o meu sócio fechávamos o restaurante e ficávamos ali no carro, debaixo daquela árvore, a chorar, a pensar no que íamos fazer à nossa vida.»

Veja uma versão resumida da entrevista a Carlitos, realizada em parceria com Tarantini, neste vídeo: 

Com 33 anos, enquanto ajudava o seu Gil Vicente a garantir o regresso à Liga, Carlitos projetava o futuro e aceitava o desafio de se lançar na área da restauração. As noites passadas no Turismo, outrora um bar, alimentaram o sonho. O espaço, assim chamado por ser o antigo Posto de Turismo de Barcelos, tem uma vista privilegiada para o Rio Cávado.

Preparando o adeus aos relvados, Carlitos associou-se a Jorginho, personalidade com carisma e experiência na área, e investiu. Investiu forte. Mal sabia no que se estaria a meter.

«Abrimos o restaurante três meses antes de eu acabar a carreira. Tinha 33 anos, era altura de novos projetos, de pensar na minha vida. Andei a lutar no futebol para ter alguma coisa e isto ocupou-me, não me deixou desesperado em casa, a pensar no que fazer com os meus dias.»

Carlitos agradeceu a ocupação mas admite que não estava preparado para as exigências da área da restauração, onde vários ex-jogadores são mal sucedidos.

«Eu só sabia basicamente sentar-me à mesa e comer. Não percebia nada disto e acreditei a mil por cento no Jorginho. Podia ter corrido mal, podia ter corrido muito mal. Cheguei a uma hora no meio do projeto em que o coloquei em causa. Às vezes, trabalhámos toda a carreira para investir num projeto que não corre bem. Mas pensei, já que estava a meio do caminho, que era para ir em frente.»

Curiosamente, os grandes sinais de alerta só apareceram depois de Carlitos avançar para o investimento avultado.

«Quando abri o restaurante, fui falando com alguns colegas que só diziam: ‘tu não sabes no que é que te foste meter! Tu não sabes o que é restauração’. Mas eu acreditava nas pessoas que estavam comigo. Ainda por cima, foi na altura em que o IVA subiu de 13 para 23 por cento. Arrisquei muito.»

Depois de ultrapassar a zona de tempestade, o Turismo navega agora em mares tranquilos, com um equilíbrio entre despesa e receita. Ainda assim, o antigo extremo não esquece o que ficou para trás.

«Estou muito grato a algumas pessoas em Barcelos que nos ajudaram muito. O nosso objetivo era lançar um restaurante de qualidade em Barcelos, para ser uma referência não na cidade mas a nível nacional. Para se dizer que Barcelos tem um grande restaurante, onde se come bem, com bons funcionários, uma vista fabulosa. Criar essa marca, atrair clientes e só depois recuperar o investimento. Apostei muito nisso.»

Carlitos repetiria a aposta, se fosse hoje? A questão colocada por Tarantini leva um sorriso ao rosto do antigo jogador. Para alertar quem pensa seguir o mesmo caminho, este aceita falar por alto sobre os valores envolvidos num negócio como este.

«Não é um investimento de 100, 200, 300 mil euros. É um investimento muito maior. Se não funcionasse, ia dar ali um rombo nas contas, sem dúvida nenhuma. Se fosse só por mim, já tinha desistido, sinceramente, há muito tempo. O Jorginho é que foi puxando por mim, como campeão que é, e valeu a pena. Por outro lado, gastei muito dinheiro aqui mas soube poupar alguma coisa. Investi praticamente tudo mas tinha ali um pé-de-meia para estar relativamente tranquilo.»

Ao longo do seu percurso como jogador profissional, o extremo foi-se preparando e investiu no setor imobiliário, garantindo bens que lhe conferem algum conforto, para lá do restaurante Turismo: «Fui comprando um apartamento aqui, dois ali, sempre tive essa preocupação.»

Durante este processo complexo, Carlitos chegou a um momento crítico em que decidiu não «colocar mais dinheiro» no restaurante. Felizmente, a pior fase parece ter passado, a reputação é ótima e abrem-se boas perspetivas para o futuro.

O sócio do ex-jogador assume a gestão diária do espaço mas Carlitos não é um mero investidor. Foi aprendendo a arte, desenvolvendo competências ao longo destes seis anos e procura ser uma parte da solução, nunca do problema.

«Vou às compras, vou ao banco, à contabilidade. Só não sirvo às mesas, isso só fiz raramente. A única coisa que faço à mesa é cumprimentar as pessoas. Mas sei cozinhar algumas coisas do menu, sei apresentar o menu. Sei que o prato tem direitas, não se coloca de qualquer maneira à frente do cliente. E tem de se entrar pela direita do cliente»

«Tive cerca de 25 lesões ao longo da carreira»

Gil Vicente, Real Madrid B, Sp. Braga, Estrela da Amadora, Benfica, Poli Ejido, Belenenses e Vitória de Guimarães. Carlos Manuel da Silva Cunha, vulgo Carlitos, teve uma carreira de bom nível.

Extremo de velocidade estonteante, preferencialmente partindo do lado direito, Carlitos começou e acabou em Barcelos, ao serviço do seu Gil Vicente. Passou por clubes de maior nomeada mas, com o tempo, foi perdendo a capacidade de explosão. O corpo foi cedendo.

«As lesões foram o meu maior inimigo. Se não fosse isso, poderia ter sido muito mais do que fui. Aos 29/30 anos, já sabia que as minhas lesões me continuariam a trair. Já jogava com medo, a imaginar que ia fazer um pique e rasgar-me todo. Era desesperante. Tive cerca de 25 lesões musculares e senti que não tinha mais condições para lutar, tive de desistir.»

O antigo jogador recorda o período em que foi perdendo a capacidade para se exibir ao nível mais alto. Recua até ao início de 2007, altura em que, ainda com 29 anos, é contratado pelo Belenenses de Jorge Jesus.

«Notei, quando Jesus me contrata para o Belenenses, que eu já não era o Carlitos que ele pensava. Ainda fui para três anos no V. Guimarães, fiz um primeiro ano fabuloso, mas também me lembro de um jogo em que entrei e saí em dez minutos, devido a lesão. Fui perdendo a magia e a paixão.»

Essa passagem de meia época pelo Belenenses não foi bem vista pelos adeptos do Gil Vicente mas Carlitos regressaria a casa, a uma casa que representou em três ciclos distintos. Despediu-se em 2011, depois de contribuir para o regresso da formação gilista ao escalão principal.

«Quando fui para Belém, fui acusado de muita coisa e as pessoas aqui em Barcelos nunca esqueceram. Acabei por regressar ao Gil Vicente, conseguimos subir de divisão, mas já não me sentia a cem por cento. Decidi terminar, também porque recebi uma proposta para ficar no Gil Vicente como diretor-desportivo. Infelizmente, as coisas depois não se proporcionaram. Fiúsa disse que o Gil ainda não estava preparado para isso, mas não lhe levo a mal.»

Carlitos dedica-se ao negócio na área da Restauração e a um clube de futsal que fundou na cidade: o Clube de Futsal Os Galos de Barcelos.

«Fundei um clube de futsal há dois anos, os Galos de Barcelos, mas é complicado. Sentíamos que Barcelos tinha capacidade para ter uma equipa na segunda, quem sabe no futuro na primeira, mas por alguns obstáculos não deu. Esta época, decidimos apostar só nos miúdos, depois logo se vê.»

O antigo jogador não perde de vista o futebol nem o seu Gil Vicente. Pretende regressar a curto, médio ou longo prazo. Sente que é esse o seu lugar.

«Sinto e sei que o futebol é a minha vida, que no futuro estarei ligado ao futebol. Tive um projeto há três anos – e ainda tenho - para ser presidente do Gil Vicente, mas enquanto António Fiúsa estiver lá, eu não irei contra ele.»

Em jeito de despedida, nesta conversa especial com o Maisfutebol e com Tarantini, Carlitos deixa um conselho para todos os que alimentam o sonho do futebol.

«Conselhos? Para ter cabeça, que isto anda tudo louco. É difícil dizer a um miúdo de 23/24 anos para ter cabeça, porque fala-se de Ronaldos, de milhões para aqui e para ali, mas nos clubes pequenos cada vez se paga menos. É complicado hoje em dia ser jogador de futebol. Mesmo que um jogador ande dez anos na Liga, não dá sustentabilidade para o futuro. Juntam umas coroas mas não chega, têm de fazer alguma coisa depois da carreira. É preciso ter isso em conta.»

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