A Taça de Portugal é pródiga em surpresas. Mostra o futebol, às vezes escondido, país fora. De há três anos a esta parte, as alterações efetuadas à prova permitem englobar mais quadrantes geográficos do país, com a entrada dos vice-campeões do principal campeonato do distrito e dos vencedores das taças regionais a estarem, por direito, na primeira eliminatória da época seguinte.

Assim aconteceu, em 2018/2019, com 41 clubes dos distritais a arrancarem na Taça. Cinco deles continuam de pé. Heróis à terceira eliminatória, já com futebol de primeira em busca do Jamor.

De Valença a Silves e até ao Vale das Furnas, no arquipélago dos Açores, um triângulo mágico. Valenciano, Vila Real, União Sport Clube, Silves e Vale Formoso são os cinco representantes dos campeonatos distritais entre os 64 clubes nesta fase.

Futebol amador em estado puro. Atletas que, ao final de um dia de trabalho ou estudo, alimentam o sonho da bola. Maior visibilidade, por estes dias, para Vila Real e Valenciano, que defrontam equipas da Liga: FC Porto e Vitória SC, respetivamente.

Em comum, orçamentos reduzidos e um bolo financeiro considerável como prémio, apesar das contínuas despesas: quem está nesta fase já arrecadou 12 mil euros em prémios da Federação. Uns com apuramento em campo, outros repescados. Mas estão lá.

O Maisfutebol foi conhecer as histórias dos clubes das provas distritais que, por estes dias, vivem a festa da Taça.

  • Vila Real: o «prémio» para lá do Marão

Arredado dos campeonatos nacionais desde 2016, o Vila Real vai receber o campeão nacional. Expectativa de sobra, numa semana diferente para lá do Marão.

«É um jogo especial para nós. É importante recordar às pessoas que existe um clube, para lá do Marão, com historial enorme», refere o vice-presidente do clube, Cristiano Moreira.

Para o dito, muito trabalho. Quase toda a direção tirou horas aos respetivos empregos para organizar o jogo no Campo do Calvário, no qual são esperados 4 mil espetadores. «Implica que nos dediquemos de corpo e alma. Estamos todos motivados. Jogadores, equipa, sócios e adeptos merecem», atira o dirigente, elogiando a prontidão do FC Porto para o Vila Real poder jogar em casa.

«Foram sérios no tratamento. Houve um contacto formal, o FC Porto falou do problema do calendário porque tem o jogo na Rússia e cedemos no aspeto de jogar sexta-feira», conta.

Apesar dos 12 mil euros certos, o dirigente lembra que «não é lucro fácil», porque a segurança e a iluminação implicam «gasto muito grande».

Vila Real: «Estamos habituados ao Marão, agora pedem-nos que subamos o Evereste»

Num plantel que treina três vezes por semana, às 19h30, há de tudo. Engenheiros, empregados de mesa, veterinários, estudantes, desempregados. Cristiano elogia os atletas, alguns deles de Murça e Amarante, que se privaram «de dinheiro para ajudar o Vila Real a ser novamente um clube de renome nacional».

SC Vila Real é um dos cinco clubes dos campeonatos distritais nesta fase e recebe o campeão nacional

Fred Coelho, 29 anos, capitão formado no clube e há oito épocas consecutivas na equipa principal, trabalha de dia num restaurante e treina à noite. Não sabia, à data desta conversa, se poderia defrontar o FC Porto. Tudo porque foi expulso na fase anterior.

«Era um prémio de carreira poder jogar contra o FC Porto. O recurso foi metido, estamos à espera», refere Fred, garantindo luta dos “Lobos do Marão” pelo resultado, numa semana diferente. «É falar com os patrões para não trabalhar na quinta e na sexta. Estamos a sentir-nos um pouco profissionais esta semana», atira. O «nervosismo» faz parte, mas Fred dá o exemplo da vitória ante a UD Oliveirense e da derrota curta ante o detentor Desp. Aves na época passada para agarrar os transmontanos à «pouca percentagem» de fazer surpresa.

  • Silves FC: da tempestade à graça sustentada

O emblema algarvio é, a par do Vila Real, a única destas cinco equipas por mérito próprio nesta fase da Taça. Sem repescagem ou vitória administrativa. Eliminou duas equipas do Campeonato de Portugal, Olhanense e Paredes. Segue-se a terceira, o Chaves Satélite.

Obra e graça na Taça, anos depois de uma tempestade que assolou as instalações do clube em 2012.

Daí para cá, o «mote» do tornado que fez a direção hoje liderada por Tiago Leal pegar no clube em 2013, recuperou a cobertura da bancada, sede e relvado sintético. Às portas do centenário, em 2019, inauguração de um museu com a história do clube e um livro dos 100 anos à vista.

Entre o plantel amador, estudantes, barbeiros, comerciantes, professores ou hoteleiros. Pelo meio, o futebol.

Confira todos os «tomba-gigantes» da Taça de Portugal

Pedro Vila Nova espelha a marca do Silves. O defesa de 27 anos, engenheiro elétrico, joga há 21 (!) no clube e garante ambição máxima para domingo. «Tentamos ser o mais profissionais possível. Para o Silves, é fantástico estar na Taça. O Chaves Satélite tem boa equipa, mas temos de pensar que vamos conseguir», defende.

Em caso de apuramento, o plantel será compensado com um prémio. Palavra de presidente. Só falta o feito e acertar valores. «Ainda não defini com eles (risos)», atira Leal, lembrando que o clube já teve «outros pergaminhos» e já defrontou Penafiel, Boavista e Vitória SC na Taça. Para continuar a fazer história, cautela «contra uma equipa de escalão superior». E garante de «competir e dignificar a terra».

  • Valenciano: repetir 2009 entre mar de gente

Nove épocas depois, bem no Alto Minho, em Valença, o principal clube do concelho está de novo na terceira eliminatória da Taça. Foi um dos 22 clubes repescados para a segunda eliminatória, após derrota ante o Limianos (4-0). Venceu depois o Praia Milfontes (2-5) para agora encontrar o Vitória SC.

Em 2009/2010, foi o primeiro tomba-gigantes da Taça, ao eliminar a Olhanense por penáltis, após o 1-1 no final dos 90 minutos e do prolongamento. Hélder Oliveira, capitão da atual equipa, estava nessa tarde de 17 de outubro de 2009 e marcou o golo minhoto. Capacidade para nova surpresa?

«Vamos tentar. Possibilidades são mínimas, mas Taça é festa e queremos ser uma das surpresas. Não é todos os dias que temos possibilidade de defrontar jogadores que vemos na televisão», atira Hélder, natural da Póvoa de Varzim, comercial e residente em Viana do Castelo de dia e futebolista à noite, em Valença.

Estádio Dr. Lourenço Raimundo, em Valença, espera 2 500 adeptos no sábado

Jogador mais velho do plantel e profissional de futebol até 2010, Hélder deixa o conselho aos companheiros, num plantel com tenra média de idade: 22 anos. «É uma grande oportunidade para eles», atira.

O Estádio Dr. Lourenço Raimundo espera 2 500 espetadores às 15h00 de sábado e o presidente do clube, Filipe Lima, salienta o «incentivo» do Vitória para o jogo ser em Valença, num estádio que espera muitos olhos no peão em torno do relvado.

«O Vitória mexe com uma massa associativa grande e especial, pediu 1200 bilhetes e contactou para reforçar essa quantidade. E há muita gente de Guimarães a adquirir bilhete por intermédio de pessoas daqui», ilustra Filipe, frisando a importância do sintético recentemente colocado e na receita já garantida na Taça para aplicar nas camadas jovens. «Este ano tivemos a sorte de duplicar jovens por causa do sintético», refere.

  • Vale Formoso: repescagem, vitória na secretaria. E agora?

Da incontornável paisagem do Vale das Furnas ao cozido saído da terra. Terra vulcânica, cheiro a fumarolas e geiseres. Isso e a lagoa. Pelo meio, o xadrez inspirado no Boavista a fazer a sua história na Taça de Portugal. O FC Vale Formoso, que disputa o campeonato da ilha de São Miguel, está pela segunda vez na prova rainha e na terceira eliminatória.

Clube de médicos, pedreiros, pescadores e engenheiros. E uma história de vaivém constante. Os açorianos perderam em Pinhal Novo a abrir, mas foram repescados. Perderam depois em casa, ante a U. Leiria, mas ganharam na secretaria.

Segue-se o Coimbrões, no segundo jogo de sempre nas Furnas para a Taça. Aconteça o que acontecer, humildade e festa a imperar.

«Claro que é de lamentar a forma como o Leiria acaba excluído, mesmo conscientes das consequências a nosso favor», relata o capitão Rui Maciel. O médio de 32 anos é funcionário administrativo no clube e ali cumpre a nona época. «O melhor prémio é a participação, na nossa casa, perante o nosso público», constata.

Vale Formoso vive história na Taça, após ter sido repescado e ter ganho na secretaria

O diretor desportivo, Hernâni Melo, fala na «grande alegria» daquele povo. De uma terra com menos de 1 500 habitantes, onde dia a dia do futebol é familiar aos locais. «As pessoas das Furnas são muito queridas. Quando acabamos um treino, está um sócio ou simpatizante com sopa quente para os jogadores comerem, porque no inverno é frio», atenta.

Para domingo, festa garantida. «Depois do jogo, umas bifanas, frangos grelhados. Convívio. Tudo gratuito. Vamos fazer das Furnas a festa da Taça. É uma forma de envolver toda a gente», sublinha.

Os 12 mil euros encaixados são ouro, comparados com os cerca de 20 mil de orçamento da equipa principal. Isto num clube de uma das regiões mais visitadas dos Açores, cujos adereços axadrezados não ficam indiferentes aos turistas. «Temos camisolas e cachecóis por todo o mundo. Nos últimos dois anos [vendemos] à volta de 1000, 1200 camisolas», garante Maciel. Por ali, nestes dias, «não se fala de outra coisa» senão na Taça.

  • União SC: soprar 80 velas repetindo 2003

Em Santiago do Cacém mora a esperança de um clube que comemorou 80 anos de história esta quinta-feira, 18 de outubro. O União Sport Clube, repescado para a segunda eliminatória, na qual afastou o GRAP, vai viajar à Madeira para defrontar o seu homónimo na terceira eliminatória.

Há 14 anos, participou pela última vez na Taça e nas ligas nacionais. E após 15 anos, o clube está novamente nesta fase. No meio de tudo, Ribeira Brava tem um significado especial. Porquê?

Foi ali, em 2003, que o União eliminou o clube local para chegar à terceira eliminatória, igualada agora. E é na mesma Ribeira Brava que joga, este domingo, ante o União da Madeira, para tentar ser feliz de novo. Viaja de véspera para a ilha.

Taça: acompanhe 18 jogos AO VIVO, no Maisfutebol

Após uma parceria falhada com uma empresa para fazer entrar jogadores no início da época, o emblema da AF Setúbal vive, como tantos outros, da carolice. Os atletas vão de operadores fabris a estudantes. E não tiram ordenado no futebol. «Damos uma ajuda aos atletas, é um valor que ajuda à deslocação para treinar, o tempo que perdem para estar com as famílias», conta João Santos, presidente eleito há apenas… dez dias.

O dirigente lembra que «pior» do que ir à Madeira era não estar no sorteio. Mas lamenta a viagem e custos associados. «Para um clube que, financeiramente, tem dificuldades, uma deslocação à Madeira foi o pior sorteio. Mas há que ver a coisa por um lado positivo», contraria.

Positivo é também ver a Taça rumar a todos os pontos do país. A festa rola país fora até domingo.