As imagens antes e as imagens depois. E o durante?

As reportagens das televisões mostram a festa no Jamor antes de Benfica e Vitória, que veio de Guimarães, darem o pontapé inicial.

As mesmas televisões mostram o depois. As pessoas em celebração pela conquista e outras nem tanto, por causa da derrota. E o durante? O durante não se mostra. Vive-se!

E vive-se como se estivesse lá dentro, ainda que daqui de fora do estádio não se consiga ver um palmo da relva verde que dá palco aos artistas.

São as pessoas que ficam que tornam possível todo aquele ambiente no Jamor, como se fosse um festival. Se fosse não, é. Porque cá fora, enquanto as duas equipas jogam perante os que tiveram bilhete e decidiram entrar no Estádio Nacional, há outros homens e mulheres que tornam a experiência de uma Taça de Portugal em algo especial e, sobretudo, algo a repetir.

Não estamos a falar de quem tem negócio. Esses estão lá em trabalho mesmo. Mas há muito adepto comum que participa na festa sem entrar no estádio e quase sem ver o jogo. E entre estes, num dia de Benfica e Vitória, o Maisfutebol até sportinguistas encontrou.

O caminho faz-se consoante os abraços e a cerveja

Há muita gente que entra tarde no estádio. Muita mesmo. Não é uma multidão, é verdade, mas houve algum público que chegou à bancada já com o encontro a decorrer. Haverá vários motivos, mas um sobressai, visto por quem está cá fora: é difícil deixar os amigos.

Que não fiquem dúvidas. Há muito álcool à mistura. O que tolda o discernimento e traz à flor da pele mais emoções.

As duas coisas conjugam-se e adeptos abraçam-se em amizade. A caminhada até à revista da segurança vai-se fazendo consoante a quantidade de aconchegos…e de barracas de cerveja que há até lá.

Há cânticos lá dentro, há cânticos cá fora; há excessos lá dentro, também os há cá fora: a polícia esteve sempre pronta a intervir

A chuva veio dificultar um pouco nesta final de 2016/17, mas o Jamor é para celebrar «até debaixo de água». Há dois tipos de adeptos aqui, porém. Os que trouxeram tudo, num grupo grande: carrinhas, porcos para assar no espeto, mesas, cadeiras, enfim, tudo aquilo que as TVs já mostraram; e os outros, que vieram sem bilhete e sem farnel e aglomeram-se junto às rulotes de bifanas e farturas.

Ricardo Paulino está no primeiro tipo de adeptos. Enquanto o jogo decorre, está a adiantar serviço e a arrumar algumas coisas numa carrinha de caixa aberta. Ao lado, duas dezenas de pessoas, acomodadas em cadeiras e ainda com as mesas cheias do que restou de um grande almoço.

O grupo chama-se Amigos da Águia, e é do Cacém. Enquanto uma parte foi para a bancada, outros ficaram debaixo de uma lona. Como Ricardo.

«Tinha bilhete lá para dentro, mas preferi ficar cá fora. Por causa do convívio e porque precisamos de muita mão de obra aqui! Ainda para mais em tempo de chuva. Tenho de cá ficar fora, para ajudar. Alguém tem de ficar cá a cuidar das coisas. Sempre que se vem cá, é um espetáculo. É a festa da taça e depois o futebol também faz parte.»

Ricardo Paulino colocou as coisas do Jamor no seu devido lugar: portanto, primeiro a festa, depois o jogo. Assim seja…

Como muitos outros que encontrámos e falámos, este grupo teve de guardar local no Jamor. «Estamos cá desde sexta-feira. Estamos aqui à vontade, temos televisão, temos tudo. O que se faz para quando regressarem os outros? Tentamos ter aqui uma buchazinha para o pessoal levar para casa. Depois, a hora a que vamos embora depende se ganhamos, ou não.»

No mesmo grupo, surge José Oliveira. Mais velho do que Ricardo, facilmente se percebe que é um dos principais dinamizadores. «Estes aqui até são lagartos, palavra de honra!», atirou este homem, benfiquista.

Ainda que empregue o termo pejorativo pelos quais os rivais tratam os sportinguistas, José Oliveira sublinha que tem «respeito pelos outros, como não podia deixar de ser».

Ricardo Paulino e José Oliveira

Mais acanhados, os dois sportinguistas lá vão dizendo que vieram pela festa e convívio com os amigos no Jamor. Um deles confessa: «Eu gosto mais de ciclismo, de futebol nem tanto.»

Há golo no Jamor e todos os do Benfica que estavam a fazer alguma coisa, param para abraçarem quem está ao lado. Há um replay disto logo a seguir, quando sabemos por um televisor pequeno que serve 20 pessoas que Salvio fez o 2-0.

«Sabes o que quer dizer? Que a tua mulher estava tramada!»

Cá fora, funciona um pouco como lá dentro. Há bandeiras, há cachecóis, há cânticos. E quando o jogo está prestes, prestes a começar, há três aviões militares a sobrevoar o relvado do Estádio Nacional.

«São os drones da força áerea», solta um adepto animado. Um instante depois, com a água que cai, homens ao longe gritam para um grupo que virou costas ao lume: «Olhó porco, pá! Não vês a chuva?».

Não, a água não salvou o animal: o bicho já tinha as costelas bem à mostra.

Descemos da entrada da porta da Maratona para o golfe do Jamor. Um local de grande concentração de negócios: um dos maiores neste domingo, os impermeáveis a 5 euros. É nessa rua que ficam muitos adeptos e eles vão-se conhecendo; seja para pedir um cigarro, seja porque a menina é bonita e o rapaz atrevido; seja pelas duas coisas.

Há piropos que são irreproduzíveis. Diz que agora até são crime. Mas quando este homem soltou uma dessas frases atiradiças, com piada africana pelo meio, a mulher riu-se e respondeu-lhe: «Ó pá, sabes lá tu! Once you go black, you never go back! Não falas inglês? Olha, quer dizer que a tua mulher estava tramada!»

Ele acende-lhe um cigarro, ela agradece, todo o grupo se ri e ela, com a amiga, continuam rua abaixo.

Dez minutos sem saber nada e os «grandes adeptos» do Vitória

Continua a chover. Estar cá fora é ouvir, também. Há zonas em que é mais difícil estar: há muitas TVs com o som alto no mesmo sítio em que há rádios cujos relatos chegam desfasados das imagens. O jogo chega-nos primeiro aos ouvidos do que aos olhos, por isso há quem procure o sítio ideal para acompanhar a partida.

Ainda assim, há quem esteja desligado do que se passa no relvado.

José Barros nunca tinha vindo ao Jamor e quis perceber como é. Está abrigado numa rulote porque a chuva cai com força. Nesta altura, está 0-0 entre Benfica e Vitória e nem José Barros, nem quem o acompanha (outro homem e duas mulheres, no que faz presumir que são dois casais) veem o jogo, embora se oiça o relato ao fundo e as bancadas ao longe.

Chama-se guarda-sol, mas valeu tudo para fugir à chuva

Talvez pela inexperiência de vir aqui ou pelo aspeto encharcado do repórter, José Barros olha de lado e desconfia. A carteira de jornalista dá-lhe alguma segurança, embora peça que não se grave as declarações: «Vamos falar só», diz.

«Vim sem ter bilhete. Mas para a próxima vou lá para dentro. O ambiente aqui é espetacular. De onde vim? Do Norte! Vim de Braga.»

As cores não enganam, é fácil entender por quem torce José Barros. Mas no Jamor estava também o Vitória. A proximidade e rivalidade com os de Guimarães vem à baila, mas este bracarense atira logo: «Não quero saber nada disso. Sou do Benfica!» De poucas palavras, continuou pela mata do Jamor até ao finalzinho. Volta a estar ao nosso lado quando o Vitória reduz.

Já há gente a descer para a Cruz Quebrada, adeptos dos dois clubes, inclusive. Alguns preferem parar e olhar para as bancadas do Jamor. Vê-se pouco, vê-se quase nada. Mas ouve-se.

Há um grupo de benfiquistas que percebeu que foi golo do Vitória. E ficou ali.

Escuta-se... Estes rapazes estão sem bateria nos telefones. Passam dez minutos sem saber nada. A acompanhar a câmara aérea em cima do relvado para perceber de que lado está a bola, a ouvir quem canta.

Devem ser uns 87 ou 88 minutos e há um enorme barulho na bancada do Benfica. Minutos mais tarde, um ainda maior. Terá acabado. Acabou mesmo. Começam as pessoas a sair. Benfiquistas e vitorianos.

Adeptos do Benfica celebram o 2-0, de Salvio

Os do Benfica que ficaram cá fora já celebram e tratam de acomodar as coisas para os que lá vêm, até porque a chuva, este ano, dificultou. Para os da Luz, foi a 26ª Taça de Portugal, a 11ª dobradinha e já se ensaiam cânticos com isso mesmo.

Os primeiros do Vitória a sair vêm apressados e um pouco cabisbaixos. Mas o Jamor é muito diferente. Lá dentro e cá fora, como já percebeu.

E no meio de um ambiente de festa, mesmo com toda a água que corria por ali, um benfiquista atira para um grupo de adeptos de Guimarães, que vai a passar. «Nós somos os maiores, mas vocês também são grandes, pá!»

A Taça? A Taça é isto. A Taça é o Jamor.