«No one wants to grow up and be a Gary Neville»
(Jamie Carragher, 16/9/2013)

Ao contrário dos efeitos amplamente descritos e estudados da acne, o aparecimento do lateral-direito é um sintoma desprezado da chegada à idade adulta. Não existem laterais-direitos nas peladas 5x5 entre amigos. Mas a passagem para as peladas de 11x11, em campo inteiro (já só com um ou outro amigo, mais uns punhados de semi-conhecidos), transforma a atribuição da camisola 2, real ou virtual, em decisão política que traduz uma visão do mundo.

Na infantilidade dos jogos 5x5, a frequência de golos autoriza a olhar para a posição de guarda-redes como o vazadouro de todas as incompetências. É na baliza que acabam os donos da bola sem talento e sem amigos, para lá das exceções, que abraçam o cargo por vocação. A esses está destinado o rótulo de malucos, que confere algum status e origina carreiras ilustres, como a do famoso gordo da contabilidade.

Nos jogos de 11x11, porém, os golos são mais raros, os cálculos mais rigorosos e os guarda-redes mais apreciados. É, assim, no lado direito da defesa que se consagra a posição default para o elo mais fraco, aquela onde a sua inaptidão - geralmente acompanhada por uma dose embaraçosa de boa vontade – causa menos danos à equipa. Sistematicamente o último a ser escolhido, o lateral-direito é o equivalente futebolístico à prima, belfa e tronchuda, que nos casamentos só é tirada para dançar a partir do quinto copo.

Com uma agravante: ao contrário do que acontece nos guarda-redes, a tradição do cargo não aprecia malucos. A ideia dominante, do futebol amador para cima, é a de que o lateral competente é o que evita ser humilhado, fugindo ao destino dos «Joões» anónimos que Garrincha gostava de aparafusar à linha.



Esta teoria forma funcionários exemplares, de que Gary Neville - muito mais interessante como comentador televisivo do que como futebolista - é o melhor dos exemplos burocráticos. E, sem surpresa, varre para debaixo do tapete nomes que poderiam dar dimensão épica à função, como Carlos Alberto, Suurbier, Kaltz, Gerets ou Maicon.

De súbito, no final do verão de 2013, salta-nos ao caminho o caso de Philipp Lahm, no Bayern, de Guardiola. E, num estalar de dedos, resgatam-se décadas de discriminação e humilhação a todos os que ficam sempre para o fim na hora de escolher equipas.

«Philipp Lahm é talvez o jogador mais inteligente que treinei em toda a minha carreira»
(Pep Guardiola, 30/8/2013)

A frase foi dita no rescaldo da Supertaça Europeia, como homenagem à rápida adaptação de Lahm ao papel de médio centro, que continuou a desempenhar nos oito jogos seguintes. E tem peso redobrado se considerarmos que Guardiola já treinou Xavi, Iniesta e Busquets, entre outros. Já se sabia, desde 2006, pelo menos, que Lahm era capaz de defender, desequilibrar e marcar à esquerda como à direita sem perder rendimento pelo facto de ser um destro puro. Faltava ver que, em posição central, é tão bom como os melhores a ditar ritmos, impor tempos e orientar companheiros em trânsito.

Tanto a frase como a ideia definem o seu autor. Sim, Lahm já tinha jogado como médio defensivo nos escalões de formação, e até no Bayern B. Mas, desde a passagem a sénior, era um lateral instalado na vida, a atravessar a melhor fase da carreira depois da enxurrada de assistências na triunfal temporada 2012/13. Guardiola não se limitou a ver o que na última década poucos tinham visto: ao ser capaz de, em dois meses de treino, transformar um lateral com dez anos de ofício em patrão do meio-campo, agiu como nenhum antes tinha tido rasgo para o fazer. Como na aposta em Busquets para o mesmo lugar, o maior traço de identidade que deixou no Barcelona.

É certo que a opção por Lahm foi ditada pela força de circunstâncias, como as lesões de Götze, Javi Martinez, Thiago Alcântara e Schweinsteiger. Mas o problema de fundo, a inversão do triângulo central, já estava na cabeça de Guardiola, que desde o princípio pretendia transformar o 4x2x3x1 de Heynckes num 4x3x3 mais parecido com o do seu Barcelona das primeiras temporadas.

O meio-campo/ataque de Heynckes:



O meio-campo/ataque de Guardiola:



A escolha de um concentrado de inteligência – a que os sites de referência insistem em atribuir uns generosos 170 centímetros, talvez contando com os pitons - para um lugar habitualmente destinado ao reforço musculado da defesa diz muito sobre as ideias que presidem a este Bayern. E, mesmo que o regresso em pleno dos outros médios acabe por fazer Lahm voltar ao lugar de origem, diz ainda mais sobre as diferenças de uma época para a outra: este pedaço de tiki-taken mit sauerkraut com que o Bayern coroou o domínio sobre o Manchester City, há uma semana, na Champions, não seria possível com o duplo pivot de Heynckes, por exemplo.



Vejam, e revejam, como o 21 está no centro de toda a geometria. Vejam, em especial, esse momento por volta do 1.45, em que, por uma vez perdida a bola, Lahm sprinta atrás de Navas e lha rouba, com um tackle subtil como um carteirista do metro. É aí, na linha esquerda, que Lahm despe a farda e revela a identidade secreta do super-herói. É aí que o maestro volta a ser um lateral puro, e imenso, capaz de contrariar a maldição de Carragher, e fazer com que milhares de miúdos queiram ser como ele quando crescerem. A prova, afinal, de que, numa sociedade justa e inteligente, todos os bons laterais têm direito à glória, tal como todas as primas caolhas têm direito a sonhar com um slow sóbrio.

«Agora ele era o herói» é um espaço de opinião de Nuno Madureira