Percorreu quase meia centena de países e já perdeu a conta ao número de jogos que observou. Falamos de José Guilherme Chieira, antigo scout do FC Porto e uma das principais referências do scouting português.

Os conhecimentos adquiridos no Championship Manager transportaram-no para o scout profissional ligado a clubes. Do Sporting, onde cresceu na companhia de Aurélio Pereira até ao FC Porto, clube onde esteve durante oito anos. 

O Maisfutebol conversou com o olheiro de 45 anos. Uma viagem pelos primórdios do seu percurso, desde as passagens por Vitória de Setúbal, Académica e Panathinaikos até à chegada aos dragões. Foi, por exemplo, o responsável pela validação das contratações de jogadores como Alex Sandro, Jackson Martínez, Otamendi, Alex Telles ou Brahimi. 

Entre algumas considerações sobre o que é o scout e como deve funcionar no seio de um clube profissional, Chieira encheu-nos de boas histórias: recordou a exibição de Érik Lamela num Boca Juniors-River Plate e confessou que chegou «a ser bombardeado com gás pimenta» num jogo da Copa São Paulo.

(Caro leitor, a entrevista está dividida em quatro partes. Pode acompanhar o resto nos links abaixo assinalados). 


PARTE II: Chieira, ex-scout FC Porto: «Andámos três anos a tentar trazer o Jackson»
PARTE III: José Chieira: «Não há uma fórmula mágica para ser scout»
PARTE IV: Chieira: «Num jogo da Copa São Paulo fui bombardeado com gás pimenta»

Maisfutebol: Como é que descobriu o futebol?

José Chieira: Além de brincar um bocadinho a jogar futebol, quando era miúdo, o início de qualquer atividade ligada ao futebol começou com o Championship Manager [CM]. Já foi há mais de 20 anos. Sou péssimo em datas, mas deve ter sido por aí. Basicamente, jogava o jogo, era um treinador virtual como qualquer outro e estava registado na base de dados dos treinadores virtuais de vários países. Perguntaram-me se estava disponível para começar a participar no scouting e na criação de uma base de dados das equipas portuguesas. Fiz um teste que consistiu na análise do plantel do Marítimo e em 15 dias foi fácil decidir.

MF: Mas chegou a jogar futebol?

JC: Sim, cheguei a jogar. Praticava muitos desportos e ao mesmo tempo estudava. Os meus pais condicionavam um pouco as práticas desportivas e a disponibilidade para as mesmas. Tive de fazer escolhas. Nasci em Coimbra e fui para Lisboa com 16 anos, porque entrei na faculdade mais cedo. A partir daí foi fácil tomar uma decisão. Tinha muitos amigos que jogavam e tive sempre uma relação muito próxima com o futebol. Íamos para Santa Cruz, na Sereia, onde era o campo de treinos da Académica e, em vez de ir à catequese, ficava lá das 9h da manhã até à hora em que acabava a missa (risos).

MF: Considera importante ter jogado futebol no desempenho da função que tinha no Championship Manager?

JC: Claro que sim. Considero que se calhar fui vítima, no bom sentido, de um processo muito prematuro de scout. Desde muito cedo, que consegui transportar toda a sensibilidade do jogo para a análise da parte técnica individual. A entrada para o CM, tinha 20, 21 anos, obrigou-me a ter uma abordagem mais analítica do jogo. O facto de ter jogado e de ter conhecimentos e sensibilidade, permitiram-me, muito rapidamente, perceber que estava num contexto novo e num espaço muito particular para permanecer ligado ao futebol.

MF: Em que consistia, de facto, a sua função no CM?

JC: Basicamente tinha de «matar» tudo o que era futebol. O que se pedia? Pedia-se informação, não só dos jogadores com uma discriminação muito rigorosa em várias vertentes, mas também da parte contratual. Também tinha de reunir informação das equipas técnicas. Nessa altura, já havia detalhe na análise do treinador e de todos os profissionais que faziam parte do clube, incluindo a direção.

MF: Como é que se chegava a essas pessoas?

JC: Tive sorte. Quando olho para trás… Nessa altura, nem toda a gente tinha acesso à Internet. Felizmente tinha Internet em casa e consegui, nos seus primórdios, criar uma dinâmica proactiva. Procurava as pessoas, não só através do meio tradicional, mas também através da Internet. Era obrigado a ver imensos jogos de vários escalões, porque estávamos na fase de absorver tudo o que era informação. Ainda não era conhecimento, queria-se acumular muita informação, tanto pela observação com os próprios olhos, como pela observação do resto da equipa que estávamos a criar. As pessoas queriam estar ligadas ao jogo e aproveitámos isso para criar uma situação de pirâmide, como forma de alimentar a base de dados.

MF: Como se filtrava a informação?

JC: Não era fácil, não era fácil. Depois aparecem os «Tó Madeiras». É uma história engraçada, que resulta das ineficiências que podem existir até nos mecanismos do scouting. Até num contexto de clube pode acontecer. É impossível controlar tudo. Tentávamos, tal como se faz nos clubes, criar mecanismos de cruzamento de informação, ou seja, filtrar tudo de forma a que quando a informação chegasse à parte de cima, fosse credível. A própria forma de trabalhar a base de dados é muito complexa. Não permite uma colaboração ao mesmo tempo, não podem estar duas pessoas a editar o mesmo jogador simultaneamente. Isto torna o processo muito complexo. Em relação ao Tó Madeira… um tipo candidatou-se como colaborador, era de Gouveia e podia dar informações do clube. Ele deu as informações e estas foram importadas para a base de dados, escapando ao primeiro controlo no momento em que saiu a primeira versão do jogo. Passado um dia pensámos “Isto é uma loucura, o tipo de Gouveia é espetacular”. O Tó Madeira era ele, junto com os amigos (risos). Tornou-se um fenómeno porque tem um nome comercial. É uma tarefa muito complexa, porque não se pode controlar todos os instrumentos do processo.


 

O fenómeno do CM, Tó Madeira, foi explicado por José Chieira

MF: Não sentiam que o vosso trabalho estava a ser usado por clubes ou por outras pessoas?

JC: Acho que isso era um dano colateral, era uma crise de crescimento com consequências positivas. Era um reconhecimento de que estava a ser feito alguma coisa. Não digo de qualidade, porque era um processo de scouting primário, apenas criávamos informações e referências. Não era um processo de conhecimento, por uma simples razão. Uma coisa é trabalhar neste tipo de base de dados fora de um contexto de clube. Num contexto de clube, cada análise tem um custo e, num clube como o FC Porto, uma conversa circunstancial pode ter consequências de 30 ou 40 milhões. O CM criou uma dinâmica de organização e gestão de informação que não existia em Portugal. É normal que os outros agentes do mercado, clubes, treinadores ou empresários, aproveitassem. Era abordado por muito gente e apercebi-me de que o nível a que trabalhávamos não era nem bom nem mau, porque simplesmente ele não existia em Portugal.

MF: O scouting era um espaço pouco desenvolvido em Portugal?

JC: Sim, e o tempo acabou por me dar razão. Na altura, sem saber, o trabalho que fazíamos era trabalho de um departamento de scouting. Fruto da implosão do jogo, as pessoas que colaboravam em cada país tornaram-se parte de um fenómeno incrível. Não só da parte técnica, mas também da parte de organização, gestão de informação e da parte de networking para alimentar essa base de dados. Assim, de repente, praticamente do nada, pessoas muito novas criaram um departamento de scouting que, na sua génese partia de Inglaterra e tinha pessoas no mundo inteiro. Fiz verdadeiramente parte da primeira base de dados mundial quantitativa, não só de jogadores.

MF: Entretanto começa a colaborar com o Sporting…

JC: Eles tinham uma estrutura com muita dificuldade em gerir informação. Por coincidência, a nossa colaboração começa por aí. Funcionou como uma parceria. Comecei a sair com os scouts mais antigos do clube, por amizades em comum, e eles começam a perceber que a dinâmica de gestão de informação e de rede era diferente. Até aí o CM conseguiu transportar-se para o futebol: criou um paradigma de scouting que não havia em Portugal.

MF: Que recordações guarda desse período?

JC: Tive a enorme sorte de partilhar conhecimentos, aliás, de absorver. Eram situações brutais para a minha idade e para o patamar em que estava. Saíamos de Lisboa às 6 da manhã para ir ver um jogo de infantis a Chaves ou aqui em Matosinhos ao Leixões. Criei uma dinâmica de estar no terreno e comecei a perceber os feedbacks desse mesmo trabalho. Não tem nada a ver com o trabalho fora do clube, o que me fez pensar que o scouting valia a pena num contexto de clube. Já tinha os instrumentos que me foram proporcionados pelo CM para poder aportar uma estrutura de um clube.

MF: Nessa altura conjugou o trabalho no Sporting com o trabalho no CM?

JC: Durante vinte anos, de uma ou de outra forma, estive sempre ligado ao CM. A par de um italiano, era o colaborador estrangeiro mais antigo. Comecei antes da pessoa que nesta altura é o CEO da empresa. Foram muitos anos.

MF: Quantos anos esteve com o Aurélio Pereira no Sporting?

JC: Estive uma época a trabalhar no futebol jovem e, entretanto, surgiu a possibilidade de passar para o futebol sénior do Vitória de Setúbal. Entrei num patamar do departamento de scout, onde fazia análise coletiva e individual. O meu trabalho nesta área começou verdadeiramente aí. Coordenava o departamento de scout, criado pelo Jorge Jesus, era responsável pela zona sul e ainda fazia análise de adversários. Foi assim que iniciei o meu percurso profissional ligado aos clubes.

MF: Do Vitória de Setúbal passa para a Académica.

JC: Sou de Coimbra, mas foi uma coincidência. Tive vários convites, mas a Académica convidou-me para criar um departamento de scout. Ofereceu-me um contrato de três anos e juntei o útil ao agradável. Era o coordenador do scout, não tínhamos muito recursos, mas faz parte do nosso crescimento perceber como podemos otimizá-los. Foi um desafio brutal. Mesmo para o próprio clube, do ponto de vista financeiro, houve situações de alavancagem que nunca tinham existido. Isso também foi possível pela abordagem diferente ao mercado.

MF: Que tipo de abordagem era essa?

JC: Tínhamos de ser pragmáticos para transformar a Académica num clube de I Liga. O processo da Académica era muito nacional, tinha de o ser. Para fazer uma aposta em jogadores de qualidade, de fora, era necessário conhecê-los e ter dinheiro para os pagar. Houve exceções, como o caso do Marcel que permitiu alavancar a parte financeira e a parte desportiva. De janeiro a dezembro salvou a Académica de duas descidas de divisão, portanto, foi um bom negócio para toda a gente.