Já lá vão quase duas décadas desde as últimas vezes que as acelerações de Paulo Futre espalharam o pânico nos relvados. E no entanto, passado todo este tempo, bastam cinco minutos de conversa para percebermos que o vulcão continua ativo. Simplesmente, toda a energia da passada larga é agora canalizada para as palavras e memórias: o entusiasmo que põe em tudo aquilo que diz só tem paralelo na confiança com que partia para cima do marcador direto.

Futre nunca foi um jogador convencional. E nunca será um entrevistado convencional. Quando o árbitro apitou para o fim da conversa tínhamos dois, três, quatro golos para dissecar em memórias e palavras. Tudo começou mais ou menos assim:

Paulo, enquanto pensas nos pormenores à volta do golo vou pesquisar imagens e vídeos. Então sempre vais falar no da final da Taça do Rei com o Real Madrid, em 1992, certo?
(convicto) Sim, sim! Vamos por esse! Em importância e espectacularidade acho que é o golo da minha vida... (pausa) Olha... (hesitando, como quem fixa o defesa antes de arrancar) procura também um no Mestalla, ao Valencia, em 1989. São os dois mais espectaculares que marquei (pausa) . Esses...(hesitando) e também o que fiz à Estónia, no estádio da Luz, pela Seleção, lembras-te?»

Claro que me lembro: estava lá, no estádio, novembro de 1993. O jogo tinha começado há menos de dois minutos. Foi há quase 22 anos e não estou perto de esquecer isto:



É impossível amarrar Futre à linha - ou obrigá-lo a seguir rigorosas intruções táticas para falar só de um golo – por isso aproveitemos para transformar este espaço numa Anatomia de Dois Golos, ou mais. Futre tem direito a eles - e mais ainda têm os miúdos que não tiveram a sorte de o ver jogar.

A primeira saída pela porta grande

Estamos a 2 de setembro de 1989, a primeira jornada da Liga arranca no Mestalla: um Valencia-At. Madrid é batismo exigente para a terceira temporada de Futre com os «colchoneros». Com Javier Clemente no comando, as coisas parecem bem lançadas para a equipa lutar por troféus. A receita é simples: defesa compacta e agressiva, muitos passes em profundidade para a explosão de Futre. A seu lado, atraindo um dos centrais, o brasileiro Baltazar, que em 1990 trocaria o Calderón pelas Antas, fazendo o percurso inverso ao do português. O At. Madrid era uma máquina de contra-atacar, Futre sentia-se como peixe na água.

«O Clemente era um dos maiores treinadores na altura, estávamos muito animados nesse início de época. O Mestalla era um campo sempre difícil, mas dessa vez abri mesmo o livro. Marquei um primeiro golo de livre, à meia hora e ofereci outro ao Baltazar, ainda antes do intervalo, mas o remate dele saiu por cima»

A ganhar por 1-0 ao intervalo, At. Madrid vai resistindo à pressão do Valencia. Aos 63 minutos vem o momento mágico do seu capitão. Tudo começa num passe longo de Pizo Goméz ( quem? perguntam vocês, com toda a razão) que o põe a disputar um sprint ao longo da lateral direita com o seu marcador direto, Torres. A receção suave de pé esquerdo faz a bola a rolar, rumo à linha de fundo, e o segundo toque antecipa o carrinho de Torres por uma fração de segundo, tirando-o da jogada. No momento em que Futre fica encurralado entre a linha de fundo e o central Arias, que vem para dobrar o colega, a velocidade extra e a passada larga permitem-lhe partir para outra. Pisa a linha de fundo e começa a correr na direção oposta, cruzando-se com Arias no caminho. Só faltou acenar uma despedida irónica: dois toques, em rápida sucessão, encaminham o 10 do Atlético para a quina da área e deixam o central no lado errado do filme.

O resto é uma mistura explosiva de potência, habilidade e paciência. Passo a passo, Futre vai conquistando espaço e ângulo, ameaçando várias vezes o remate. Ao todo, são oito toques de pé esquerdo, a preparar o nono, um míssil que bate Ochotorena entrando na rede superior, lá onde a coruja dorme.

«Este golo tem tudo. Tem velocidade, habilidade e força. Muitas vezes a finalização destes lances em velocidade já não tem a força ou a lucidez necessária. Mas neste caso a finalização é boa, a força com que sai é consequência da corrida que faço: depois daquele pique para tirar o lateral do caminho mantenho-me embalado, vou ameaçando durante vários segundos até ganhar espaço para rematar»


Impressiona a forma como todo o movimento, até à finalização, é feito sem uma pausa para recuperar fôlego. Ainda mais difícil para um habitual fumador como Futre, apesar dos seus protestos em contrário ( «Eu fumava muito a seguir aos jogos, mas depois reduzia. Entre sexta-feira e o dia do jogo fumava muito menos. Nunca senti que me prejudicasse em campo»). Mas há ainda outro pormenor que torna este golo especial. Ouçam-no com atenção, no fim do vídeo: são os aplausos dos adeptos do Valencia que ainda hoje, passados 26 anos, ecoam nos ouvidos de Paulo Futre.

«Na minha carreira em Espanha saí três vezes pela porta grande – que é a expressão espanhola para quando és ovacionado pelos adeptos adversários. Uma em Valência, uma em Bilbau e outra em Barcelona, mais tarde. Essa foi a primeira de todas...»



Fato de gala para as finais

Seriam razões suficientes para fazer deste o golo na carreira de Futre. Só que não: o que aconteceu a 27 de junho de 1992, no Santiago Bernabéu é, de entre todas as memórias que povoam uma carreira excecional, aquela que ainda hoje mais lhe faz brilhar os olhos.

«Quando olho para a minha carreira eu nunca falo na primeira Copa do Rei, que ganhámos em 1991. Vejo-a como uma coisa normal, apesar de termos afastado Barcelona e Real Madrid pelo caminho. Na minha memória, a Copa é esta, a de 92. Ganhar uma final ao Real, no Bernabéu, era como uma Champions, para nós, jogadores, e para os adeptos. A emoção que senti quando a conquistámos é muito parecida com a que senti quando fui campeão europeu pelo FC Porto, cinco anos antes.»

Para ajudar ao contexto ficam anos e anos de subalternidade face os rivais da capital. E ainda uma rivalidade de estimação para com o guarda-redes «merengue», Paco Buyo, com quem Futre protagonizou vários desentendimentos nos 13 dérbis em que se defrontaram. Só o passar dos anos transformou o rancor em amizade: hoje em dia posam em conjunto, sorridentes, recordando as maldades recíprocas dos tempos dourados. Mas naquela altura não havia espaço para sorrisos.


Futre e Buyo em rota de colisão

«Da primeira vez que defrontei o Buyo pelo Atlético, em 87, ganhámos 4-0 no Bernabéu e esse jogo já deu que falar. Ao segundo, a coisa piorou. E no terceiro, outra vez no Bernabéu, foi a confusão generalizada. Mais do que rival, ele era meu inimigo. E nessa altura, em 1992, já dava para escrever um livro só com os incidentes entre nós»


Tudo isto ajuda a perceber que era um Paulo Futre com a motivação das grandes tardes aquele que voava sobre o relvado do Bernabéu. Luis Aragonés era o treinador do Atlético e, para não variar, a equipa recorria ao contra-ataque para contrariar o talento de Butragueño, Michel, Hagi e companhia. Em especial depois de um livre teleguiado de Schuster ter inaugurado o marcador para os «colchoneros», logo aos 7 minutos. À passagem dos 29 minutos, Schuster começou a construir um ataque que levou a bola ao flanco esquerdo do Atlético. O lateral esquerdo, Soler, viu Manolo, cúmplice habitual das arrancadas de Futre, com espaço no meio. Manolo foi o primeiro a adivinhar a diagonal que o português começou a desenhar, do meio para a esquerda. Sempre com um passo de atraso, Chendo, capitão do Real, acompanhou-lhe o movimento, procurando travar-lhe o caminho. O passe foi um convite à explosão.



«Mais uma vez, este golo começa em velocidade, mas tem mais do que isso. Dou só um toque para controlar a bola, mas não perco rapidez. Estou numa posição lateral, com pouco ângulo, e já só tenho aquela oportunidade de finalizar, mais um passo e ele tapa-me o caminho. Já só tenho o poste mais próximo, e é para aí que chuto, com a alma toda»




Desta vez, um toque apenas, de pé direito, a preparar o remate que faz ponto final-parágrafo na história daquela final. Dali a menos de 80 minutos, Futre estará na tribuna, a receber o troféu das mãos de Juan Carlos. «Tenho muita satisfação em entregá-lo a um português», disse o Rei, face um Paulo Futre mais emocionado do que nunca.



A vocação para vestir o fato de gala nas grandes ocasiões voltaria a ser vista dali a menos de um ano. Local: estádio Nacional, no Jamor. Ocasião: final da Taça de Portugal, Benfica-Boavista, 5-2. Foi a final do Futre, que com dois golos e uma assistência tomou conta do espectáculo. O seu primeiro golo, na altura a fazer o 3-1, fez lembrar o do Bernabéu, embora com menos pressão do defesa:

«É mais ou menos, sim. O movimento é parecido, a finalização é semelhante, para o primeiro poste, em força. Mas o golo de Madrid é mais descaído, a posição é mais lateral e a execução do remate é mais difícil. São duas finais marcantes e, se vires bem, sempre fui jogador para grandes jogos. Alguns correram-me mal, é verdade, mas em 90 por cento dos grandes jogos que disputei estava lá, a mostrar-me presente.»

Feita a Anatomia do Golo. Dos Golos. A energia de Futre continua a tomar conta do palco, seja o Bernabéu, o Jamor, ou uma simples rubrica para uma revista online. A última palavra tem de ser dele, claro. Para dizer uma coisa tão desconcertante como um drible em velocidade: nenhum destes quatro golos é o golo, afinal.

«Sabes qual foi mesmo o melhor golo que marquei? Já procurei em todo o lado mas não encontro imagens disso em lado nenhum. Foi no verão de 1988, no torneio de Atenas. Um At. Madrid-Peñarol para o 3/4º lugares. O Peñarol fez o 1-0, a bola foi ao centro, o Baltasar tocou para mim. Arranquei com a bola no grande círculo e fui fintando toda a gente, só parei lá dentro. Assim que voltei para trás pedi logo a substituição»


É Paulo Futre, senhoras e senhores. Quem não viu, não sabe o que perdeu.