Quase duas décadas no Benfica deram a João Tralhão uma visão privilegiada do clube ao nível da formação. Em outubro do ano passado, o técnico de 38 anos colocou um ponto final na ligação aos encarnados para se tornar adjunto do histórico Thierry Henry no Mónaco.

Nesta parte de uma conversa de quase duas horas com o Maisfutebol, Tralhão viaja desde a infância no Cacém – com pedras a marcar balizas e o vício do CM – e conta como o Benfica se reafirmou como clube formador.

«Começámos com uma estrutura muito limitada e hoje o Benfica tem uma das melhores academias do Mundo», aponta quem não acredita que voltem a existir gerações de talentos desaproveitadas.

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Chegou ao Benfica em 2001. Para fazer o quê em concreto?

Eu estava na faculdade e havia um protocolo que permitia que os melhores alunos fizessem um estágio nas escolinhas de animação ao fim de semana. Fui um dos melhores alunos na Faculdade de Motricidade Humana e tive essa oportunidade.

Jogava futebol na altura?

Sim. Na altura ainda jogava, na 2.ª divisão B. Mas ao fim de semana dava aulas aos miúdos. Tinha quase uma tripla ocupação. Estudava, dava aulas aos miúdos e jogava futebol no Real de Massamá. Era nível baixo. Entretanto, fui para o Ericeirense e depois desisti de jogar futebol, porque senti que não era o que eu queria e que não iria chegar ao nível que pretendia. Também não era uma ambição que tivesse.

Foi acontecendo…

Sim, foi acontecendo. Jogava mais por jogar, por gosto. Desde os seis anos que jogava futebol federado. Mas na faculdade comecei a interessar-me pelo treino: ganhei essa paixão. Quando terminei o primeiro ano na faculdade e conclui o estágio no Benfica, tudo indicava que ia voltar a jogar futebol num outro clube, mas no mesmo dia em que esse convite surge, liga-me o coordenador das escolas do Benfica.

Já tinha aceitado o convite?

Sim, já. Para continuar entretido. Mas o coordenador perguntou-me se estaria interessado em continuar a fazer o estágio. Disse que sim e abdiquei de jogar futebol. Foi tudo acontecendo naturalmente desde aí. Nesse mesmo ano foi necessário um treinador estagiário para a competição de infantis e entenderam que eu era a pessoa certa.

E conseguiu terminar o curso?

Sim. E essa foi uma das grandes vantagens que tive na minha formação enquanto treinador. Sou um defensor muito marcado sobre as opções que os jovens devem ter. Se puderem estudar e trabalhar ao mesmo tempo, aconselho esse caminho.

Para terem uma base prática também?

Tive um processo de aprendizagem incrível na faculdade, com parte teórica, alguma parte prática, mas sobretudo enriquecedor do ponto de vista científico e de relações. Mas lá está: faltava sempre a parte prática e eu tive essa felicidade: ao mesmo tempo em que estava a estudar, aprendia também no terreno.

O seu irmão, Luís Tralhão, também é treinador [sub-23 do Benfica]. Este gosto vem de onde?

Nós somos meninos de rua. Crescemos na rua, a jogar futebol com os amigos no Cacém.

Que memórias tem desses tempos?

Crescemos a competir com as pedras, o campo era numa subida sem balizas e com quatro pedras: éramos 200 meninos na rua a jogar e tínhamos de ser competitivos para ganhar, porque se perdêssemos saíamos e tínhamos de esperar duas horas para voltar a jogar. Tivemos essa cultura de jogar futebol desde sempre. Somos apaixonados pelo jogo, vemos futebol desde sempre e continuamos a discutir futebol com os nossos amigos como há 25 anos.

Nessas discussões despem a capa de treinador e tornam-se mais adeptos?

[risos] Agora é mais difícil, porque vejo o futebol de outra forma. Antigamente via de uma cor e tínhamos discussões de tardes inteiras. Não chegávamos a conclusão nenhuma, porque os outros viam outra cor. O que acrescento agora à discussão é uma visão mais racional do jogo.

E jogava CM?

Jogava pois! Lembro-me de que o único computador que havia na nossa rua era de um amigo nosso. A maioria dos meus amigos não gostava muito de jogar CM, mas eu, o meu irmão e esse rapaz éramos os únicos que já tínhamos esse gosto. Aos fins de semana, às 7 e meia da manhã já estava a tocar à campainha do rapaz. A mãe dele abria-me a porta, eu entrava e punha-me a jogar mesmo com ele a dormir. Na altura eu já tinha o gosto de comandar e de fazer uma equipa. E não gostava de pegar numa equipa grande.

Pegava num Atlético do Cacém, por exemplo?

Um Atlético qualquer aí da vida. Pegar numa equipa, ter um processo e construí-la. Era um viciado [risos].

Pode-se dizer que a paixão pelo treino, que alimentou na faculdade, nasceu aí?

Não diria. Penso que essa paixão nasceu sobretudo pelo meu perfil enquanto pessoa. Acho que a base de tudo é considerar muito as relações humanas e eu sinto que tenho isso. Desde cedo que percebi que lidar com pessoas e relacionar-me com elas era a minha grande vocação. E mais à frente ensinar.

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O que era a formação do Benfica quando lá chegou em 2001, numa altura em que o clube atravessava uma profunda reestruturação?

Para mim era um mundo que eu não conhecia. Equipar-me no antigo Estádio da Luz ao pé dos gabinetes era normal. Não tinha consciência de que havia condições muito melhores. Sabia que as condições não eram as ideais, mas não fazia ideia se havia outra realidade. Lembro-me de que os nossos escritórios eram perto das rampas. Tínhamos de nos equipar lá e treinávamos nos Pupilos do Exército, que era campo pelado. Não havia balneários, só para os jogadores e eram muito limitados. A dimensão do Benfica nessa altura não era acompanhada pelas condições. Até que apareceu o Luís Filipe Vieira, que teve uma visão. Percebeu que a dimensão do Benfica tinha de ser acompanhada pelas condições necessárias para haver resultados na formação. Começámos com uma estrutura muito limitada e hoje o Benfica tem uma das melhores academias do Mundo.

Inicialmente não teve essa noção, mas depois apercebeu-se de que o Benfica estava muito atrás do Sporting a nível de infraestruturas na formação?

A velocidade com que o Sporting cresceu nessa altura foi um bocadinho mais rápida. Nós tínhamos essa noção e sabíamos que tínhamos de acompanhar essa velocidade. Hoje em dia, penso que todos os clubes em Portugal olham para o Benfica e percebem que a velocidade que têm de acompanhar é a nossa. A nossa quer dizer…

É o hábito…

[risos] São 18 anos de casa. O Benfica é a minha casa e sempre reconhecerei que foi a casa onde me formei como homem e treinador.

Mas sente que as dificuldades que o Benfica atravessava, e que eram transversais à formação, tinham consequências também ao nível da captação de talentos?

Para um pai, o que conta é o pacote completo. Quando aparece um Benfica, um Sporting, um FC Porto, um Sp. Braga, um V. Guimarães ou um Belenenses, o pai quer é o pacote completo. Ao nível do recrutamento, havia uma série de condições que tinham de ser criadas. No Benfica havia muita coisa bem feita, por referências e pessoas muito competentes como o Nené, o Bastos Lopes, o José Henrique, o Bento, o Shéu, o Chalana e o Jaime Graça. Mas era preciso acelerar. E acelerou-se.

Tem ideia do quanto cresceu a formação do Benfica desde a inauguração do Seixal, em 2006, até agora?

Sim. A academia evoluiu tanto quanto aquilo que é necessário para se chegar à equipa principal. Para ter uma noção, o projeto do Barcelona tem 30 ou 40 anos. Os frutos de uma academia como a do Barcelona foram colhidos passados muitos anos à procura de afinar uma máquina que permitisse produzir os jovens mais completos possíveis para o futebol profissional. Sem querer comparar o Benfica com o Barcelona, nem com qualquer outro clube, acho que está nessa linha, de ter uma máquina cada vez melhor para produzir jovens jogadores cada vez mais preparados para o futebol profissional.

(…)

Os resultados são visíveis e já não é de agora. Renato Sanches, Rúben Dias, André Gomes, Bernardo Silva, Félix. Tantos jogadores…

Partilha da visão de Luís Filipe Vieira, que disse há uns tempos que o Benfica estava dez anos à frente da concorrência?

Partilho. Porque estive envolvido no projeto e sei em que nível está. Obviamente que não sei precisar os anos, mas posso dizer que o Benfica está noutro patamar em Portugal.

E lá fora?

Não é possível comparar o contexto português com o britânico ou alemão.

Porquê?

O Benfica está inserido no contexto português, onde a competição surge desde muito cedo. A partir dos oito ou nove anos, os miúdos já começam a competir. Isso não existe em Inglaterra, onde as competições formais só começam a partir dos 16/18 anos. E as regras instituídas também são diferentes. Na Alemanha houve em tempos uma regra – que já não existe – que só autorizava um clube a recrutar jogadores até um raio de 100 quilómetros. Isto não significa que uns estejam a fazer bem e outros mal. Há outros clubes que, se calhar, têm academias extraordinariamente diferentes da do Benfica.

Como por exemplo?

O Manchester City. Aquela academia é uma cidade dentro de uma cidade e, no entanto, o produto não é equivalente ao que o Benfica já consegue produzir. Não é por causa disso que as academias valem mais ou menos. Há uns anos fiz um estágio em Barcelona, numa altura em que ainda não havia o hotel nesta nova La Masia, e uma das conclusões que tirei é que não é preciso muito aparato nem um processo muito complexo para se formar bons jogadores. O que é preciso é um processo muito objetivo e com linhas orientadoras muito bem definidas. E o Barcelona tinha isso: linhas orientadoras bem definidas, sem fugir nem para um lado, nem para outro.

João Tralhão chegou ao Benfica em 2001 e só saiu em outubro de 2018 (FOTO: SL Benfica)

Acredita que é possível a equipa principal do Benfica ser um dia 100 por cento made in Seixal?

A minha parte romântica diz-me que sim. A parte mais pragmática diz-me que talvez. O mundo é global e não podemos fugir a essa realidade. Há oportunidades que não devem deixar de se agarrar. Se aparecer um jogador de elite que ajude, por exemplo, a suportar alguns jovens formados no Benfica, não se pode deixar escapar essa oportunidade.

Essa mescla será sempre importante?

É um pormaior. Há jovens a afirmarem-se no Benfica porque também já há um trabalho de jogadores mais experientes feito por trás. O André Almeida, o Jardel, o Pizzi, o Fejsa, o Jonas. E o Luisão no passado. Isso dá-lhes mais suporte. Por mais talento que um jovem tenha, jogar no futebol profissional tem as suas particularidades. Não é a mesma coisa que jogar na formação.

Os títulos para o Benfica na formação são um objetivo declarado ou secundário inserido no âmbito de uma estratégia que passa por fazer chegar jovens à equipa principal?

Os títulos são uma consequência. Ganha-se títulos quando se faz um trabalho bem feito.

Não está instituída uma visão resultadista?

Há uma coisa que nunca se vai conseguir mudar: a cultura benfiquista, que vem de há muitos anos. O adepto do Benfica gosta de ganhar. No dia em que o Benfica tiver adeptos que não gostem de ganhar mesmo no xadrez, o Benfica deixa de ser o clube que é. Mas acho que a cultura desportiva tem crescido. O adepto benfiquista tem uma cultura mais preparada do que há uns anos. Houve uma tentativa de mostrar que, mais importante do que ganhar ao Sporting ou ao FC Porto nos infantis, interessa promover os jogadores para que um dia possam ganhar-lhes num patamar profissional. Pode parecer algo contraditório, mas às vezes é importante perder com o Sporting e com o FC Porto no processo de formação.

É importante encontrar cenários adversos?

A resistência à frustração é muito importante. Qualquer jogador tem obstáculos quando chega ao futebol profissional e se não conseguir passar por eles quando está na formação vai ter mais dificuldades. É muito importante que as pessoas consigam perceber que, por vezes, os erros de trajeto ajudam os jogadores a chegar à equipa principal do Benfica com uma capacidade mental superior. Há casos de jogadores que não jogavam muito nos patamares deles ou que não ganharam campeonatos nacionais na formação e que hoje são grandes profissionais.

(…)

O adepto por vezes não tem essa leitura em tempo real, mas ajuda ver exemplos como o do João Félix, que há cinco ou seis anos se calhar estava desaproveitado num clube e agora chegou à equipa principal. Houve paciência, tempo e algumas derrotas com ele, como por exemplo na final da Youth League em 2017. E o mundo não foi abaixo. Estes momentos ajudam o adepto a perceber que mais importante do que ganhar no momento é ganhar mais à frente.

Num cenário mais abrangente, Portugal tem ido regularmente a finais em praticamente todos os escalões de formação e ganhou nos últimos anos títulos europeus em sub-17 e sub-19. Trabalha-se hoje de forma diferente na formação do que há dez ou 15 anos?

Não quero comparar gerações – porque a do professor Carlos Queiroz também teve muito sucesso – mas acho que hoje há mais consistência. Se o país está atrasado numas áreas em relação a outros países europeus, no futebol estamos no grupo da frente. Isso já vem de há alguns anos.

Portugal já teve várias gerações algo desaproveitadas. Esse risco já não existe?

Penso que já não existe. O nível de conhecimento no futebol em Portugal está ao nível do que se vê nos melhores países e há uns anos estávamos um bocado atrás. O caminho para o aproveitamento dos talentos não estava tão afinado. Não acredito que uma geração que agora tenha sucesso seja desaproveitada. E este fenómeno global de mediatização também é um elevador grande para os jovens. Há jogadores portugueses que aos 16 ou 17 já são conhecidos a nível internacional. Isso também ajuda a que sejam melhor aproveitados.

Mas sente que agora há também um maior reconhecimento do talento nacional por parte de quem manda nos clubes?

Sim, isso tem de ser. Do ponto de vista económico é uma visão ajustada àquilo que é o nosso país. É mais rentável para um clube aproveitar jovens da formação do que investir todos os anos em jogadores que vêm de fora.

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