Não é que Cristiano Ronaldo nos deixe propriamente com poucas opções de golos memoráveis: por mais meticulosa que seja a pesquisa, há e haverá sempre argumentos para justificar outra escolha. Sem ser preciso puxar muito pela cabeça, há o míssil que afastou o FC Porto na Liga dos Campeões, em 2009, por exemplo. Ou o livre ao Portsmouth com que registou a patente a todos os «tomahawks» no seu futuro. Ou ainda este slalom e bomba com que devastou a defesa russa há mais de dez anos (ver a partir dos 30 segundos):



Mas, tratando-se de Cristiano Ronaldo – isto é, de alguém que se aproxima a passos largos dos 500 golos em provas oficiais – há um efeito de desvalorização pela abundância: o bom parece banal e o muito bom vai pouco além disso. Só o verdadeiramente excecional fica no arquivador da memória – onde a gaveta de cima está reservada para as proezas de superherói.

É disso que falamos quando recuamos a 1 de abril de 2008 e nos fixamos no estádio Olímpico de Roma. Jogam-se os quartos de final da Liga dos Campeões, e o Manchester United volta a encontrar uma equipa que, apenas um ano antes, tinha esmagado em Old Trafford, a 10 de abril de 2007, por uns inacreditáveis 7-1. Ronaldo tinha aproveitado esse massacre para marcar os seus primeiros golos na Liga dos Campeões – e tinha precisado de 26 jogos para o conseguir!



Só três anos mais tarde, em pleno mundial da África do Sul, chegou a famosa metáfora dos golos-ketchup, mas foi exatamente isso que aconteceu a Cristiano Ronaldo entre 2007 e 2008. Os 23 golos da temporada 2006/07 já eram, de longe, o melhor registo de carreira. Mas quando Ferguson o tornou cliente habitual de uma posição mais central, nasceu um fenómeno: na temporada seguinte o português quase duplicou esse total, chegando aos 42 pelo Manchester United. O último de todos estaria reservado para a final da Liga dos Campeões, com o Chelsea. Mas antes de lá chegar, Ronaldo mostrou a todo o mundo uma transformação inacreditável, que o levaria a conquistar, sem contestação, o título de melhor jogador mundial em 2008.

A 1 de abril desse ano, o português já contava 35 golos, seis dos quais na Liga dos Campeões. O primeiro, nessa temporada, até tinha acontecido em Alvalade, numa espécie de fechar de ciclo, último passo da transformação da promessa da Academia num monstro insaciável. Quando o Manchester United entra em campo, para a primeira mão dos quartos de final, é líder destacado da Premier League, e Ronaldo comanda confortavelmente a lista dos marcadores, com uma sequência de cinco jogos consecutivos a faturar.

Está em estado de graça, e é favorecido por um 4x2x3x1 que lhe dá liberdade para, partindo de uma posição de falso extremo esquerdo, surgir com frequência na área, para apoiar Rooney. É isso que está na origem do que vai acontecer ao minuto 39, quando Cristiano Ronaldo sai das sombras de um jogo até aí cinzento para vestir capa de superherói.

O lance, um ataque construído de forma paciente, com a Roma arrumada no seu meio-campo defensivo, começa num central. Vidic, sem pressão, rejeita a linha de passe dada por Anderson e prefere um passe vertical, solicitando a Rooney que venha receber fora da área. Reparem onde está Ronaldo nesse momento: sobre a meia esquerda, ligeiramente à frente do grande círculo, com o ar alheado de quem nada tem a ver com aquilo. Nem sequer quando Rooney gira rapidamente sobre Mexés e ganha espaço para desequilibrar a defesa italiana se percebe que Ronaldo faça parte daquele filme.

A ação de Rooney é muito boa mas, a três metros da área, é concluída com um passe impreciso: fica por saber se a ideia seria tabelar com Park - que se aproximou da zona central para fazer de segundo avançado mas está um passo demasiado à frente – ou lançar a corrida de Scholes – que fica atrasado em relação à linha da bola e é obrigado a derivar para a direita.

É aqui que algo de sublime começa a acontecer, e vale a pena deixar uma linhas de homenagem a Scholes, o típico caso de player's player - tão bom que nem precisa de dar nas vistas, é um jogador mais idolatrado pelos colegas de profissão do que propriamente pelo grande público. Daí por um mês, será ele a marcar, ao Barcelona, o golo que vai pôr o Manchester United na final desse ano. Mas para já, como tantas outras vezes, o seu papel não é de protagonista, mas de candidato ao óscar de melhor ator secundário: a simplicidade de processos com que se enquadra com a bola, a domina com um toque de pé direito, e prepara o cruzamento só é fácil na aparência.

O que vem a seguir define a inteligência de um jogador: na fração de segundo entre parar a bola e cruzar, Scholes apercebe-se de um vulto que sprinta a uma velocidade proibida, anulando os 40 metros que o separavam da área no início do lance. E o cruzamento bombeado, com a bola a sobrevoar a área e a pingar para a zona da marca de penálti, é feito com o backspin suficiente para prolongar a trajetória e suspender o tempo.



Há golos que nasceram para ser vistos ao vivo – o de Rui Costa à Inglaterra, em 2004, o de Michael Owen à Argentina, em 1998, por exemplo – e há outros que resultam melhor em televisão. A magia de Roma é claramente um desses: o efeito surpreendente, quase cómico, da potência de impulsão e da cabeçada de Cristiano Ronaldo, é acentuado pelo facto de a sua entrada em cena ser retardada até ao último instante. Quando Cassetti, o número 77 da Roma, se prepara para abordar o lance, não há ninguém no seu horizonte visual – nem no nosso.

Mas então, como nos desenhos animados do coiote e do bip-bip, algo se despenha lá de cima e se projeta com toda a violência sobre a bola, cabeceando-a para o canto direito de Doni, antes de se imobilizar no chão. Ainda hoje a pergunta é dupla: de onde veio? E como conseguiu não se partir todo na aterragem? «Again, and again, and again! Same man, same old story!», espanta-se o narrador da ITV, que sublinha o nascimento de uma máquina goleadora total: «pé direito, pé esquerdo, cabeça, ele é completo», anuncia, antecipando aquilo que o tempo transformou em lugar-comum.



Na NBA, a expressão «in your face!», é a mais usada nas pequenas provocações entre jogadores quando um consegue fazer um afundanço no território da defesa. Ao marcar o golo mais «in your face!» da sua carreira, Cristiano Ronaldo deu, nessa noite de abril de 2008, um passo decisivo rumo à lenda. E o título do Maisfutebol, nessa noite, assinalava o nascimento de um mito: «É um pássaro, um avião? Não, é Cristiano Ronaldo». Alex Ferguson, por seu lado, não permitiria que nessa noite nascesse um ego mais forte do que o dele em Old Trafford. E, por isso, comentou o golo assim.

O golo mais «in your face» da carreira de Ronaldo