Seja uma benesse de 15 lugares de estacionamento por uns trocados ou um passeio a cavalo à beira-mar, contemplamos com enternecedora pacovice cada excentricidade.

«Está bem, mas é preciso ver que a Madonna faz muito pela imagem Portugal. Ela tem muitos seguidores nas redes sociais…», diz um deslumbrado de serviço ao virar de cada redação.

Pois, se a bitola é essa: Casillas é maior.

Sozinho tem 25 milhões de seguidores no Facebook, 13,4 no Instagram e 8,5 no Twitter – Madonna tem 18, 12,7 e 2,3 milhões, respetivamente.

Se somarmos os seguidores dos três maiores clubes nacionais, o guarda-redes do FC Porto sozinho tem mais do dobro ou mais do triplo do alcance, consoante a rede. Pelo que, por aí, estamos conversados.

E se Madonna tem lugar de relevo na história da música, San Iker tem-no igualmente na do futebol.

Além de maior do que Madonna, Casillas mostrou-se também mais forte – mentalmente, pelo menos – do que José Mourinho, ao ganhar a mais recente batalha comunicacional ao outrora mestre dos mind games.

Nos últimos tempos, foi alvo de sucessivos remoques do seu ex-treinador no Real Madrid. Manteve-se mudo e quieto, até que no domingo à noite reagiu; e esta terça-feira de manhã Mourinho foi despedido.

«Segundo um diário português, alguém disse que um jogador como eu (37 anos) está no final da sua carreira. Completamente de acordo! A minha pergunta para esse jornal: no caso dos treinadores, quando e em que momento se vê que já não podem treinar uma equipa?», escreveu no Twitter.

Foi o pobre futebol do Manchester United que afastou Mourinho do cargo, naturalmente. Mas, convenhamos, a mensagem de Iker foi eficaz e não podia ter timing mais a propósito.

Casillas é também dos melhores da Liga dos Campeões.

Na última semana, antes de ser galardoado na gala dos 80 anos do jornal Marca, mesmo com um FC Porto de recurso, ajudou ao triunfo na Turquia, que levou os campeões nacionais a tornarem-se na melhor equipa das 32 da fase de grupos (com 16 pontos). Enquanto isso, como quem não quer a coisa, bateu mais um recorde: 100.ª vitória na prova milionária – nisto, só Cristiano Ronaldo não é maior do que Iker, que é quem tem mais jogos (177) e mais minutos (15 877).

Em termos coletivos, desde que há Champions, só Real Madrid (155), Barcelona (142), Bayern de Munique (132) e Manchester United (117) têm mais jogos vencidos.

Juventus (91), Arsenal (83) ou Chelsea (77) têm menos vitórias do que Casillas. FC Porto (79), Benfica (35) e Sporting (14) também. Só mais um exemplo: o histórico Liverpool tem metade dos triunfos de Iker (50).

Casillas é também o mais consagrado futebolista que alguma vez jogou em Portugal.

Folheiem os livros de história, revirem o baú e procurem lá bem no fundo, que não encontrarão palmarés semelhante: um Mundial e dois Europeus de seleções, três Ligas dos Campeões, um Mundial de clubes, duas Taças Intercontinentais…

Se números e conquistas não vos convencerem, vejam a qualidade que empresta à baliza do FC Porto e que faz dele ainda hoje, entre os postes (ressalve-se), um dos melhores do mundo na sua posição. Ou então recorram ao youtube e recordem defesas de antologia no Real Madrid e na seleção espanhola.

No entanto, tudo isto serve apenas de contexto. Não são apenas estes argumentos que tornam Casillas maior.

Há uns tempos, ao espreitar da janela da redação, vi-o do outro lado da rua: t-shirt, jeans, conversando encostado ao seu automóvel, que está longe de ser o mais vistoso do parque.

Parecia um anónimo. Como passa despercebido quando passeia de bicicleta, pela marginal ou pela baixa do Porto, cumprimentado quem o reconhece.

Anda como um comum mortal, sem um séquito de seguranças em redor ou qualquer pose de superestrela.

A cada intervenção pública, mostra-se um homem bem formado, estruturado, inteligente: um gentleman. Mostra-se, enfim, gente comum, capaz de abdicar, a cada momento, do estatuto de celebridade. 

Vive fiel ao lema «no soy galáctico, soy de Móstoles». Haverá luxo maior?

É nisso que Casillas é verdadeiramente gigante. Um exemplo para os jovens craques aspirantes a vedetas, muitos deles precocemente supérfluos e sobranceiros. Um modelo para essa espécie de protoestrelas pop que o futebol produz em barda.

Não há grandeza maior do que ser sóbrio num mundo de aspirantes a famosos; do que ser singelo num mundo de pequenas vaidades.

Sem deslumbramentos, não nos faz nada mal realçar a real dimensão de Casillas, antes que o nosso futebol deixe de ter o privilégio de o ter por cá.

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(Artigo originalmente publicado às 23:45 de 18-12-2018)

«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.