Quem só começou a descobrir o futebol inglês na era da Premier League poderá ter alguma dificuldade em perceber a importância do dérbi de Merseyside, que se joga este sábado, à hora de almoço. Afinal, de 1993 para cá, nenhuma das equipas de Liverpool conquistou qualquer título de campeão: três Taças de Inglaterra (uma para o Everton, duas para o Liverpool) e quatro Taças da Liga (todas para os «reds») compõem o palmarés doméstico dos últimos vinte anos para os dois históricos do futebol inglês. Longe vai o início da década de 80, em que a cidade era a capital europeia do futebol: a crise, financeira e desportiva, vivida nas últimas épocas pelo Liverpool, fez com que a elite deixasse de visitar a cidade. Desde 2009 que não há Liga dos Campeões em Anfield, muito menos no Goodison Park.

Porém, esta história está muito longe de começar em 1993: tem mais de 120 anos, ao longo dos quais Liverpool e Everton cimentaram o estatuto de grandes potências do futebol britânico. O total de 27 títulos (18 para o Liverpool, nove para o Everton) faz com que, ainda hoje, a cidade dos Beatles tenha o palmarés mais recheado de Inglaterra, à frente de Manchester (23) e Londres (19). A cidade mantém, ainda, dois recordes especialmente valiosos: esteve representada em todas as edições do campeonato, desde 1888, e tem as duas equipas com mais pontos conseguidos, 4605 para o Liverpool, e apenas menos 17 para o Everton. Os «blues», ou «toffees», são ainda a equipa inglesa com mais golos marcados na I divisão: 6713, mais 200 do que os perseguidores mais próximos.

O legado de Bill Shankly

Quase todos os dérbis começam com uma história de irmãos desavindos, e este não é exceção. Os dois estádios estão separados por menos de dois quilómetros e o Liverpool nasceu, em 1892, fruto de uma cisão no Everton, fundado 14 anos antes. A palavra Anfield que é, atualmente, sinónimo de «reds», começou por ser a casa dos «toffees», que só em 1892, já depois de terem conquistado o primeiro título de campeão inglês, se mudaram para Goodison Park.

Mas se a proximidade geográfica não é excecional, já a relação próxima e, por vezes afetiva, entre os dois emblemas é bastante especial no mundo do futebol. Por diversas vezes, ao longo da história, os adeptos dos dois emblemas de Liverpool uniram cânticos e esforços contra adversários comuns, com as equipas de Manchester à cabeça. Reza a lenda, aliás, que na primeira final da Taça da Liga entre as duas equipas, em 1984, os adeptos, misturados em Wembley, cantavam «Are you watching, Manchester?».

Taça da Liga de 1984:



A proximidade geográfica faz com que Everton e Liverpool sejam, muitas vezes, paixões partilhadas na mesma família. Na antevisão ao jogo deste sábado, publicada no «The Telegraph», a antiga glória do Liverpool, Michael Owen, começava por lembrar isso mesmo: «O meu pai era adepto do Liverpool e jogou pelo Everton. Eu torcia pelo Everton e joguei pelo Liverpool. Tínhamos todas as possibilidades cobertas». A história comum, e o orgulho pelos sucessos perante adversários externos, possibilitou fenómenos curiosos como o facto de, até 1932, as equipas imprimirem em conjunto os respetivos programas de jogo.

Nesse período o Everton era a potência dominante, estatuto que manteve até meados da década de 60. Foi nessa altura que um homem providencial, chamado Bill Shankly, mudou de vez a face do Merseyside derby e, com ela, a do futebol europeu. Sob o seu comando e, depois, sob o do discípulo Bob Paisley, o Liverpool começou por dominar a cidade, ultrapassando o total de títulos do rival. Depois, com a cidade mergulhada em profunda crise económica, estendeu esse domínio à Liga Inglesa, conquistando 11 títulos em 18 temporadas. Finalmente, chamou a si a coroa da Europa, com quatro Taças dos Campeões em oito anos.

Separados e reunidos pela tragédia

O período mais rico da história futebolística da cidade é enquadrado por duas tragédias. A primeira aconteceu no Heysel, em 1985. A morte de 39 adeptos da Juventus, após confrontos com seguidores do Liverpool, provocou o afastamento das equipas inglesas das provas europeias, durante cinco anos.

A sanção impediu que a melhor equipa construída pelo Everton em mais de duas décadas pudesse reclamar um lugar na elite: o grupo montado por Howard Kendall venceu dois campeonatos e uma Taça das Taças, entre 1985 e 87, mas nunca pôde medir-se com os melhores da Europa. E, nesses anos, a relação entre os adeptos ganhou algum azedume, que não chegou para ocultar um dado impressionante: entre 1982 e 1988, Liverpool e Everton repartiram todos os títulos de campeão inglês, juntando-lhes várias finais de Taça. Foi o período de ouro do Merseyside derby, novamente interrompido por uma tragédia: a morte, em abril de 1989, de 96 adeptos do Liverpool, esmagados no estádio de Hillsborough, devido à atuação incompetente das autoridades.

Se Heysel tinha distanciado os dois clubes, Hillsborough voltou a uni-los: os dirigentes e adeptos do Everton juntaram esforços com os do Liverpool, na tentativa de limpar o nome das vítimas, apontadas pelas autoridades como culpadas pela tragédia. Poucos dias depois do sucedido, com a cidade a viver um luto pesado, Wembley viveu a mais simbólica das suas finais de Taça entre equipas de Liverpool:

A final da Taça de 1989


A batalha legal e mediática durou 23 anos, só tendo sido encerrada em 2012, quando um relatório governamental admitiu sem reservas que as autoridades policiais tinham incriminando falsamente as vítimas, ocultando erros próprios. Sob o lema «Justice for the 96», foi uma batalha comum a azuis e vermelhos, sublinhando de novo o lado quase fraternal de um dérbi que, na era da Premier League, perdeu relevância desportiva, mas nunca deixará de ter a dimensão histórica que o coloca entre os mais importantes do mundo.

Algumas curiosidades

O médio Gareth Barry (Everton) vai tentar vencer o terceiro dérbi inglês, depois de o conseguir em Manchester (pelo City) e em Birmingham (pelo Aston Villa).

Steven Gerrard é, de entre os jogadores de atualidade, o que tem mais golos marcados em dérbis de Liverpool (8). Se marcar, isola-se no quarto lugar na lista de todos os tempos, que é liderada pelo galês Ian Rush (25 golos pelo Liverpool) e Dixie Dean (19 pelo Everton).

Se Rush é quem tem mais golos marcados, o jogador com mais dérbis disputados é outro galês: o guarda-redes Neville Southall (41, pelo Everton).

Abel Xavier tem um lugar na história do dérbi de Liverpool: é o único jogador na história que atuou pelas duas equipas na mesma temporada (2001/02). Ao todo, houve 31 jogadores a fazerem a travessia direta: 21 de Goodison Park  para Anfield, dez no sentido contrário. Só dois jogadores (David Johnson e Peter Beardsley) conseguiram marcar pelas duas equipas. 

Com 110 temporadas, o Everton é a equipa com mais presenças, jogos (4301) e golos (6713) no escalão principal do campeonato inglês. O Liverpool está a cumprir a 99ª, mas já detém o máximo de pontos (4605).

Apesar de serem raros os incidentes entre adeptos das duas equipas, o mesmo já não se pode dizer no que se refere a jogadores: desde que surgiu a Premier League, nenhum outro confronto regista tantas expulsões como o dérbi de Liverpool.

Entre 1987 e 2004, o Everton nunca conseguiu acabar a Liga à frente do Liverpool. No entanto, os «toffees» acabaram à frente dos «reds» nas últimas duas temporadas.

Ganhar os dois dérbis no mesmo ano é uma proeza rara: o Everton só o conseguiu em nove temporadas, contra 14 para o Liverpool.

Até este sábado, houve 220 dérbis oficiais entre as duas equipas. O Liverpool venceu 88, o Everton 66 e houve 66 empates.

As maior goleada em dérbis: 6-0 para o Liverpool, em 1935/36. O jogo com mais golos: um 7-4 em 1932/33.