Há vidas imprevisíveis. Veja-se bem a de David Carvalho, um dos heróis do Montalegre.

Nasce em Antuérpia, Bélgica, em 1994; oito anos depois, 2002, começa a dar os primeiros pontapés no Seixal FC; chega ao Benfica em 2003 para jogar nos escolinhas e inicia aí uma ligação de nove temporadas às águias; sai em janeiro de 2013 para o Belenenses e marca o reencontro com o emblema de Luz para dezembro de 2018.

Onde? No Estádio do Montalegre. Porquê? São os deuses da Taça de Portugal. Quando? Quarta-feira, 20h45.

«No dia do sorteio estávamos na sala de reuniões da equipa. Muito ansiosos, todos. Queríamos jogar em casa contra um grande, principalmente se fosse o Benfica. Mesmo eu, sportinguista de coração, queria o Benfica», diz David Carvalho, lateral direito, 24 anos, ao Maisfutebol.

Mas, espera lá, pára tudo: sportinguista?

«Sportinguista de coração, benfiquista de paixão. O meu pai é do Benfica, mas eu saí ao lado (risos). Depois, claro, passei quase uma década de águia ao peito e afeiçoei-me ao clube. Mas serei sempre do Sporting.»

«Eufóricos e a chorar de emoção», os colegas de David Carvalho recebem a melhor notícia do ano. Aí vem o Benfica às Terras de Barroso, para reencontrar David e um plantel do Campeonato de Portugal carregado de ambição. Não se acreditam?

«A equipa técnica, o plantel e todo o povo barrosão acreditam na vitória. Se o Montalegre ganhar vai ser feriado nacional.»

Iniciados: David ao lado do guarda-redes; Cancelo é o quinto a contar da esquerda

Nove temporadas no Benfica, lembram-se? Vamos então a isso. David Carvalho troca o Seixal pelo emblema da Luz e dá o melhor presente possível ao pai, um benfiquista apaixonado.

«Marquei um golo, ainda no Seixal, e fui festejar à bancada. Era o dia de aniversário do meu pai. Ele abraçou-me e no final do jogo disse-me que eu ia para o Benfica. Fui indicado pelo Renato Paiva, atual treinador dos juniores. Fiquei feliz da vida.»

Claro, que criança não ficaria? Entre alguns empréstimos (ao Corroios) e títulos, muitos títulos, David Carvalho escreve uma história bonita no Benfica. A oportunidade, a grande oportunidade, surge quando o treinador Bruno Lage tira o titular João Cancelo a 15 minutos do fim de um jogo.

«Isso aconteceu nos juvenis. O João não estava nos dias dele e o mister Lage substituiu-o. Joguei 15 minutos e agarrei a oportunidade com unhas e dentes. Estávamos a meio do campeonato e era a primeira vez que jogava. Na semana seguinte jogaríamos contra o Sporting e eu pensei que ia ficar de fora. Mas não. O mister pôs o Cancelo na esquerda e a mim na direita. Fiz um grande jogo, grande mesmo!, e poucos dias depois fui chamado à Seleção Nacional de Sub17.»

David Carvalho (à esquerda) com o capitão Bernardo Silva

Dias felizes para David Carvalho. «Sim, muito. À frente de todos, o Bruno Lage disse que eu era um exemplo para toda a rapaziada.»

No Benfica, David cruza-se com centenas de colegas de equipa, alguns bem conhecidos do grande público. «Já falámos do Cancelo. Tinha um feitio complicado, mas um bom coração. Quando perdia, ninguém lhe podia dizer nada. Detestava perder!», recorda David, agora no inclemente frio de Montalegre.

«Depois, claro, tenho de falar do Bernardo Silva. Era um menino de ouro e faziam dele um chinelo (risos). Um rapaz puro e transparente. O estilo dele é que… bem, era o menino de Cascais, sapatinho de vela e camisinha. Tínhamos um grande balneário.»

«Sentia-me como o Arbeloa, um patinho feio»

Campeão nacional nos juvenis, David Carvalho lembra a equipa que marca 118 golos e sofre só 18.

«A geração de 93 e 94 era muito forte. Joguei ainda com o Ederson (Manchester City), Bruno Varela (Benfica), Bruno Gaspar (Sporting), Eliseu Nadjack (Rio Ave), Fábio Cardoso (Santa Clara), Ivan Cavaleiro (Wolves), Hélder Costa (Wolves), André Gomes (Everton), Diego Lopes (Rio Ave), Cafu (Légia) e Sancidino (Lausanne)… Podia fazer uma seleção. Eu e esses tubarões todos, era quase como quando o Arbeloa estava no Real Madrid rodeado de craques. Sentia-me um patinho feio.»  

Humilde, quiçá demasiado, David Carvalho acaba por sair do Benfica a meio da última época nos juniores, mesmo depois de fazer alguns treinos com os seniores, na altura treinados por Jorge Jesus.  

«Via e sentia que o mister João Tralhão não apostava em mim. No último ano de júnior era muito importante jogar. Recebi uma chamada do Belenenses, do mister Rui Gregório, e aceitei o convite dele».

David abandona o Benfica «sem confusões» e será «sempre grato» ao clube. Mas agora, para este reencontro, o objetivo é só um: «fazer uma grande exibição e surpreender o país.»
 

2010/11: David Carvalho nos juvenis do Benfica, com Chalana

«As folgas? Num café a jogar cartas, setas ou dominó»

Montalegre, 1800 habitantes, distrito de Vila Real. Município raiano, ali a espreitar Espanha. É aqui, em Trás-os-Montes, que David Carvalho é feliz.

«Vivo uma vida tranquila, não se passa nada. Posso deixar o carro a trabalhar e ir fazer uma compra qualquer. Ninguém chateia. Temos treino todos os dias, de manhã ou de tarde», conta David, a 48 horas de reencontrar o Benfica. Ansioso, pois claro.

«Nas folgas? Costumamos ir ao café e jogamos cartas, dominó, setas, ou então vamos a Chaves e a Vila Real para quebrar a rotina. Ainda pensei fazer um part time, só que não iria conseguir cumprir. O mister está sempre alterar os horários dos treinos e temos de estar disponíveis.»

David, falta escrever isto, já é quase transmontano. Joga no Vila Flor (2013/14), Mirandela (2014/15), Pedras Salgadas (2015 a 2017) e agora no Montalegre.

«As pessoas do Norte são fantásticas, vibram muito com o futebol. Não tem nada a ver com a mentalidade do Sul. Nada mesmo. Aqui o povo é muito humilde, atencioso, pessoas muito simples. É normal estar num café e alguém me pagar o pequeno almoço. O clima? Parece que estou na Rússia», brinca David.

«Ainda não nevou, por incrível que pareça, e já passo mal. O inverno ainda nem começou, mas está a chegar.»

Winter is coming… à atenção de Rui Vitória.

(Artigo originalmente publicado às 23:55 de 18-12-2018)