Uma escadaria, um par de chuteiras a bater no chão e o som da multidão em delírio.

No fim de quase duas horas, o filme dá a volta completa para regressar ao ponto em que tinha começado: para regressar ao futebol. Afinal de contas esta é a história sobre um jogador, e a bola anda sempre por ali, em pano de fundo, tratada com carinho pela rivalidade que alimenta paixões.

Mas, vale a pena dizê-lo já, este não é um filme sobre futebol: é muito mais do que apenas isso.

Ruth é uma viagem cheia de pormenores deliciosos pelo império português, pelos anos 60, pela sociedade e pela política, é uma viagem enfim pelo Portugal da ditadura antes da Guerra Colonial.

Realizado por António Pinhão Botelho, jovem de 31 anos, filho da jornalista Leonor Pinhão e do realizador João Botelho, Ruth faz questão de avisar que é um filme «livremente inspirado em factos reais». Mas há muito de factos reais por ali, sem dúvida. E há muito de ficção também.

Leonor Pinhão assinou o argumento e a história tornou-se naturalmente simpática para o Benfica. Todas as referências ao clube encarnado são generosas.

O Sporting, por outro lado, é profundamente escarnecido: é representado por personagens zangadas, elitistas e irritantes, que tratam com distância «a gentalha», que se movimentam com sobranceria e altivez. Nas palavras dos próprios dirigentes, «é o clube com mais classe do mundo», o que soa muito a ironia e arranca gargalhadas.

No fim de contas, o Sporting é até o clube do regime, com adeptos em todas as altas esferas do desporto e da política, enquanto o Benfica é o clube do povo e por isso distante da ditadura vigente.

Fica na memória, aliás, a cena em que Maurício de Brito, então presidente do Benfica, interpretado por Fernando Luís, recusa fazer um elogio ao regime fascista que o advogado diz ser essencial para convencer a Direção Geral dos Desportos a desbloquear a situação de Eusébio.

Exageros à parte, Ruth é um bom filme. Muito bom.

Tem interpretações agradáveis, uma excelente produção, boa caracterização e uma recriação de época encantadora.

A obra filma as referências de então, desde o bairro da Mafalala, ao Scala de Lourenço Marques, passando pelo café Avis ou pela porta do restaurante Gambrinus, em Lisboa, onde Catarino Duarte se prontificou a dar a Maurício de Brito os 400 contos de que o presidente do Benfica precisava.

O resto é história.

São pedaços de uma história tão boa que dava um filme: e deu mesmo.

Acompanha Eusébio desde criança, numa viagem cheia de charme a Lourenço Marques. Passa pelo pormenor da transferência para o Benfica ter sido planeada por dois talhantes, Mário Tavares de Melo e Albertino Malosso - cuja filha Ruth deu nome de código a Eusébio -, o primeiro dos quais é brilhantemente interpretado por Miguel Borges.

Por falar em interpretações, vale a pena lembrar também Fernando Luís, Lídia Franco, Vítor Norte, Ana Bustorff, Rui Morisson, José Raposo, Marco Delgado, Bruno Cabrerizo, Afonso Lagarto ou Henrique Feist. Todos eles passam por lá.

O papel de Eusébio fica entregue ao jovem Igor Regalla, e muito bem entregue.

Voltando à história, interessa dizer que não oculta todas as operações de espionagem e de contraespionagem, nem tão pouco omite os episódios mais recambolescos da narrativa que permitiu a Eusébio transferir-se para o Benfica.

Há por exemplo a chegada completamente incógnita a Lisboa, onde só dois responsáveis do Benfica e dois jornalistas de A Bola – Cruz dos Santos e Nuno Ferrari – o aguardam, há a fuga para Lagos, para se esconder do Sporting, e há até a tentativa de desvio do amigo Hilário, que lhe promete uma ida ao cinema e o leva para um encontro com um responsável leonino: o plano acaba por não funcionar porque um benfiquista na central telefónica deita abaixo as chamadas para Moçambique.

No fim, já se sabe, Eusébio acaba mesmo por assinar pelo Benfica, a troco de 400 contos, que um, benfeitor paga ao Sporting de Lourenço Marques. O jovem de 19 anos veste por fim a camisola encarnada e o filme volta a ser apenas sobre futebol.

Uma escadaria, um par de chuteiras a bater no chão e o som da multidão em delírio.