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Mauro Jerónimo  |  

A história do jovem português que brilha no Vietname (entre carne de cão e palestras na garagem)

Mauro Jerónimo, treinador do Pho Hien FC, tem aos 35 anos muitas aventuras para contar. Já viveu no Brasil, no Chipre, na China e no Vietname, já trabalhou em cruzeiros de luxo, já formou muitos jovens com o sonho de serem jogadores na Ásia e atualmente bate recordes no futebol vietnamita. O que ele próprio garante que não é fácil para um estrangeiro, e por isso só Henrique Calisto o conseguiu.

Mauro Jerónimo, 35 anos, já soma mais de uma década a treinar. Uma rotura total dos ligamentos no primeiro ano de sénior obrigou-o a interromper a carreira de jogador, quando tentava conseguir um contrato no Odivelas, e atirou-o para a Faculdade.

A partir daí foi sempre a viajar. Esteve no Brasil nove meses, foi meio ano para um cruzeiro de luxo aprender inglês enquanto viajava por todo o mundo, partiu para a China à boleia das academias de Luís Figo e está há quatro anos no Vietname.

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Numa equipa com uma média de idades de 19,9 anos conseguiu lutar até ao fim pela subida, bateu o recorde de melhor ataque, teve o melhor marcador do campeonato e cede atualmente oito jogadores à equipa sub-20 do Vietname: isto num clube da II Liga.

Na China, de resto, despediu-se de um clube a meio de um treino, por causa do presidente, no Vietname já deu uma palestra na garagem de uma velhinha e já teve jogadores que tentaram enganá-lo com carne de cão. Venha daí conhecer uma vida cheia de aventuras.

O Mauro tem sido um bocadinho um saltimbanco do futebol?

Sim, por acaso este trabalho atual é onde estou há mais tempo, quatro anos. Estive dois anos e tal, quase três, na China e agora estou há quatro anos aqui.

Mas também já viveu no Chipre.

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Vivi no Chipre, sim. E estive no Brasil quando andava na faculdade, estive lá nove meses, a estudar, num projeto com a Faculdade de Desporto.

E como é que tudo começou?

Foi através da faculdade. Conheci um colega que era treinador das escolinhas do Benfica, convidou-me logo no primeiro ano para ir para lá estagiar e foi amor à primeira vista. Contribuir para a evolução de um jogador de futebol apaixonou-me e felizmente as coisas foram acontecendo. Depois no meu terceiro ou quarto ano de faculdade fui trabalhar com o meu antigo treinador, o Joaquim Serafim, mais conhecido por Quim, antigo central histórico do V. Setúbal. Ele era o treinador de juniores do V. Setúbal e eu fui para lá com ele. Depois fomos juntos para os seniores do Pinhalnovense e nessa altura percebi que se quisesse seguir esta profissão tinha de sair de Portugal.

Porquê?

Porque nós estávamos com três, quatro, cinco meses de salários em atraso, uma crise financeira brutal. Mas na altura o meu inglês era muito fraco. E foi então que um amigo meu me sugeriu ir para os Estados Unidos e trabalhar durante seis meses numa coisa qualquer, porque tinha um curso oferecido de inglês. Foi o que fiz. Fui trabalhar para a Royal Caribbean, a maior empresa de cruzeiros de luxo do mundo, e estive seis meses a aprender inglês. Foi a aventura de uma vida. Viajei pelo mundo inteiro, porque os cruzeiros faziam todos os continentes, e quando acabei esse curso o meu inglês estava num nível bom. Depois, e com alguns contactos, fui treinar para o Chipre no futebol jovem.

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E como é que foi para a China?

Na altura o Luís Figo tinha um projeto para desenvolver o futebol na China, com um parceiro chinês, e criou várias academias espalhadas por todo o país, em diversos pontos estratégicos. Era um projeto muito interessante e que chegou a ter mais de trinta treinadores portugueses. Um amigo meu, o José Milícias, que tinha conhecido no curso UEFA-C em Inglaterra, estava nesse projeto, avisou-me que precisavam de um treinador, enviei o meu currículo e fui.

E como foi essa aventura?

Muito, muito interessante. Uma realidade diferente, pessoas com muita vontade de desenvolver o futebol e ao mesmo tempo uma grande aprendizagem. Fiquei a trabalhar numa academia em Chongqing, uma cidade de 40 milhões de habitantes, supermoderna, muito desenvolvida e com um grande interesse pelo futebol, como em toda a China.

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Como se dá a passagem para um clube?

Estive um ano na academia do Figo e surgiu a oportunidade para trabalhar no futebol sénior, num clube da Liga 3 chinesa: o Fujian. Era um clube novo, com poucos anos de existência, em Quanzhou, no sul da China. Foi aí que conheci o mister Philippe Troussier, que depois me trouxe para o Vietname.

Era o único estrangeiro nesse clube chinês?

Sim, de resto eram todos chineses e ninguém falava inglês. Na China é raríssimo encontrar uma pessoa na rua que fale inglês. No clube havia um vice-presidente que falava, porque tinha vivido nos Estados Unidos, e depois tinha um tradutor. Tal como ainda acontece aqui no Vietname, em que é a minha sombra, vai comigo para todo o lado.

Mesmo quando tem de fazer coisas como ir às compras, por exemplo?

Não, isso agora já não preciso. No início sim, ia comigo. Agora já estou cá há quatro anos, já arranho umas palavras e já me desenrasco.

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Houve algum episódio que não esquecesse do tempo na China?

Então não? Tantos. Por exemplo, o presidente do Fujian tinha sido jogador da seleção chinesa e tinha uma grande paixão pelo futebol. Eu tinha 27 anos na altura, ele tinha 52 ou 53 e na cultura asiática a idade é uma coisa muito importante, os mais velhos são muito respeitados. Ora como eu tinha 27 anos, ele gostava de se meter no meu trabalho. Houve uma ou outra vez que deixei passar, embora lhe tivesse dito que tinha de me dar espaço para trabalhar. Até que houve um dia em que estava a fazer treino tático, dividi o plantel em dois grupos, eu fiquei com um grupo e o meu adjunto chinês com o outro. Ele foi para o lado do meu adjunto, claro.

Não correu bem, portanto...

Comecei a ouvir um barulho muito grande do outro lado, olho e estava o presidente junto à linha lateral a discutir com o meu adjunto. Parei o exercício, fui ao outro lado e enquanto estava a andar o presidente entra dentro de campo e começa a movimentar os jogadores: ‘Tu ficas aqui, tu vais para ali’. Eu fiquei furioso. Isto é algo impensável em Portugal. Cheguei ao pé dele e disse-lhe que tinha de sair de campo, que estava a interferir no treino e que não podia ser assim. ‘Mas ele está a fazer tudo mal, o lateral tem de ficar ali e o médio jogar por aquele lado’. Fiquei cego. Vinha com o quadro tático, dei-lhe com ele na mão e disse: ‘Então fique você com a sessão’. Fui-me embora fulo da vida. Abandonei o treino, fui diretamente ao meu escritório e meti todas as minhas coisas dentro de duas caixas. Liguei para um amigo taxista, carreguei tudo e levei as coisas para o meu apartamento.

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Demitiu-se?

Demiti-me. Mas é curioso como a cultura asiática é diferente da nossa. No dia a seguir convidaram-me para beber chá no escritório do presidente, estivemos a falar e tal, tudo tranquilo. Eu vim embora, mas como a minha mulher estava a trabalhar na China, decidimos ficar mais uns meses. Passado algum tempo ligaram-me, pediram-me para ir novamente ao escritório e perguntaram-me se queria ir trabalhar com as seleções sub-21 e sub-23 de Taiwan. E eu fui. O presidente do Fujian era grande amigo do presidente da federação de Taiwan e ainda me arranjou trabalho. Aliás, foi ele, o presidente com quem tinha discutido, que me convidou.

E como é que no meio disso tudo se dá o contacto com o Phillipe Troussier?

O Phillipe Troussier treinou muitos anos na Superliga da China, houve um ano em que era diretor desportivo do Chongqing Dangdai, para reorganizar o clube de cima a baixo, e andava a viajar pela China à procura de jovens. Alguém o avisou que no Fujian todos os jogadores tinham menos de 22 anos, que o clube era orientado por um português e que ele devia passar por lá. Foi o que aconteceu. Ele esteve lá uma semana, gostou do meu trabalho e passado um ano e meio ligou-me para ir com ele para um projeto novo no Vietname.

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Qual era o projeto no Vietname?

Era um projeto de vários anos, que começou em 2018 e tinha como objetivo o Mundial 2026. A Federação do Vietname fez um acordo com a PVF Academy, que é um centro de alto rendimento aqui no Vietname, com umas condições fenomenais: sete campos de futebol, estádio, hotel com 200 e tal quartos, uma coisa brutal, ao nível dos melhores da Europa. A PVF é uma empresa privada, que forma jogadores dos 8 aos 20 anos e que nunca teve uma equipa sénior. Só formava jogadores que depois iam para outros clubes. O Phillipe Troussier foi convidado para ser o cérebro deste projeto da federação com a PVF Academy: desenvolver jogadores jovens e treinadores locais, com o objetivo de qualificar a seleção para o Mundial 2026.

Mas, entretanto, acabou por sair...

Sim, chegámos em 2018 para aí umas quinze pessoas: treinadores, médicos, fisioterapeutas, analista de vídeo, analista de performance, enfim. Eu vim como responsável pela categoria sub-19. Fizeram um investimento brutal para trazer esta gente toda. Mas em 2020 o Phillipe Troussier teve de sair, porque tinha um problema no joelho e precisava de ser operado, e resolveu terminar contrato. Eu continuei como responsável pelos sub-19. Houve mudanças nos investidores do projeto, que foram fazendo mudanças também no staff, uns saíram porque quiseram, outros foram demitidos e sou o único que ainda continua da equipa inicial.

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Ainda trabalha para a federação?

Não, estou a trabalhar só para a PVF Academy. Agora o projeto é só da PVF, que quer fazer uma coisa semelhante à Aspire Academy, no Qatar: desenvolver jogadores, participar em competições e fazer evoluir o futebol no Vietname.

Mas está a treinar uma equipa sénior, não é?

Sim, eu era o treinador de sub-19, fomos campeões dois anos seguidos e surgiu a oportunidade para trabalhar na equipa principal, que tinha surgido entretanto: é a Pho Hien FC, que é o nome do patrocinador. É uma equipa só com jogadores formados na academia, todos com menos de 22 anos e que disputa a II Liga. O ano passado estivemos até à última jornada a lutar pela subida à I Liga, mas faltou-nos maturidade nos últimos dois jogos.

E é verdade que no Vietname as mulheres estão proibidas a entrar no balneário ou no autocarro das equipas?

Isso é uma superstição, mas está a mudar.  Aqui no clube onde trabalho elas já viajam no autocarro. Mas no início, quando cheguei, havia esse estigma de que as mulheres davam azar. Sempre que uma senhora entrava no autocarro era um filme, sobretudo se fosse antes do jogo.

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Também dizem que os jogadores não comem ovos em dias de jogo...

Sim, sim, nesse aspeto eu não forço ninguém a comer e há vários jogadores que não tocam nos ovos. Basicamente o ovo simboliza o zero e eles acham que dá azar. Já brinquei com o chef para em dia de jogo fazer só ovos mexidos.

Como é viver no Vietname?

Vive-se muito bem. Estamos a falar de um país com paisagens magníficas, com uma grande história, um país que sobreviveu a várias guerras, um país que tentou ser conquistado pelos franceses, pelos chineses, pelos japoneses, pelos americanos e sempre conseguiram ganhar as guerras. É um país lutador, um país muito grande, com cem milhões de habitantes, costeiro, com praias magníficas e uma parte montanhosa. Tem alguma da cultura chinesa também, porque faz fronteira com a China e há aqui obviamente uma grande influência do passado da China.

E como são as pessoas?

As pessoas são simpáticas, um pouco tímidas com os estrangeiros e um pouco reservadas, principalmente a geração mais velha, são pessoas que não gostam de se misturar com os estrangeiros, não é muito fácil fazer amizades aqui. Mas sempre fui bem recebido. Depois o Vietname tem uma coisa curiosa porque é dos poucos países asiáticos que escreve com o alfabeto latino, por influência de um padre português, o jesuíta Francisco de Pina, que esteve cá a espalhar o cristianismo e ensinou o latim. Obviamente é uma língua completamente diferente da nossa, mas é interessante que a escrita é com o alfabeto latino, ao contrário por exemplo dos chineses, dos japoneses ou dos coreanos.

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O Mauro está completamente adaptado ao Vietname?

Sim, sim, completamente adaptado. Uma coisa que sempre me preocupo foi perceber as pessoas: a sua cultura, como é que pensam, como comunicam, como se respeitam umas às outras. Isso é fundamental para não andar em brigas e confusões, porque às vezes acontece com muitos treinadores estrangeiros. À exceção de Henrique Calisto, há muito poucos treinadores estrangeiros a ter sucesso no Vietname.

A sua esposa vive aí consigo?

Sim, sim. E tenho uma filha de três anos, feita no Vietname e que foi nascer a São Miguel, que também vive connosco. Depois há outra coisa, nós aqui estamos perto da Tailândia, das Filipinas, da Malásia, do Cambodja, do Laos. Num instante dás um salto aqui ao lado para conhecer e passar um bom momento.

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Costuma viajar muito aí?

Sim, sempre que posso. Este sábado, por exemplo, vou para a Indonésia. Aproveito que aqui estamos de férias durante duas semanas e vou para Indonésia. Vou a Bali e depois a uma ilha lá próxima.

Qual foi a situação mais bizarra que já viu viveu no Vietname?

Não sei, houve tantas. Houve um dia em que tínhamos um jogo fora, o pessoal da administração cometeu um erro qualquer e marcou mal o hotel. Fomos parar a um hotel de uma estrela, no meio do nada, e não conseguimos mudar. Houve treinadores a dormir com jogadores, enfim, uma grande confusão. Antes do jogo queria fazer uma reunião, para mostrar a apresentação em powerpoint e dizer como íamos jogar. Não havia nenhuma sala, nada, tivemos de ir procurar um sítio. Fomos bater à porta da casa ao lado, abriu uma senhora de idade, que nos levou para a garagem, com para aí dez motas estacionadas lá dentro. ‘Eh pá, será que não há outro local?’ Disseram que não, que não havia tempo para procurar. Tirámos as motas todas lá dentro, metemo-las na rua, levámos mesas e colocámos o projetor contra uma parede.

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Essa história é fabulosa...

O hotel por azar não tinha nenhuma impressora e eu precisava de imprimir as bolas paradas, essas coisas todas para levar para o jogo. Então o meu treinador de guarda-redes andou a ver no Google Maps onde podia imprimir, não encontrou nada. No dia do jogo, ele não estava no meeting, perguntei por ele e disseram-me que andava de mota a tentar encontrar um sítio para imprimir. Estávamos lá no meeting e chega ele. Mas em vez de estacionar na rua e entrar devagarinho, entra com a mota pela garagem, todo contente com as folhas na mão, a fazer um barulho infernal e a assustar toda a gente. Ainda tinha mais três ou quatro slides para mostrar, mas desisti. ‘Eh pá, vamos embora, acaba aqui’.

E em termos de comida não houve situações estranhas?

Sim, eles cá comem tudo. Uma vez, num jogo fora, os jogadores quase me enganavam. Disseram-me que havia um prato especial daquela cidade, que tinha de provar, que ia adorar e levaram-me lá a um restaurante. Quando passei a porta, tive ali um instante de que alguma coisa não batia certo. Perguntei aos jogadores que animal era e eles a insistir que era porco. Olhei lá para dentro para a cozinha: ‘Isto não é porco’. Era cão, não é? Era um restaurante especializado em churrasco de cão. Logo eu, que sou um dog lover. Nunca na vida.

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Vê-se a continuar nos próximos tempos no Vietname?

Honestamente não sei. Tenho contrato até outubro e estou grato por estar a fazer o que gosto. Tenho 35 anos e já treino há 12, por isso quero continuar a trabalhar, a evoluir, a aprender e quero trabalhar numa I Liga. Estou próximo e sei que vai acontecer.

Em qualquer país?

Seja onde for. Claro que se fosse em Portugal, melhor, estava perto de casa, mas se não for em Portugal será noutro local. Cada vez que sais da tua zona conforto aprendes mais, por isso não quero estagnar. Vamos ver, depende das ofertas de trabalho que surgirem.

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