A angústia do guarda-redes no momento do penálti é tema batido. Até já deu origem a um livro de ficção do austríaco Peter Handke, em 1970, que por sua vez resultou num filme do alemão Wim Wenders, em 1972.

Embora apelativo, o título é alvo de críticas recorrentes dos que prestam atenção aos pormenores: num penálti, a angústia real está do lado do marcador, que é quem tem a responsabilidade de fazer golo. Não do guarda-redes, que tem pouco a perder, com apenas 25 por cento de hipóteses de evitá-lo.

Mas a situação específica, a que o título se refere, tem a ver com a tomada de decisão nos momentos anteriores ao apito. O guarda-redes deve antecipar o movimento, procurando adivinhar o lado escolhido pelo avançado ou esperar para reagir depois, contando que o adversário tenha uma execução imperfeita? Mesmo quem nunca deu um pontapé numa bola, ou jamais tentou uma defesa, pode definir-se perante a vida com a resposta a essa pergunta.

O que passa pela cabeça de um avançado no momento da decisão é assunto muito menos batido e debatido. Talvez porque, entre aquilo que não sabe definir por palavras - por ser puramente intuitivo – e o que não está interessado em revelar – para não dar trunfos ao adversário – sobre pouco espaço para satisfazer a curiosidade de quem pergunta. Mas há exceções, claro. E, assim, chamamos  Pedro Pauleta à caixa central.



O contexto

A rapidez com que, desafiado por telefone, Pedro Miguel Carreiro Resendes escolhe o golo de uma vida só tem paralelo com a rapidez de pensamento e execução que lhe permitiu marcá-lo. Fiquemos com a data, o local e o jogo, antes de darmos uma volta pelo passado: 25 de abril de 2004, Parque dos Príncipes, PSG-Marselha. Já aí voltaremos, a esse mágico 12º minuto. Agora, venha o contexto.

Num futebol português treinado para avaliar os intérpretes pela cor da camisola que vestem, a carreira de Pauleta foi exceção de uma ponta a outra. O desafio à tradição começou nas origens: a ilha de São Miguel não era, até aos anos 90, filão habitual de talento para o futebol português. Prosseguiu pelo facto de nunca ter jogado na I divisão portuguesa, mesmo permanecendo em clubes lusos até aos 23 anos. Terminou no exotismo de ser um matador puro, essa raça exótica que remata primeiro e pergunta depois, contra o código genético do futebol nacional.



Quando esta história começa, Pauleta já superou quase todos os patamares, de passo improvável em passo improvável. Da II divisão portuguesa para a espanhola. Desta para La Liga, sendo campeão na Corunha. Daí para Bordéus, onde estabiliza, já com estatuto de titular na seleção: ao longo de três épocas acumula distinções e troféus individuais, entre eles o de melhor jogador do campeonato, eleito pelos seus pares.

Na mudança para Paris, no Verão de 2003, por 10 milhões de euros, Pauleta tem a a responsabilidade de confirmar o estatuto de fenómeno, traduzido em mais de 90 golos nos 130 jogos pelo Bordéus. Sem angústias, sempre sem angústias, começa aí mais uma caminhada, rumo à condição de melhor goleador de sempre dos parisienses, com 109 golos em partidas oficiais.

O clássico

Nessa tarde de domingo, Pauleta está a três dias de completar 31 anos e a mês e meio de jogar o Europeu em Portugal. Faltam seis jornadas para o fim do campeonato, e o PSG persegue o líder Lyon, tendo menos três pontos. Com a visita do Marselha ao Parque dos Príncipes joga-se o maior clássico da Ligue 1 e esta é a altura ideal para Pauleta entrar na conversa.



«Não tinha jogado grandes clássicos até aí. O Corunha-Celta tinha alguma mística, mas a rivalidade entre PSG e Marselha era claramente maior. Para o nosso público, esse era o jogo mais importante do ano. E não tenho dúvida de que o que aconteceu nessa tarde, para mais no meu primeiro clássico em casa, foi muito importante para reforçar a relação com os adeptos. Tal como os golos que continuei a marcar ao Marselha, depois disso.»

Na primeira volta, em novembro de 2003, o PSG tinha vencido por 0-1, no Vélodrome, com um golo no último minuto, de Fiorése, em recarga a remate de Pauleta. Em janeiro, para a Taça, o efeito ciclone tinha sido ainda mais forte, com um golo aos 9 minutos, abrindo caminho a nova vitória no Velódrome, esta por 2-1. Foi o seu primeiro golo a Barthez, mas não seria o último. Nem o melhor.



Em época de estreia, faltava a Pauleta o primeiro grande clássico no Parque. E foi bom que o calendário o tivesse projetado para uma fase tão adiantada da época, em finais de abril: o tempo necessário para que as diagonais do avançado açoriano fossem entendidas e processadas pelos companheiros de equipa, casos dos argentinos Heinze e Sorin, do sérvio Ljuboja, do brasileiro Reinaldo ou do também português Hugo Leal, entre outros. A coordenação entre os passes longos e a desmarcação de Pauleta torna-se numa imagem de marca dessa equipa, treinada por Vahid Halilhodzic.



«Por essa altura os jogadores do PSG já me conheciam bem. Claro que os 90 golos no Bordéus ajudaram a ter estatuto, quando cheguei, mas é diferente trabalhar todos os dias e conhecer a fundo as características de alguém. E com jogadores da qualidade do Sorín torna-se mais fácil fazer com que as coisas resultem»

Não é por acaso que Pauleta menciona o internacional argentino. É Sorín quem tem a bola nos pés, no início dessa jogada. E é ele quem vê o movimento de Pauleta, nas costas de uma linha defensiva adiantada. Quando o passe entra, do meio para a esquerda, obriga o português a perder o enquadramento com a baliza. E é aqui que Pauleta nos vai permitir algo de raro: eis, em discurso directo, o acesso ao interior da cabeça de um goleador, a tomar decisões a 60 frames por segundo, como num videojogo.

«Quando o Sorin me faz o passe eu estou no limite do fora de jogo, mas em situação legal. Quando me viro, percebo que já ganhei o espaço ao defesa. A primeira coisa em que penso é que o guarda-redes é o Barthez e que ele, com a sua experiência, não iria mergulhar a fazer a mancha. Por um lado, era um guarda-redes que aguentava em pé o máximo de tempo. Por outro, ia tentar evitar cometer penálti. Sabendo que ele não ia cair, corro em direção à bola a pensar que teria de puxá-la para a lateral, de forma a arrastá-lo para fora da baliza.»


É precisamente isso que acontece: um primeiro toque de pé direito permite a Pauleta afastar a bola do caminho do guarda-redes e leva-a para fora da grande área, a um metro da linha de fundo. É então que Barthez faz um rápido cálculo mental: a distância e o ângulo ao dispor de Pauleta dão-lhe tempo, em condições normais, para travar a corrida e recuperar posição na baliza. Tanto mais que, nas suas costas, o brasileiro Ferreira optou por cobrir a baliza, pondo-se na linha de golo. 

O cálculo de Barthez está correto, mas Pauleta, mais rápido em tudo, tinha também processado a informação mais depressa. Não só antecipou a reação do guarda-redes como já tinha desenhado, na sua cabeça de matador, a única solução instantânea para o problema.

«A verdade é que ser o Barthez me ajudou a decidir mais depressa. Ser um guarda-redes tão bom ajudou a que o lance fosse resolvido assim. Porque as pessoas podem não ter noção, mas num segundo passa-nos tudo isso pela cabeça quando vamos em direção à baliza, só com o guarda-redes pela frente. Se fosse outro tipo de guarda-redes tentava chegar à bola e esperava que ele mergulhasse, para fazer penálti sobre mim. Mas sabia que desta vez isso não ia acontecer. Por isso, ao chegar à bola já tinha decidido aproveitar o momento em que ele tentasse voltar à baliza»

No momento em que as corridas de Pauleta e Barthez tomam direções opostas e o açoriano acelera o passo para pisar a bola e rodar sobre ela enta mais uma variável nesta equação complexa, trazendo de volta um golo ocorrido sete anos antes. Em outubro de 1997, com Pauleta a jogar a primeira época no escalão principal espanhol, o italiano Christian Vieri, então no At. Madrid, tinha feito arregalar os olhos de espanto a meio mundo, com este golo ao PAOK Salónica, para a Taça UEFA:



Ressalvadas as diferenças, o golo de Vieri abre pistas à solução mágica de Pauleta, sete anos depois. Mas, sem ponta de chauvinismo, quanto mais se revêem os lances, mais valorizada fica a execução do açoriano. É verdade que Vieri está sobre a linha de fundo quando ousa o remate impossível de pé esquerdo, e que Pauleta estará, talvez, um metro e meio dentro de campo para o gesto simétrico de pé direito. Mas, ao contrário de Vieri, Pauleta não aproveita um erro grosseiro do guarda-redes: pelo contrário, Barthez fez tudo bem até aí. E, depois, tem um defesa marselhês sobre a linha, que deixa um espaço ínfimo para a bola passar. É isso que reforça o suave milagre daquele movimento de compasso com a perna direita, que põe fim a seis segundos de raciocínio em velocidade máxima. Três toques em seis segundos onde não sobra lugar para dúvidas, angústias ou indecisões:



Resta dizer que o PSG venceu esse jogo por 2-1, e que aos 62 minutos Pauleta marcou também o segundo, com um belo remate cruzado, de pé esquerdo. Consolidava-se, nessa tarde, uma relação de amor com o Parque dos Príncipes que dura até hoje. Uma relação cujo alcance, até à despedida, em 2008, nunca foi totalmente apreendido pelo público português, numa altura em que as carreiras dos jogadores nacionais lá por fora não tinham tantas honras de diretos como agora.

«Escolho esse golo porque foi no meu primeiro ano em Paris, num clássico, e o facto de ser marcado ao Barthez, um guarda-redes de topo, só lhe reforça a importância. Há uma dose de sorte, reconheço. O remate é feito para ser mesmo assim, mas a bola entra no único sítio possível, entre a trave e o defesa. Por outro lado, acho que o golo resume bem as minhas principais características: o saber jogar no limite do fora de jogo, na linha do último defesa, e a facilidade de definição, com a direita ou a esquerda. Era um tempo diferente, as estações de TV só passavam os golos, e nem sempre. Não passavam 20 e tal jogos nossos por ano, e por isso não tenho em Portugal o reconhecimento que tenho em França, ou que teria se tivesse feito um ano ou outro num grande clube português.»



O tom de Pauleta é factual, em paz com a evidência, sem vestígio de queixas. O tom de quem não gasta energias com questões que não pode resolver. Afinal, a angústia pode ser um ingrediente fundamental para se produzir ficção, mas não faz falta a quem pertence à raça exótica que pensa rápido, remata primeiro e só pergunta depois.