12 de dezembro de 2004, uma manhã de domingo especial para todos os que viram a partir de Portugal o FC Porto continuar a fazer história. Era perto da hora de almoço, já noite lançada em Yokohama, quando Jorge Costa levantou a Taça Intercontinental, a segunda para o clube, a última da história da competição. Uma conquista «especial», numa época atribulada. A coroar um período de ouro para os dragões, que ganharam tanto em tão pouco tempo que os triunfos quase se tornaram «normais», diz quem o viveu e olha agora para a dimensão de tudo o que aquele FC Porto alcançou. Maniche, o melhor jogador daquela final, faz com o Maisfutebol a viagem por esses longos e loucos cinco dias que colocaram o FC Porto no topo do mundo.

«Foi um grande momento obviamente para todos os jogadores, um grande orgulho e ao mesmo tempo privilégio por mais uma conquista. Não era a primeira vez que o FC Porto conquistava o troféu, mas é algo que poucos jogadores chegam a poder disputar, porque é preciso vencer a Liga dos Campeões para lá chegar», diz Maniche: «Era uma época que não estava a correr bem, veio a calhar porque foi a bem da equipa. Por isso teve um sabor especial. Foi um título bastante importante, numa época muito difícil.»

«Era um ano que não estava a correr como queríamos»

Foi de facto uma época de grandes mudanças no Dragão, depois de todas as conquistas das duas temporadas anteriores, acima de todas a Taça UEFA em 2003 e a Liga dos Campeões em 2004. Com José Mourinho saíram várias referências e chegaram muitas caras novas. Victor Fernandez assumiu a equipa depois da entrada em falso de Luigi del Neri. «Faz parte de todos os clubes. Há sempre saídas», analisa Maniche: «Tivemos algumas saídas importantes, algumas entradas de jogadores a adaptarem-se ao clube, mudança de treinador, tudo isso leva algum tempo. Espera-se que a adaptação aconteça rápido, porque se vive de resultados. Era um ano que não estava a correr como queríamos. Nesse ano tivemos três treinadores, perdemos 20 e tal pontos para a Liga em casa, o que não é normal para o FC Porto e é demonstrativo também das mudanças que tinham acontecido e que não foram cirurgicamente bem sucedidas na equipa.»

Na Liga, nesse início de dezembro, o FC Porto dividia com o Benfica a liderança de um campeonato que seria discutido até ao fim, mas nas últimas quatro jornadas tinha perdido dois jogos, com Boavista e Beira Mar. Mesmo antes da viagem para o Japão, no entanto, deu um pontapé na crise.  Seis dias antes de jogar a Intercontinental conseguiu o apuramento na Liga dos Campeões em modo épico, precisamente frente a José Mourinho, com uma vitória sobre o Chelsea no Dragão.

«O Chelsea era um dos melhores clubes do mundo, ganhar-lhes dá sempre uma motivação extra», observa Maniche. Mas o antigo médio diz que não era preciso espicaçar o orgulho dos jogadores: «O orgulho próprio tem que estar sempre presente. Numa final num jogo só, além do orgulho há a capacidade de superação e a sensação de que podemos ficar para a história.»

Os colombianos «aborrecidos» no Japão e o fuso horário para vencer

O Once Caldas, a equipa colombiana que tinha surpreendido ao vencer a Taça Libertadores, já tinha viajado para o Japão com muita antecedência. Os dragões só iriam na quarta-feira, no dia seguinte ao triunfo sobre o Chelsea. Ainda na noite da vitória sobre o Chelsea, o treinador Victor Fernandez ironizava sobre o assunto: «O descanso vai ser mínimo, mas não temos outra hipótese. Oxalá os colombianos já estejam aborrecidos do Japão e queiram finalmente voltar para casa.»

O FC Porto chegou ao Japão na noite de quinta-feira, já falando em horas locais. O departamento clínico dos dragões procurou minimizar o impacto da adaptação à mudança de fuso horário em tão pouco tempo, tentando normalizar desde logo horários sem prejudicar o equilíbrio dos jogadores.  «A preocupação dos médicos era com o tempo de descanso, se a mente estava a acompanhar a adaptação física», recorda Maniche, contando que no seu caso não foi complicado: «Há jogadores a quem o fuso horário complica mais do que outros. Eu normalmente para jogar tomava sempre um comprimido para dormir sete horas. Para relaxar mental e fisicamente, e acordava sempre mais descontraído. Outros têm outras formas de se adaptar, veem filmes, varia muito.»

«Nós a levar porrada e a tentar marcar»

O FC Porto fez apenas dois treinos, o último dos quais já no estádio de Yokohama. E aproveitou também para alguns momentos de descompressão de manhã, em compras em Tóquio, como parte do plano de adaptação. «Foi tudo muito rápido, chegámos quatro dias antes», sintetiza Maniche.

Domingo, o dia do jogo, chegou depressa. Com horas extraordinárias. O FC Porto teve sempre a iniciativa do jogo, deliberadamente cedida pelo rival, mas não conseguiu chegar ao golo, apesar de quatro bolas ao poste e dois golos invalidados a Benni McCarthy. «Sabíamos que ia ser difícil, independentemente do clube. O Once Caldas tinha eliminado grandes equipas para ganhar a Libertadores», conta Maniche. «Eles defenderam muito, fizeram entradas muito duras. O jogo foi nós a levar porrada e a tentar marcar…»

O susto com Baía que «deu mais força»

O tempo regulamentar chegou ao fim, seguiu-se o prolongamento. E aí, um enorme susto. Vítor Baía caiu no relvado e, após alguns momentos de indefinição, saiu para dar lugar a Nuno. O guarda-redes contou mais tarde que sentiu um peso no peito. Viria a fazer exames que não detetaram nenhum problema cardíaco e levaram a concluir que tudo se deveu a um misto de falta de sono e stress. Mas, naqueles instantes, o choque tomou conta de Baía e dos companheiros de equipa, tanto mais que a morte de Fehér, em janeiro desse ano, estava bem recente nas memórias. «Assustou-nos, até pensámos quer era pior do que foi, já tinha havido vários casos dramáticos. Passou-nos muita coisa pela cabeça», recorda Maniche, acrescentando que, no entanto, esse momento acabou por motivar a equipa: «Até nos deu mais força, também para lhe dedicarmos a vitória. À medida que o jogo ia avançando, sem marcarmos, parecia que estávamos a reviver o passado, que podia correr mal. Mas aquilo deu-nos mais força.»

Recorde aqui o relato ao minuto do jogo no Maisfutebol

Ao fim de 120 minutos, a decisão foi mesmo para penáltis. O que parecia nem desagradar ao Once Caldas, que depositava muita confiança no guarda-redes Henao. «Por acaso não defendeu nenhum, o meu penálti foi ao poste e foi o único que falhámos», sorri Maniche. Não foi por aí. Mas eles queriam levar o jogo para penáltis para tentar a sorte, porque nós éramos muito melhores em termos individuais e coletivos.»

No desempate, Maniche falhou um, mas o Once Caldas falhou dois penáltis. E tudo se decidiu no remate de Pedro Emanuel. O olhar de concentração absoluta do defesa antes de bater a sua grande penalidade e lançar a festa portista fica para sempre como imagem de marca dessa conquista. A bola entrou, e a Intercontinental era do FC Porto. 

O resumo do jogo

Notas a voar pelo avião e a pandeireta de Carlos Alberto

Para Maniche ficou o troféu de MVP. Que incluía um carro como prémio, do qual ele abdicou: «Não quis o carro. Preferi o dinheiro, para entregar a duas instituições da cidade, a Sol e o Coração da Cidade.» Também lhe ficou uma história para contar, do voo de regresso a casa, por causa do prémio e do dinheiro. «Eu tive que deixar lá o meu equipamento em troca da chave do carro. Não trouxe o carro, mas trouxe a chave. Deram-me o dinheiro em ienes e eu coloquei as notas no bolso do casaco. Eram muitas notas. Adormeci e o meu companheiro do lado no avião, que era o Secretário, tirou-me as notas e começou a espalhá-las pelo avião. Quando acordei pus a mão ao bolso e vi que não tinha as notas.

Fiquei um bocado chateado, tinha anunciado que ia doar o prémio às duas instituições e se falhasse era o meu nome que estava em causa. Mas não foi nada de mais. Obriguei dois ou três a apanhar as notas e pronto», ri-se agora.

Na festa, ainda em Yokohama, o brasileiro Carlos Alberto tinha prometido animação sem parar para a viagem de regresso. Ele e a sua pandeireta. E cumpriu, para mal do descanso do resto da equipa. «O Carlos Alberto que nos acordou com a pandeireta, não deixava ninguém dormir. Meu Deus, não parava um minuto. E nem era preciso ganhar, era sempre assim… Depois daquilo tudo há um momento em que apetece relaxar. Mas com ele não dava», conta Maniche.

A festa portista fez-se com muita gente a sair à rua nos Aliados, logo que o FC Porto levantou a taça. E continuou na chegada ao aeroporto e ainda manhã cedo no Dragão. Mas desta vez não houve passeio triunfal pela cidade. «Não, havia muitos jogos para ganhar», diz Maniche, que agora, a olhar para trás, sintetiza assim aqueles tempos de ouro do FC Porto: «Ganhámos tanto tão seguido que não saboreávamos nada. Só comecei a ter a perceção do que fizemos quando deixei de jogar. Era tão normal que passava rápido.»