Thomas Muller costuma contar esta história quando lhe pedem para explicar o sucesso do Bayern Munique.

«O Joshua Kimmich chegou ao clube em 2015 e estávamos num período fantástico. Marcávamos quatro ou cinco golos em cada jogo. Depois de mais uma goleada, ele entrou no balneário aos berros, a celebrar, mas olhou à volta e estávamos todos calados. No duche ou a meter as nossas coisas nos sacos. Perguntei-lhe o que se passava. ‘Não festejam isto?’, e eu lá lhe disse para ele ganhar juízo. ‘Aqui não se celebram goleadas, celebram-se troféus, pá’.»

O prosaísmo de Muller é uma forma de olhar para o poderio do adversário do Benfica na Liga dos Campeões. Não a única e, provavelmente, não a mais certeira. Afinal, Thomas Muller não é conhecido por ser o mais sensato dos avançados.

Para ele, símbolo do grande Bayern dos últimos 15 anos [593 jogos, 219 golos!], a vida não tem de ser um ajuntamento de complicações.

No Bayern não ganhamos jogos para saborear o momento da vitória. Isso é uma estupidez. A verdade é que o fazemos para ter paz e serenidade, porque só assim é possível sair de casa a um domingo e comer um gelado em qualquer lado, sem ser incomodado por ninguém.»

É uma forma de ver as coisas. Thomas Muller tem autoridade moral para dissecar o ADN deste colosso europeu, nem que o bisturi da operação não passe de um simples cornetto de morango.

Andar tranquilo nas ruas de Munique é uma motivação tão boa como qualquer outra. Estimulante. Mas para contar tudo como deve de ser, é preciso recuar umas décadas, ainda Thomas Muller não andava neste mundo.

Para o Bayern, o Bayern arrebatador e tantas vezes considerado o mais competente clube de futebol do mundo, tudo começa a mudar - para melhor - nos anos 70.

Bayern Munique: uma imparável máquina de golos

Bundesliga: de excluído a grande dominador

A II Grande Guerra Mundial acabara há 18 anos. O Plano Marshall tomara os despojos do conflito, reorganizara os cacos de uma nação desfeita, pouco a pouco a vida voltara a fazer sentido na Alemanha. O futebol também.

Em 1963, a federação desenha um plano ambicioso e convida 16 clubes, oriundos das cinco ligas regionais do país, para a primeira edição da Bundesliga. O Bayern Munique não faz parte dessa restrita elite germânica.

A reação é péssima. De raiva. Para os bávaros do Bayern não é fácil ver os vizinhos do 1860 Munique a jogar o principal escalão, mas das fraquezas se fazem forças e esse episódio, doloroso, torna-se no catalisador que o clube procurava.

Limitado ao campeonato regional, o Bayern aproveita para reorganizar as finanças e fazer uma aposta séria nos escalões jovens. Para isso monta um agressivo sistema de ‘olheiros’ locais. A ordem é bem clara: ‘não podemos deixar fugir os melhores miúdos da Baviera, todos têm de jogar no Bayern’.

E assim surgem o guarda-redes Sepp Maier, o cérebro do kaiser Franz Beckenbauer e o bombardeiro Gerd Muller, todos recrutados entre 1962 e 1964. O processo de contratação de Beckenbauer é particularmente curioso.

O pequeno Franz jogava no SC 1906, outro emblema de Munique, e era um adepto apaixonado do 1860 Munique. Nos juvenis já se destacava pela maturidade em campo, um homem rodeado de meninos.

O 1860 tinha tudo combinado com o pai de Beckenbauer para contratá-lo e, assim, cumprir o sonho da família. O destino dos deuses e a fúria dos homens não o permitiu.

Na final da liga regional de sub16, o SC 1906 de Beckenbauer derrota o 1860 Munique e o final é muito feio. Pancadaria no campo, agressões nas bancadas, a vibração da América do Sul trasladada para a pacatez bávara.

As ameaças e insultos fazem Franz Beckenbauer mudar de ideias. Não, não é para o 1860 Munique que vai. É para o Bayern Munique. O resto, sabe-se, é história. E histórico.

O kaiser ganha a alcunha dentro do campo e lidera o processo revolucionário em curso no futebol do Bayern. Com Beckenbauer, Maier e Muller, nada volta a ser igual. Em 1965 o clube sobe finalmente à Bundesliga e em 1969 festeja o primeiro título.

Os gloriosos anos 70, o monstruoso século XXI

A elegância de Franz Beckenbauer impõe uma nova ordem ao futebol alemão. A união entre técnica e físico, a inteligência com e sem bola, a extirpação do risco desnecessário e da inocência/ingenuidade durante 90 minutos.

O Bayern cresce alicerçado nestes mandamentos e numa gestão muito avançada para a época. Os resultados acabam por surgir naturalmente, fruto também do raro talento de um conjunto de futebolistas extraordinário. Os anos 70 são gloriosos para o Bayern e a fundação mais sólida que remanesce no Bayern de 2021/22.

O clube ganha por quatro vezes a Bundesliga e é campeão da Europa em 1974, 1975 e 1976. O maior e melhor clube alemão alimenta-se de troféus, pouco a pouco, até se tornar num dos monstros mais temidos do futebol europeu e mundial.

«Aqui na Alemanha dizemos que o Bayern é ‘aquela máquina’», diz ao Maisfutebol o mais alemão dos portugueses, Sérgio Pinto. O atual chefe do departamento de scouting do Greuther Furth – último classificado na Bundesliga – conhece como poucos o opositor do Benfica.

Carlos Leal, diretor desportivo do Arminia Bielefeld, aponta no mesmo sentido. «A liga alemã é muito forte, mas o Bayern joga noutro campeonato, num patamar acima», atesta o dirigente. «Estamos sempre à espera que o gigante tropece, mas acho que no passado fim de semana [com o 5-1 aplicado ao Leverkusen] todos despertámos para a realidade. Nem o Bayer, nem o Dortmund, nem o Leipzig conseguirão destronar o Bayern.»

O grandioso Bayern Munique dos anos 70 (FOTO: site oficial do Bayern)

«O Bayern é, de longe, o maior clube alemão. Tem quase 300 mil sócios [são 290 mil] e adeptos por todo o país. O que é raro num país como a Alemanha, onde normalmente as pessoas apoiam o clube da terra», acrescenta Sérgio Pinto. 

O antigo médio, de 41 anos e natural de Vila Nova de Gaia, está desde 1995 na Alemanha. Passou por Schalke 04, Alemania Aachen, Hannover e Fortuna Dusseldorf, até encerrar a carreira em 2015. Sabe, por isso, o que sofrem na pele os adversários do Bayern e o que distingue, de forma profunda, este emblema.

Há vários argumentos a sustentar este domínio do Bayern. São 17 campeonatos alemães nos últimos 25 anos. À frente de tudo eu colocaria aquilo que nós chamamos o ‘Triple A’ e que mais não é do que a fortíssima sponsorização de três marcas, muito fiéis ao projeto do Bayern.»

Sérgio refere-se à Audi, à Adidas e à Allianz, pilares essenciais para a sustentabilidade financeira de «um gigante de milhões». «É isto que permite ao Bayern pagar 20 milhões por época ao Lewandowski. O orçamento anual do meu clube, o Greuther Furth, anda nos 17 milhões/época. Só o avançado deles implica um investimento superior.»

Carlos Leal destaca, por outro lado, a «tremenda organização» no Bayern e dá exemplos concretos. «No pós-pandemia tivemos reuniões com todos os clubes. Privei de perto com os staffs de todas as equipas e nenhum se compara ao do Bayern. Aqui tenho de destacar o nome da Kathleen Kruger, a team manager. É fundamental e incansável na preparação dos detalhes.»

Apesar desta «mania de perfeição», o Bayern «não é um clube frio». «É o oposto. É, se calhar, a estrutura com as pessoas mais simpáticas e acessíveis. Em Bielefeld temos um estádio charmoso, mas pequeno, no meio da cidade. Durante a pandemia, os visitantes tinham de se equipar no edifício de uma escola antiga. Sabem a equipa que melhor reagiu a isso? O Bayern. Os outros ficavam sempre desconfortáveis quando não viam luxo.»

Carlos Leal diz, por isso, que a força «das relações humanas» é mais um fator que joga a favor do Bayern. «Eu vivi 18 anos em Munique. Há uma mistura entre o regionalismo dos adeptos e a dimensão cosmopolita do Bayern. É giro e atraente. Nos jogos há 35 mil de Munique e 35 mil que vem de longe, às vezes do outro lado do mundo.»  

Viena, 1987: uma exceção no exercício do poder

A revolução faz-se nos anos 70, o poder é imposto com punho de ferro nos anos 80 e 90 – a derrota em Viena-87, contra o FC Porto, é uma das exceções a esta regra; a outra é a traumatizante derrota de 1999, frente ao Manchester United.

Seis campeonatos nos 80’s, mais quatro nos 90’s e um nome a emergir na esfera de influência: Uli Hoeness.

Obrigado a abandonar a carreira de futebolista em 1980, em virtude de uma grave lesão no joelho, Uli ocupa vários cargos – diretor desportivo, vice-presidente – até chegar à presidência do clube em 2009 e dotar o Bayern de uma situação financeira mais do que robusta.

O conto de fadas dura até 2014, quando é acusado (e considerado culpado) de evasão fiscal. Hoeness passa 18 meses na prisão, mas só abandona a presidência do Bayern em novembro de 2019. Uma nódoa num clube que faz da imaculidade a sua marca registada.

Esse episódio foi muito feio, mas o senhor Hoeness teve um papel fundamental na estabilização financeira do Bayern. Foi ele que impulsionou a construção da academia do clube [orçada em 82 milhões de euros!] e que lhe devolveu os grandes títulos europeus», lembra Sérgio Pinto.

O Bayern ganha a Liga dos Campeões em 2001, 2013 e 2020. «O merchandising do Bayern é uma coisa impressionante também. Além da publicidade, eles têm a capacidade de promover a marca por todo o lado. São muito agressivos, no bom sentido», continua o português do Greuther Furth. «No Oktoberfest há sempre futebolistas de caneca de cerveja na mão, no meio dos adeptos, a promover a ligação do Bayern à cidade.»

Uma das diferenças entre o Bayern e o Barcelona, adverte Sérgio Pinto, é a estabilidade financeira, já se percebeu. «É impossível na Alemanha um clube ter dívidas como o Barcelona tem. A DFB [federação] faz um controlo apertadíssimo nos licenciamentos, não facilitam em nada. Nem nos escalões inferiores. Na Bundesliga 3, por exemplo, nenhum clube pode participar se o estádio não tiver, pelo menos, dez mil lugares sentados.»

Falta falar de um aspeto muito relevante, lembrado por Sérgio Pinto: a famosa regra dos 50 +1. «De forma resumida, isso significa que a maioria do capital tem de pertencer ao clube. Mais de 50 por cento. Isso faz com que o Bayern domine o seu destino e se permita a estar completamente aberto aos sócios e adeptos. Lembro-me também de ler que o Bayern já ajudou clubes alemães em dificuldades. O St. Pauli, o Hansa Rostock e até rivais como o 1860 Munique e o Borussia Dortmund. São um caso à parte.»

E assim o Bayern cresce, multiplica-se na sua influência e alimenta-se das feridas impostas aos opositores. São 17 campeonatos em 25 anos, os últimos nove consecutivos! Números impressionantes sobre um clube que «ou se ama ou se detesta» dentro das fronteiras alemãs.

O Benfica não podia estar mais avisado.