1- O contexto

A 8 de março de 2006, quando o Benfica pisou o relvado de Anfield, pela quarta vez no seu historial europeu, nunca tinha estado sequer perto de vencer na casa mítica do Liverpool. Nenhuma equipa portuguesa o tinha conseguido, aliás. Mesmo com Chelsea, Manchester United e Arsenal a tirarem supremacia interna aos «reds», estes eram ainda um colosso europeu de primeira linha. E, nessa edição da Champions, defendiam o quinto título de campeão europeu, conquistado dez meses antes, em Istambul, na final mais louca de todos os tempos.

Acontece que o Benfica dessa temporada, instável nas provas domésticas, e já com o título a escapar-se para o FC Porto, dava sinais de estar talhado para bons desempenhos europeus. Na fase de grupos tinha deixado pelo caminho o Manchester United, com uma vitória na Luz, na última jornada, a garantir-lhe o apuramento, surpreendendo a Europa em dezembro. Depois, em fevereiro, na primeira mão dos oitavos, uma janela de esperança para os adeptos do Benfica entreabriu-se a seis minutos do fim, quando a organização defensiva dos homens de Rafael Benitez foi desmontada por este movimento circular de Luisão, após livre de Petit:

 

Quatro dias antes do jogo decisivo, o Benfica recebeu nova injeção de moral, ao ganhar o clássico com o FC Porto, na Luz, graças a um golo do reforço de inverno, o francês Laurent Robert. Mas, na véspera do jogo, um imprevisto obrigou Koeman a rever os planos. Simão Sabrosa, o capitão de equipa, ainda guarda na cabeça todos os «frames» desses dias:

«Já em Liverpool, no último treino antes do jogo, o Petit lesionou-se. O Beto entrou para o onze, com a missão de acompanhar o Gerrard por todo o campo. A verdade é que fez um grande jogo, praticamente não o deixou respirar. E todos sabem a influência que Gerrard tinha no Liverpool, pelo grande jogador que ainda hoje é».

Essa influência já foi descrita em mil ocasiões diferentes, mas talvez nenhuma tão determinante como  esta. O facto é que o Benfica, preparado para ser pressionado desde o apito inicial, poderia sofrer um pouco menos diminuindo a influência ao capitão dos «reds». A entrada de Beto, herói improvável do jogo com o Manchester, viria a ser providencial também para a história desta partida.

2- O jogo

 

Depois de uma lesão que o afastara dos relvados durante todo o mês de dezembro, o protagonista desta história, Simão Sabrosa, estava a recuperar a forma que, um ano antes, o fizera estar muito, muito perto, de reforçar o Liverpool (mais sobre isto lá para diante).

Sendo um destro, a sua preferência pela faixa esquerda, onde mais facilmente podia procurar espaços interiores para o remate, era uma das marcas táticas do Benfica desses anos. E a chegada de Robert, um esquerdino, não tinha modificado as prioridades na cabeça de Koeman.

«Nunca fui um jogador de remate em potência, no meu caso foi sempre mais colocado, e com efeito. Às vezes saía um pouco mais distante do poste, ou para as mãos do guarda-redes, mas o movimento da esquerda para o meio era um dos meus pontos fortes. O Robert tinha chegado em janeiro, e até preferia jogar na esquerda, mas a equipa já estava montada assim. E com o remate potente que tinha, isso só o veio beneficiar. Hoje em dia é mais comum as equipas jogarem com os extremos 'trocados', mas na altura nem tanto.»

Com Beto e Manuel Fernandes a aguentarem o meio-campo, na ausência de Petit, Koeman apostou em quatro homens para as saídas em contra-ataque que, desejavelmente, serviriam para interromper o previsível assédio do Liverpool desde o minuto inicial. A arrumação da equipa era aproximadamente um 4x2x3x1, com Robert, Geovanni e Simão prontos para sairem no apoio a Nuno Gomes. Não por acaso, virão a estar os quatro envolvidos no momento decisivo.

3- O momento

De acordo com o guião, a pressão inicial do Liverpool encostou o Benfica atrás e traduziu-se em oito remates «reds» nos primeiros 20 minutos. Crouch e Carragher desaproveitaram ocasiões claras perante Moretto, no topo onde cerca de 3 mil adeptos do Benfica sofriam com a equipa. Mas, aos 29 minutos, a história do jogo começou a mudar: Nuno Gomes serviu Geovanni e o remate deste, em arco, sobrevoou Reina, levando a bola a esbarrar na trave do lado do Kop. Na recarga, Simão cabeceou para as mãos do guarda-redes.

Como tantas vezes, nestes jogos, basta um incidente para fazer mudar o ascendente. O remate de Geovanni introduziu um grão de dúvida na pressão inglesa e escancarou a esperança dos portugueses, entreaberta pelo golo de Luisão, duas semanas antes.

Tudo, até aqui, nos conduziu a este minuto 36. A confiança em crescendo dos jogadores do Benfica, a frustração pelo cerco sem consequências, do outro lado. Após um lançamento lateral de Alcides, Nuno Gomes rouba uma bola a Xabi Alonso e atrasa-a para Manuel Fernandes. Este faz um passe longo para a corrida de Geovanni, que pressiona Carragher e o obriga a um primeiro erro: um mau passe, a meia dúzia de metros da área do Liverpool. Robert vem em corrida, mas Warnock antecipa-se em carrinho e corta para o meio: segundo erro, já que apenas Nuno Gomes está por ali. E o papel do avançado, que prolonga o passe para a esquerda é decisivo para o que vai acontecer a seguir.

«O Nuno foi sempre fantástico neste tipo de lances. A tabelar e a arrastar defesas, a criar espaços para os outros. Se virem bem o lance, ele dá-me a bola e não pára, segue logo para a esquerda. Esse movimento acaba por levar um defesa com ele. Eu tinha o lateral em cima de mim (Finnan), e os centrais (Traoré e Carragher) estão a chegar para a cobertura. Mas o movimento dele cria ali um momento de hesitação, que me permite ganhar espaço. Quando recebo a bola, já sei que tenho de fletir para dentro e depois tentar dar um corte na bola, para a levar ao poste mais distante. Teria sido muito mais difícil sem aquele movimento do Nuno»
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Se há dois erros de jogadores do Liverpool no início do lance, ainda que forçados pela pressão de Geovanni e de Robert, a partir do momento em que Nuno Gomes fica com a bola é tudo mérito. O passe lateral é instantâneo, e permite a Simão uma receção orientada que encaminha a bola para o meio.

Finnan, a fazer o movimento contrário, dá um metro e meio de espaço ao número 20 do Benfica, que ensaia um primeiro movimento de remate. Traoré e Carragher hesitam. É tudo coordenado na perfeição com a cortina de Nuno Gomes, que corre para o lado oposto. Tudo isto serviu para ganhar um passo. Um passo é, muitas vezes, o suficiente para jogadores de classe. Especialmente se estes sabem antecipadamente o que têm para fazer.

«Eu estava a atravessar um bom momento, já tinha marcado alguns golos assim e este era daqueles movimentos que fui trabalhando e com os quais me sentia confiante. Conhecia Reina, tinha trabalhado com ele no Barcelona. Sabia, pela forma como ele se posicionava, que a minha melhor hipótese era tentar o remate em arco, para o meu lado direito. Quando vejo a trajetória da bola e percebo que vai entrar, é a loucura. Passa-nos tudo pela cabeça, mas recordo o enorme alívio, por aquele golo nos ter feito sair de uma situação muito difícil. Depois corro pelo campo todo, até chegar ao nosso banco. Toda a equipa sentiu o golo como eu, vieram a correr comigo. Parei em frente do Miccoli, que era o animador do grupo e estava sempre a brincar. Ele tinha-me dito que eu ia marcar, e eu parei à frente dele, a dizer-lhe 'tinhas razão!'»

 

4- O aplauso

A eliminatória decidiu-se aí. O Liverpool ainda carregou, e voltou a namorar os postes de Moretto, mas, mesmo defendendo muito, o Benfica raramente perdeu o controlo das operações, até ao golo libertador e definitivo de Miccoli, a um minuto do fim. Um golo marcado na baliza dos adeptos do Benfica, em apoteose, ao contrário daquele apontado por Simão, na primeira parte, no lado do mítico Kop.

Quatro anos mais tarde, o internacional português voltaria a ser feliz em Anfield, pelo At. Madrid, garantindo a passagem à final da Liga Europa, que viria a conquistar pelos «colchoneros». A segunda viagem feliz a um dos palcos mais míticos do futebol europeu. As razões, nessa noite de março de 2006, ficaram bem à vista de todos, já depois de o jogo ter acabado:

«Na época anterior tinha estado para assinar pelo Liverpool, mas o Benfica acabou por não autorizar a minha transferência. Já então sabia que os seus adeptos criavam um ambiente especial nestas noites. Mas tivemos a prova disso quando estávamos a celebrar a passagem, com os adeptos do Benfica, e vimos que no outro topo os do Liverpool ainda lá estavam, a aplaudir-nos e a aplaudir os seus jogadores. Pelo ambiente, pela prova, pela importância e pelo palco, é o primeiro golo que me vem à cabeça. E é também aquele que os adeptos do Benfica mais me recordam»
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