«Agora não dá muito jeito para falarmos. O melhor será na quarta-feira, entre as 18 e as 19h30. Eu vou ter de sair mais cedo do Hospital porque tenho jogo e podemos falar nesse intervalo.»

Medicina e andebol. Andebol e medicina. A vida de Pedro Seabra tem-se divido entre as duas paixões, de forma pacífica e com reconhecido sucesso em ambas.

Comecemos pelo andebol. Só porque é, em primeira análise, aquilo que nos leva a falar com o jovem de 26 anos. Na última época, Pedro Seabra sagrou-se campeão nacional pelo ABC de Braga, foi eleito o melhor jogador do campeonato, e, numa época de sonho dos bracarenses, ajudou o clube a vencer pela primeira vez a Taça Challenge – terceira mais importante competição europeia da modalidade.

Agora a medicina. Ao mesmo tempo que somava estes títulos individuais e coletivos ao currículo desportivo, Pedro Seabra concluiu o curso e fez o exame de acesso à especialidade, entrando naquela que desejava: Ortopedia.

Para nós é fácil dividir os dois mundos. Um parágrafo aqui. Um ponto final ali. E até podemos avançar para a época em curso e continuar a fazê-lo.

Desde setembro, o central do ABC cumpriu o sonho de jogar na Liga dos Campeões e regressou à seleção A de Portugal; o interno do serviço de Ortopedia do Hospital de Gaia, por seu turno, viu a sua tese de mestrado ser publicada na conceituada revista americana The Physician and Sportsmedicine.

Por mais cómodo que seja para nós dividir, é injusto para Pedro Seabra, que apenas soma competências e mérito em duas carreiras tão exigentes. «O desporto e o trabalho são ambos alta competição e exigem o melhor de nós», resume. Mas vamos ser diretos, quão difícil tem sido conciliar resultados desportivos e profissionais?

«Não posso dizer que tenha sido fácil, porque não foi. Mas é fundamental fazê-lo, sobretudo nas modalidades amadoras. E é exequível. Basta ter força de vontade, dedicação e os objetivos bem definidos quanto ao que se quer fazer da vida», descreve, numa conversa telefónica mantida com a MF Total a caminho do pavilhão Sá Leite, onde iria defrontar o líder FC Porto, horas depois de ter deixado a bata no hospital.

De pequenino... se pensa no futuro

Começámos por 2016, mas Pedro Seabra teve de começar a gerir estes dois mundos muito antes. Dois? Ele acrescenta um terceiro. «Sempre acreditei que a minha vida seria feita entre o andebol e a medicina. Mas nunca deixei a minha família e amigos para trás. Sempre soube conciliar tudo. Talvez tenha perdido horas de sono e algum lazer que outros amigos tinham, mas o andebol, o sonho da medicina e as pessoas nunca ficaram para trás», garante.

19 anos nisto. Natural de Aveiro, Seabra iniciou-se aos sete no andebol no S. Bernardo, tendo passado duas épocas no Sporting – ainda com idade júnior, mas a jogar também na equipa sénior -, antes de rumar a Braga, onde cumpre a sexta temporada.

E apesar de lhe ter sido concedido o estatuto de atleta de alta competição – tem mais de 100 internacionalizações nas seleções jovens e 15 nos AA -, Pedro Seabra Marques não precisou dele para entrar em Medicina, como ambicionava. Ainda que esse estatuto lhe tenha sido útil para fazer uma mudança importante. «Entrei no curso em Coimbra, e utilizei o estatuto para mudar para o Porto, para ser mais fácil conciliar com os treinos», assume.

Chegado ao ABC, o central encontrou um clube organizado para dar todo o apoio para que os atletas consigam conciliar o desporto com os estudos, e isso é algo que sempre enaltece.

«Uma das coisas que me dá mais orgulho no percurso que fizemos no ano passado é que 90% dos jogadores estuda ou tem um curso superior. Isso é importante para melhorar a imagem dos atletas de alta-competição», acredita.

«O clube tem uma grande sensibilidade para a promoção das carreiras duais e o sucesso mostra que é possível manter o nível desportivo», exalta ainda.

Fazer da carreira dual uma causa

Além de o praticar na sua vida, sempre que tem oportunidade, Pedro Seabra faz questão de defender a promoção da viabilidade da carreira dual. «O desporto pode ser um complemento brilhante para o sucesso noutras áreas», sublinha o médico-andebolista.

«Eu defendo essa causa por dois motivos: porque acho que os atletas de qualquer modalidade devem preparar o futuro, uma vez que aquilo que ganhamos enquanto competimos não nos salvaguarda o futuro para termos uma vida tranquila; e porque acredito mesmo que é possível conseguir conciliar tudo», garante.

Apesar do percurso, o jovem assume que «ainda existem entraves logísticos» a complicar quem pretende seguir dois caminhos em paralelo. «Há pequenas medidas que podiam ser implementadas, nos horários, por exemplo, que poderiam ajudar os atletas a manterem os bons resultados académicos».

«Mas começa a haver maior sensibilidade para esta questão e soluções para resolver alguns problemas», salienta de imediato.

Para mudar a realidade, contudo, o andebolista realça a importância de os desportistas mostrarem que ela é benéfica também no mercado de trabalho. «Nós, atletas, temos de mostrar que vale a pena apostar em nós. Eu acho que empregar um atleta de alta-competição traz muitas vantagens, pelas competências que trazemos em termos de organização, compromisso e espírito de sacrifício, por exemplo. Mas se os atletas não mostrarem vontade de progredir, é normal que haja reticência», nota.

Chegar «em ombros» (de colegas e adversários) aos EUA

O mais recente capítulo de sucesso profissional de Pedro Seabra foi a publicação de um estudo feito por si na revista americana de medicina The Physician and Sportsmedicine, na qual, mais uma vez, juntou as suas duas paixões.

Contando com a indispensável colaboração de colegas de equipa, mas também de adversários – num total de 50 jogadores analisados –, Pedro Seabra fez um estudo inovador sobre o impacto do andebol nos ombros dos atletas, detetando diferenças entre o ombro dominante [utilizado para o remate] e o não dominante. 

«Sou privilegiado por ter fácil acesso a andebolistas, o que me permitiu fazer um estudo engraçado. Existiu sempre uma grande compreensão e fair-play, e todos me facilitaram o trabalho», elogia o médico, sublinhando que a publicação do trabalho foi «uma pequena conquista num longo percurso» que ainda tem para fazer na área.

Três anos só para o andebol

Após quase duas décadas em modo «dual», Pedro Seabra revela à MF Total um novo passo que se prepara para dar, e que, parecendo contrariar aquilo que foi dito até ao momento, é entendido como um prémio por todo o trabalho feito nestes anos.

«Agora que entrei na especialidade, vou ter a possibilidade de fazer uma interrupção na medicina para me dedicar inteiramente ao andebol. Pedi uma licença sem vencimento que já foi aprovada e, pelo menos durante três anos, vou estar focado só no andebol, o que me pode permitir obter melhores resultados», revela.

Com as ideias bem organizadas, Pedro Seabra sublinha que durante esta interrupção, poderá manter-se ligado à medicina - «fazendo pós-graduações, ou estudando por mim» - mas que a ideia passa por dedicar-se mais aos treinos, num momento em que começava a ser «mais difícil conciliar uma especialidade tão exigente como a Ortopedia, com o andebol de alto-nível».

«Ainda sou novo e tenho tempo para recuperar este tempo», defende, de olhos na carreira que vai seguir depois de deixar o andebol.

E se já conseguiu sucesso internacional na medicina, esse poderá ser um caminho também no andebol, para o atleta que até conta com um título de vice-campeão europeu sub-20 (2010), e foi campeão do mundo universitário em 2014, sendo eleito o MVP da competição.

«Jogar no estrangeiro é uma possibilidade, mas há outras», aponta. «Esta época cumpri o sonho de jogar na Liga dos Campeões e, se ficar em Portugal, vou querer repetir esse feito. Se sair, os campeonatos de França e da Alemanha são aqueles que mais me atraem», confessa ainda.

Pelo que se percebe do seu percurso até agora, o futuro só pode ser risonho para Pedro Seabra, que há muito tempo começou a prepará-lo para cumprir, etapa a etapa, tudo aquilo que deseja.

«Não vamos roubar mais tempo, que já vimos que ele é bem precioso. Boa sorte para o jogo», desejamos, sabendo que o FC Porto ainda não perdera na temporada. «Vamos fazer por vencer», garante-nos entre sorrisos.

Horas depois: ABC 30-28 FC Porto. Alguns vão dizer que não teve nada a ver com a conversa com a MF Total.