Era um domingo, 27 de Março de 1966. David Corbertt avisa a mulher que vai sair e que leva o cão. «O meu irmão estava quase a ser pai e fui à rua ligar para o hospital», conta. «Naquela altura ainda não havia telemóveis.» O inglês, funcionário dos correios, estava longe de imaginar que aquela saída ia mudar-lhe a vida.

Depois de saber que ainda não era tio, deixa a cabine e chama pelo cão, que não vem. «Fui ter com ele, reparei que estava a cheirar um embrulho de jornal e espreitei para ver o que era. Saltou-me à vista as inscrições de Uruguai, Brasil, Alemanha...», conta ao Maisfutebol. «Oh meus Deus, é a Taça do Mundo!»

E a polícia que não acreditou

Era mesmo a Taça Jules Rimet. A verdadeira. Tinha sido roubada uma semana antes do Centrall Hall, de Westminster. Quatro guardas não foram suficientes para evitar o improvável: os ladrões aproveitaram a distracção provocada por um serviço religioso no mesmo local e roubaram o troféu mais valioso do futebol mundial.

O mundo desportivo entrou em depressão. Faltavam quatro meses para o Mundial e o troféu que era uma relíquia tinha acabado de ser roubado. A Scotland Yard virou o país do avesso, fizeram-se suspeitos, foi detido um homem, prometeram-se recompensas monetárias. A Taça Jules Rimet, a autêntica, porém... nada.

Foi um cão que resolveu o assunto tão delicado. Pickles, de seu nome. Um rafeiro de quatro anos de idade que entrou nesse instante para a história do futebol mundial. Encontrou a taça embrulhada em folhas de um jornal, onde o ladrão a tinha deixado, assustado com as proporções do caso. Faz este sábado 44 anos.

Uma agenda mediática que o deixou de baixa...

David Corbertt percebe qual é o assunto logo que atende o telefone. Aos 70 anos tem pouca paciência para reviver a história. O Maisfutebol tem uma vantagem, porém: «Adoro Portugal», confessa. «Já fui três vezes passar férias a Olhos de Água, no Algarve. O tempo aí é agradável e as sardinhas são óptimas.»

Com a voz embargada e longas pausas, Corbertt recupera a história. «O Pickles foi transformado em herói. Entrou num filme, foi a programas de televisão, até roubou a primeira página ao Sir Harold Wilson em período eleitoral. Fui convidado para ir ao Brasil, ao Chile, à Checoslováquia, à Alemanha», conta.

O entusiasmo era tanto que Pickles entrou de baixa. «Durante seis meses esteve de quarentena. Já não aguentava a pressão.» O dono, esse, não se cansava. «Arranjei um agente, o mesmo que representava Spike Milligan. Fazia 60 libras por dia. Juntei três mil libras e comprei esta casa, em Survey, uma zona calma.»

... e uma morte trágica, como convém a um herói

Como todos os heróis, também Pickles teve uma morte trágica: morreu enforcado quando corria atrás de um gato. Cerca de um ano depois da descoberta que o transformou em herói mundial, com direito a um prémio e comida para toda a vida, Pickles deu o último suspiro outra vez num jardim ao pé de casa.

«Andava a passear com o meu filho mais velho, que tinha na altura cinco ou seis anos. Começou a correr atrás de um gato e fugiu-lhe. Procurei-o durante mais de vinte minutos, até que o encontrei morto. O gato tinha subido a uma árvore, a coleira ficou presa num ramo e ele sufocou», conta David Corbertt.

A família despediu-se do cão que morreu como um herói deve morrer: jovem. «Enterrei-o na parte de trás do quintal desta casa, onde ainda vivo», diz o dono. «Às vezes as pessoas ligam-me a perguntar se ele ainda é vivo. Como é possível? Depois disso tive outros cães, mas nenhum substituiu o Pickles. Era especial.»