Não há que recear exageros: lembrar que Mário Esteves Coluna, falecido nesta terça-feira em Maputo, foi um dos melhores médios do futebol mundial em todo o século XX é simplesmente um ato de justiça, linear e direto, como os seus passes. O facto de a influência de um médio fora-de-série não se traduzir facilmente em números – ao contrário do que acontece com avançados fora-de-série - ajuda a explicar que este rótulo seja menos consensual do que aqueles que justamente se colaram à carreira de Eusébio. Isso e a relativa escassez de documentos gráficos para ilustrar os seus melhores momentos. 

Mas, apesar de tudo, já é possível ver alguns dos seus mais de 600 jogos oficiais na íntegra - a começar pelas finais europeias do Benfica e pelos jogos de Portugal no Mundial 66. Para qualquer observador atento, é quanto basta para perceber o óbvio: além da capacidade física invulgar para a época, da técnica sem adornos mas completíssima, havia no seu jogo uma inteligência rara. A dos que, pensando por antecipação, indicam em permanência os caminhos por onde a equipa deve seguir. Um líder, em suma. No campo e na cabina.

«Nunca consegui tratá-lo por tu»

Chamado a evocar, pela segunda vez em poucas semanas, a perda de um amigo e de uma referência, é dessa liderança que António Simões se lembra em primeiro lugar: «Uma figura carismática, única, pelo porte físico e pela liderança. Um homem simples, de poucas palavras, mas muito interessante. Sempre muito concentrado e exigente, mas ao mesmo tempo capaz de um gesto de afeto, de uma atitude protetora», conta em declarações à TVI.

Simões exibe o mais genuíno tributo de respeito a quem, em 1961, o acolheu no balneário do campeão europeu: «Tal como aconteceu com o Eusébio, entre mim e o Mário Coluna há isto: nunca consegui tratá-lo por tu. Começou por ser o senhor Mário, depois mais tarde refugiei-me no nome: ó Mário isto, ó Mário aquilo. E ele teve sempre a gentileza de me tratar por miúdo, até à última vez que nos vimos», recorda.

1954, ano de mudanças

Coluna despertou relativamente tarde para o futebol em Lourenço Marques. Mas quatro anos com chuteiras calçadas bastaram para dar nas vistas na Metrópole e para ter os três grandes a enviarem propostas para o Desportivo. Como o clube moçambicano era filial do Benfica, foi esse o seu destino, com 19 anos recém-cumpridos.

O mês era agosto, o ano 1954. Um dos mais importantes na história do clube encarnado, que em poucos meses ganhou um estádio mítico, a Luz, um treinador revolucionário, Otto Glória, e aquele que viria a ser o seu jogador com mais títulos. Mário Coluna, claro: dez vezes campeão nacional, sete vezes vencedor da Taça e, principalmente, duas vezes campeão europeu.

Quando Coluna chegou, o Benfica era a segunda potência desportiva portuguesa, com menos títulos de campeão do que o Sporting (7 contra 9). Quando saiu, em 1970, com 35 anos, a relação de forças já se tinha alterado de forma significativa (17 títulos de campeão contra 13 dos leões). Eusébio, Simões e companhia encarregaram-se de acentuar essa diferença nos anos seguintes, antes de o FC Porto entrar na discussão.

Pelo meio, claro, há a glória internacional, sublinhada em primeiro lugar pela finais da Taça dos Campeões, ganhas em 1961 e 62. Por essa altura, já tinha recuado no terreno, para as funções de organizador, depois de Otto Glória ter começado por ver nele um apoio direto ao talento finalizador de José Águas.

Patrão do bicampeão europeu

Quando Bella Guttmann chegou à Luz, em 1959, já não havia dúvidas sobre o estatuto de patrão do médio moçambicano, um todo o terreno com alma de líder. E se o seu registo goleador nunca foi especialmente impressionante - 127 em 525 jogos oficiais pelo Benfica, 8 em 57 presenças na seleção - também nunca perdeu um sentido de baliza que o fez marcar golos espetaculares e decisivos. Como prova, os tiraços de fora da área nas duas decisões, com Barcelona e Real Madrid: que o fazem ser, juntamente com José Águas, um dos 11 jogadores em toda a história do futebol europeu que marcaram em duas finais ganhas.



Em 2006, num depoimento ao Maisfutebol, para o livro «Sport Europa e Benfica», Mário Coluna recordou assim os dois momentos de glória: «Sempre que podia aproveitava as oportunidades para rematar de fora da área. Com o Barcelona, o gesto foi bom. E como chegámos aí ao 3-1 sentimos que a vitória passava a estar muito mais perto». Mas não escondia uma ligeira preferência pelo golo marcado ao Real Madrid, um ano depois: «De vez em quando ainda se lembram de projetar por aí as imagens. Foi mesmo um grande golo», recordava, com visível satisfação, o homem a quem Eusébio, tratando por «senhor», pediu para lhe conseguir a camisola de Di Stéfano, o prémio mais apetecido.



Nessa ocasião, Coluna recordou também o lance de má memória que o levou a cumprir ao pé-coxinho a terceira final consecutiva, com o Milan, em Wembley: «Estávamos a ganhar 1-0 quando o Trapattoni veio por trás, abrindo-me o peito do pé com os pitons. Devia ter ordens do treinador para me arrumar, não sei. Sei é que não havia substituições e o Benfica teve de continuar sem mim», lembrou. Ainda saiu do campo e foi à cabina receber uma injeção de novocaína. Aguentou até final, mas sem poder impedir a reviravolta italiana.

A distinção por Helenio Herrera

Por essa altura Coluna já era uma referência incontornável no futebol europeu, estatuto que reforçou com o excelente desempenho no Mundial de 1966, a caminho dos 31 anos: figurou em várias das eleições realizadas para a equipa ideal da competição, confirmando-se como o líder, dentro e fora do terreno, de um grupo de talentos que tinha Eusébio como primeira figura.

Capitaneou o Benfica em mais duas finais europeias perdidas, em 1965 e 1968, mas foi em setembro de 1967 que recebeu uma das distinções que mais o honraram: o «mago» Helenio Herrera escolheu-o para capitão de uma seleção europeia que venceu a Espanha por 3-0, em Chamartín. Eusébio, Mazzolla e o suplente Goyvaerts marcaram os golos, mas foi o «monstro» quem comandou a entrada em campo de um onze que tinha como base o Inter de Milão: Sarti, Burgnich, Ure, Schnellinger, Cooke, Coluna, Hamrin, Rivera, Mazzolla, Eusébio e Corso.

Se as suas qualidades de jogador eram patentes há vários anos para todos, foi essa homenagem que tornou universal o reconhecimento ao líder. Só deixou de o ser em 1970, quando o Benfica, treinado pelo ex-colega José Augusto, decidiu, em nome da renovação do grupo, pôr um ponto final na ligação de 16 anos. Coluna ainda se aventurou no Lyon, sem grande sucesso. Voltou à Luz, a 8 de dezembro desse ano, para a homenagem definitiva, com um cartaz que reunia os principais nomes do futebol europeu. Vestiu a camisola encarnada em campo pela última vez, durante 15 minutos, antes de ser substituído para a ovação. Recusou juntar-se a Cruijff, Moore, Seeler, Luis Suarez e Dzajic para ser adversário do Benfica, que venceu esse jogo por 3-1.



«Era a combinação entre o jogador e a pessoa que o tornava foi uma grande referência, na seleção e no Benfica», recorda Simões, que assume com orgulho a passagem de testemunho, nesse ano de 1970: «Quando deixou de jogar, passei a ser eu o capitão. E posso dizer com orgulho que bebi a matriz do clube dessa grande fonte de inspiração e liderança», conclui.