Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

O único português a vencer a Volta a Portugal nos últimos sete anos, e o herói da edição deste ano da prova, numa mostra de sacrifício e de superação, Rui Vinhas inscreveu o seu nome a amarelo e a sangue no ciclismo nacional.

O ciclista da W52-FC Porto tem uma relação especial com a prova rainha do ciclismo nacional, que lhe deixou marcas na memória e no corpo. Foi na Volta que viveu o melhor momento da carreira, com a vitória em 2016, e também o mais difícil, dois anos depois: a queda que o deixou inconsciente e os 120 quilómetros que fez a seguir, contra a vontade do médico, e em que o fantasma do sucedido a Joaquim Agostinho se somou às dores que sentia. Na mente, além do filho pequeno, que não queria deixar sem pai, uma missão: continuar em prova até ao final. E conseguiu.

Rui Vinhas não queria ser o vencedor da Volta, não almejava subir ao pódio no último dia vestido de amarelo, não foi para isso que se ergueu da maca em que o colocaram todo ensanguentado. O objetivo era ajudar Raul Alarcón, o líder da equipa, que viria mesmo a ganhar. Rui Vinhas é mesmo assim, um ciclista que trabalha para a equipa, e que tem muito orgulho nisso.

Em entrevista ao Maisfutebol, o atleta, que acabou de fazer 32 anos, pedala pelas memórias dos momentos mais marcantes dos 22 anos de carreira e aponta as metas para o futuro, numa altura em que se confessa entusiasmado com os novos desafios que a subida da equipa ao segundo escalão da UCI vai trazer.

Rui Vinhas na Volta a Portugal 2016

Voltámos atrás, às primeiras pedaladas, numa altura em que dava uns pontapés na bola com os colegas da escola, «mas não era disso que gostava». Rui Vinhas preferia as duas rodas, primeiro para as brincadeiras de miúdo, e depois a bicicleta que herdou do padrinho mudou tudo. «Comecei a ganhar aquele bichinho e os meus pais lá me deixaram entrar para o ciclismo».

Natural de Sobrado, Valongo, terra de tradição no ciclismo, e com familiares ligados à modalidade, as primeiras corridas foram «aos 9, 10 anos, naquelas provas locais». Devorava as provas de ciclismo que davam na televisão, a acompanhar os ídolos Lance Armstrong e Jan Ullrich.

Mas no ciclismo, para começar, não basta vontade e talento, é preciso investir, e para isso o apoio da família foi indispensável. «Uma bicicleta das que nós utilizamos custa entre cinco e dez mil euros e as dos miúdos já andam acima dos dois mil, três mil euros. Além disso, é preciso comprar capacete, sapatos… todos os equipamentos. Isso fica bastante dispendioso».

«Foram os meus pais que me deram a bicicleta», conta o ciclista. Viram o potencial? «Arriscaram», diz Rui Vinhas.

«Às vezes quando se espera muito, é quando se falha mais…», aponta, e explica com sinceridade: «Eu, quando era miúdo, não era nada de extraordinário, mas, aos bocadinhos, fui acreditando, acreditando, e, com bastante luta, com bastante trabalho, consegui concretizar o meu sonho e chegar a um patamar que não estava à espera, ao topo do ciclismo português».

A palavra «trabalho» surgiu muitas vezes durante a entrevista. É o mote da carreira e do sucesso de Rui Vinhas.

Equipa da W52-FC Porto na Volta a Portugal 2017

Depois dessas primeiras corridas, nunca mais parou. Terminado o 9.º ano, Rui Vinhas deixou a escola e foi trabalhar com o pai. «Ele dava-me tempo para treinar. Treinava durante a manhã e trabalhava de tarde».

Em 2011, chegou a profissionalização, na LA, mas no ano anterior já tinha feito a primeira Volta a Portugal com a seleção de sub-23. «A partir daí foram surgindo alguns resultados, poucos, porque eu era um ciclista mais talhado para trabalhar para os colegas», aponta Rui Vinhas.

Venceu o Grande Prémio do Dão, em 2015, já com a camisola da W52, e 2016 foi apelidado pelo ciclista como «um ano de Ouro». A época começou com «bons resultados», e só ficou melhor ainda com a vitória na Volta a Portugal.

«Desde que comecei a ser ciclista pensava sempre na Volta a Portugal e não perdia uma. Vencer era um sonho e eu consegui chegar lá. Sinto-me muito orgulhoso por isso», conta com um entusiasmo não contido.

«Nós, portugueses, temos um carinho especial pela Volta. É um ambiente à parte das outras corridas, tem muito mais público a aplaudir e o calor humano faz vibrar mais os ciclistas. A Volta é a Volta… estar presente já é uma satisfação muito grande. Conseguir vencer, como eu… Acho que nunca mais vai sair da minha memória, vai marcar-me para o resto da vida», adianta Rui Vinhas, que, embora reconheça que «é bastante difícil» voltar a vencer a prova, promete: «Enquanto lá estiver irei lutar para que algo mais surja».

Vitória na Volta a Portugal de 2016

Na edição seguinte da Volta, Rui Vinhas deixou de ser protagonista. «Tive que fazer o meu papel de trabalhar para o Alarcón», explica. Um papel que não lhe desagrada.

«Gosto de contribuir sempre para a vitória dos meus colegas, sei fazê-lo bem, e sou fiel no que toca ao meu trabalho», garante Rui Vinhas, que já viu os efeitos desse trabalho pelo outro lado.

«Quando vesti a camisola amarela na Volta, os meus colegas foram incansáveis, não me falharam em nada. Vencer com uma equipa extraordinária ao meu lado, a receber de volta toda a contribuição que dei durante todos aqueles anos, ainda mais motivação me dá para os ajudar e deixa-me orgulhoso do meu papel de gregário [ciclista que trabalha para o líder da equipa]».

Rui Vinhas destaca a importância do coletivo num desporto que muitas vezes é visto como sendo individual. «Só quem anda lá no meio é que sabe. Nós precisamos sempre da equipa, sozinhos é quase impossível», afirma, e não hesita em dizer: «Para mim, muitos ciclistas que não ganham provas têm mais valor do que alguns que ganham. São eles que fazem a diferença nas equipas e não é por acaso que a nossa equipa tem dos melhores trabalhadores a atuarem em Portugal».

Foi nesse espírito que Rui Vinhas se levantou no dia 6 de agosto, depois de ter ficado inconsciente na sequência de um choque com um carro de apoio na 5.ª etapa da edição deste ano da Volta a Portugal.

«Quando despertei, já os bombeiros me estavam a amarrar na maca, a primeira reação que tive foi pedir a bicicleta porque tinha que ir ajudar o Raul Alarcón. Foram as primeiras palavras que disse», explicando em seguida que não se lembra de nada disso, mas que foi o que lhe contou o irmão, que é o mecânico da equipa, e o diretor Nuno Ribeiro [ex-ciclista e vencedor da Volta em 2003].

Momentos após a queda, a receber assistência médica

Rui Vinhas pode não se lembrar dessas palavras concretas - «acho que não estive bem em mim durante esse dia todo», explica -, mas recorda-se de outras e do sentimento de missão a cumprir que o impelia a continuar.

«Quando o Alarcón me viu, disse que eu não estava em condições, e os outros colegas igual, mas eu disse que ia fazer o que pudesse e que, enquanto conseguisse, ia estar ali ao lado deles porque sei que precisavam de mim. E, dia após dia, um bocado limitado, como é normal, consegui cumprir os meus deveres. Conseguir ajudar a equipa nas condições em que eu estava é o que me dá mais orgulho», diz o ciclista, que admite que ainda fica «um pouco sensibilizado a falar do assunto».

«Um ciclista sofre todos os dias, estamos habituados, mas não da forma como sofri nesse dia», conta.

Rui Vinhas com Raúl Alarcón depois da queda

A primeira memória que Rui Vinhas tem desse momento, e tem ainda bem presente, foi a conversa com o médico, já uns minutos depois da queda, que o tentou dissuadir de continuar. «Ele falou-me do caso do Joaquim Agostinho, que morreu por causa de uma queda idêntica. Meteu-me medo, assustou-me de uma forma um bocado drástica».

«O que me meteu medo foi pensar no meu filho, só pensava nele e comecei a chorar. Chorei quase o resto da etapa. Podia acontecer o pior e ele, a melhor coisa que tenho no mundo, ainda tão pequenino [fez dois anos em setembro], podia ficar sem pai por causa de uma corrida. Mas nunca pensei em parar, achava que tinha que ir… sentia que conseguia ir», recorda.

«Normalmente quando temos quedas destas, desistimos, mas numa Volta a Portugal, uma corrida para a qual trabalhámos tanto… Eu estava tão obcecado com a Volta que o meu subconsciente dizia que eu tinha que continuar, e assim foi», explica.

Convencido de que «não tinha traumatismo craniano», porque se «sentia normal», disse isso ao médico com tanta veemência que ele lá o liberou, depois de o diretor Nuno Ribeiro se ter responsabilizado, mas deu-lhe uma indicação precisa: «Se sentisse algo fora do normal, parar porque teria que ir de imediato para o hospital».

Rui Vinhas fez então os 120 quilómetros até à meta, «com muitas dores», sobretudo no ombro, que, tantos meses depois, ainda não está totalmente recuperado, com a camisola rasgada, com as lágrimas a caírem pelo rosto, misturadas com o vermelho do sangue que lhe pintava a face e outras partes do corpo.

«O que impressionava mais quem olhava para mim era o sangue. Eu via que as pessoas ficavam um bocadinho assustadas, mas não tinha bem a noção. Só vi fotos depois», conta, sem sombra de arrependimento pelo esforço.

Em prova após a queda

«Não me arrependo. Sofri, mas valeu a pena. Em termos coletivos tínhamos tido etapas menos boas e acho que a minha atitude foi um exemplo e deu mais força a todos. No final conseguimos a vitória da Volta em individual, por parte do Raul Alarcón, e a vitória por equipas».

Cruzada a meta, no final dessa etapa acidentada, foi altura de ir ao hospital e os exames mostraram que estava tudo bem, tirando umas escoriações e uma luxação. «No final do dia já me sentia melhor, embora com bastantes dores, mas o dia a seguir ainda foi pior, com mais dores ainda», recorda.

A visita do filho deu-lhe «mais força», assim como a presença do presidente do FC Porto, Jorge Nuno Pinto da Costa, no hotel logo na manhã do dia seguinte. «Até me arrepiei quando o vi entrar na sala do pequeno-almoço, fiquei bastante emocionado».

Esse dia era de descanso na prova, mas Rui Vinhas voltou à bicicleta para treinar e estava irredutível na decisão de continuar na Volta até ao fim, ou seja, fazer mais cinco etapas. Aos poucos o corpo foi melhorando, e a cabeça estava determinada. «Sabia que ia conseguir terminar, só não conseguia se tivesse mais algum azar».

Os companheiros apoiaram-no, e o apoio do público continua mesmo depois da prova ter terminado. «As pessoas falam-me muito dessa queda. Dizem que eu tive uma atitude de louvar, com espírito de sacrifício», dizendo que lhe foram contando que o seu exemplo foi usado como «inspiração» em «várias equipas de futebol amador, e mesmo no basquetebol do FC Porto». «Diziam que a minha determinação mostrou o quanto, por vezes, temos que sofrer para termos as vitórias».

A chegada a meta, no final da Volta, em Fafe, foi marcada pelo «alívio de ter corrido tudo bem para a equipa» e por um «enorme orgulho». «Foi um sentimento quase tão grande como o de ter ganho a Volta em 2016», garante Rui Vinhas.

Deixando o passado, e olhando para o futuro, Rui Vinhas espera «estar na melhor forma no ano que vem, e com algum destaque nas provas internacionais, quem sabe, tentar a vitória numa etapa».

Estas portas internacionais abriram-se ainda mais com a promoção da W52-FC Porto ao segundo escalão da UCI, notícia que se soube no dia em que Rui Vinhas falou com o Maisfutebol e o ciclista não escondia o entusiasmo. «Para mim, é o cumprir de um sonho. Conseguir chegar ao segundo escalão com uma equipa familiar, ainda melhor. Acho que vai ser bastante bom».

«O que nós gostávamos era de conseguir a participação numa grande Volta, mas é bastante difícil logo no primeiro ano», confiante de que ainda assim «vai ser um projeto aliciante e bastante bom para o ciclismo português».

É a primeira vez, desde 2008, que uma equipa portuguesa chega ao escalão Profissional Continental, depois do Benfica, e Rui Vinhas espera «que seja um primeiro passo de muitos e que outras equipas sigam as pisadas da W52-FC Porto para subirmos o patamar do ciclismo em Portugal».