Quem vê a tranquilidade com que Modric pauta o jogo da Croácia que chegou à final Mundial perdida neste domingo para a França, não imagina o quão tumultuosa foi a infância do Bola de Ouro da competição que decorreu na Rússia no último mês.

O mago que deixa sempre a bola jogável e que transportou muito do que foi a alma croata num percurso histórico até ao jogo decisivo, é o mesmo que, com seis anos, era mais uma criança a viver numa pensão para refugiados na cidade costeira de Zadar.

Mas nessa altura, para trás já ficavam as memórias fortes de um menino, filho de um mecânico de aviões do exército e de uma costureira, que perdeu a casa após ataques de milícias sérvias. Uma criança que, aos seis anos, em plena guerra da Croácia, viu as mesmas milícias matarem-lhe o avô e outros seis familiares.

Esse passado, porém, é algo que Modric prefere não abordar, como fez questão de salientar quando chegou a Inglaterra, aos 23 anos - «revisitar o passado não levaria a lugar algum», disse então.

O tónico tem de ir, por isso, para o passado como futebolista. E esse já tinha muito para contar quando Luka Modric se tornou reforço da equipa então treinada pelo espanhol Juande Ramos.

Mas voltemos à Croácia. Em 2002, no último ano de júnior, Modric, muda-se de Zardar para a capital croata, para jogar no Dínamo Zagreb. No primeiro ano como sénior, segue por empréstimo para o campeonato bósnio, onde se impõe no Zrinjski e conquista logo o título de melhor jogador do campeonato.

Percebendo o diamante que ali tinha, mas considerando que ainda não seria o momento certo para o integrar na equipa, o Dínamo faz Modric regressar à Croácia.

Modric foi novamente cedido, desta feita ao Inter Zapresic. Resultado? Aos 19 anos impõe-se e é eleito o jogador revelação da Liga croata, ajudando o clube da cidade de Zapresic a chegar ao segundo lugar.

Durante essas duas épocas de empréstimo, Modric mostrou argumentos suficientes para ser chamado à casa-mãe. Continuou a fazê-lo com a camisola do Dínamo, onde nos três anos que ali jogou, conquistou três campeonatos, duas Taças e uma Supertaça da Croácia.

Na última época antes de seguir para a Premier League, foi mesmo eleito o melhor jogador do campeonato, saindo para o Tottenham, a troco de 21 milhões de euros.

No centro de uma disputa entre Mourinho e Villas-Boas

Nos Spurs, Modric continuou a crescer e, dos cinco anos passados no clube, destaque para a época 2009/10, quando contribuiu de forma decisiva para a primeira classificação de sempre do Tottenham para a Liga dos Campeões.

Em cinco épocas, Modric fez 160 jogos, marcou 17 golos e mostrou futebol mais do que suficiente para chamar a atenção de José Mourinho, que o fez viajar para a capital espanhola. Isso só aconteceu, contudo, após um longo braço de ferro com o seu antigo adjunto, o também português André Villas-Boas, que considerava Modric uma peça fundamental no projeto que tinha delíneado para o Tottenham.

Acabou por levar a melhor o gigante de Madrid, onde Modric chegou para um meio-campo onde ia rivalizar com jogadores como Xabi Alonso, Özil ou Khedira, além de um Kaká já em fase descendente da carreira.

Na capital espanhola, a influência do cerebral jogador não demorou a fazer-se sentir. Em cada uma das primeiras duas épocas pelos blancos, Modric fez mais de cinquenta jogos, indiferente à troca de Mourinho por Ancelotti no banco madridista.

À beira de entrar na sexta época consecutiva no Real Madrid, Modric pode orgulhar-se de ser um dos jogadores que esteve nas quatro Ligas dos Campeões conquistadas pelo clube nos últimos cinco anos, vencendo ainda o Campeonato do Mundo de Clubes em duas ocasiões, a Supertaça Europeia três vezes, além de uma Liga Espanhola, uma Taça do Rei e duas Supertaças de Espanha.

Brilho pela Croácia num momento em que é olhado de lado no país

Neste domingo, Modric viveu o momento mais alto com as cores da Croácia. E não deixa de ser curioso que tudo isto surja num momento em que o capitão croata, que se estreou pela equipa da camisola aos quadradinhos em 2006, é alvo de muitas críticas no seu país.

Porque num país com uma história recente, mas muito intensa, de enorme nacionalismo e orgulho depois dos anos de conflito que assolaram toda a região dos balcãs, aos heróis não basta ser sérios. E Modric é acusado de não o parecer ter sido, num caso de corrupção que envolve um antigo presidente do Dínamo de Zagreb, Zdravko Mamic, e dirigente da federação croata.

Modric é testemunha no caso em que o ex-dirigente foi acusado também de evasão fiscal e desvio de fundos, e de 2016 para 2017 mudou o seu testemunho, algo encarado como uma forma de defender alguém que é visto como o símbolo de tudo o que de pior existe no futebol da Croácia e que valeu a Modric uma acusação de perjúrio.

E essa ligação de proximidade – que é factual porque Mamic era dirigente e presidente do Dínamo de Zagreb enquanto Modric jogou no clube – abalou de forma séria a imagem que o povo croata tem do seu capitão, tendo levado, inclusivamente, a pedidos para que Modric fosse impedido de voltar a vestir a camisola da Croácia.

Prevaleceu o futebol, ainda que isso possa ter afastado alguns adeptos da equipa nacional que conseguiu o melhor resultado de sempre. E a verdade é que é impossível imaginar o futebol croata sem o perfume trazido pelo camisola 10.

A FIFA mostrou isso mesmo ao atribuir-lhe o prémio de melhor jogador do torneio, decisão que poucos terão coragem para contestar.

E assim, depois de ter sido eleito para a equipa ideal do Euro-2008 - ano em que se afirmou decisivamente na seleção -, depois de ter sido considerado pela UEFA o melhor médio da época 2016/2017 e de integrar a equipa ideal do mesmo organismo em 2015, 2016 e 2017, e após ter conquistado também a Bola de Ouro no Mundial de Clubes, Modric recebeu a distinção que terá, provavelmente, o sabor mais agridoce da sua carreira.

Venceu a Bola de Ouro do Mundial após uma final em que saiu derrotado, num momento em que nem o título de Campeão do Mundo apagaria a condenação pública de que é alvo no seu país.

Olhando para a forma como Modric desvalorizava o seu passado complicado, será seguro afirmar que a forma como o vêem na Croácia não irá afetar o seu jogo. E isso é uma excelente notícia para quem gosta de futebol e se deleita com a forma como o médio croata o torna tão simples quanto belo.