«Mas… É só um penálti!», poderão advertir. Não, não é ‘só’ um penálti. «É uma criação do génio de Johan Cruijff», terão como resposta, seguido da devida vénia a um dos jogadores mais brilhantes que o mundo teve o prazer de conhecer.

Jamais recordaríamos uma distante goleada do Ajax ao modesto Helmond Sport da época 1982/83, que contribuiria para a conquista do 19.º título de campeão holandês da equipa de Amesterdão, se este fosse um golo comum; um habitual pontapé da marca dos 11 metros; um «bola para o lado guarda-redes para o outro» do nosso quotidiano.

A par da marca registada de Antonin Panenka – que inspirou gerações com a «cavadinha» original diante da República Federal Alemã, que valeu o título europeu de 1976 à Checoslováquia – ou da «paradinha», popularizada por Pelé, esta é uma das cobranças mais revolucionárias da história do futebol.

Ainda assim, esta tabela histórica não é invenção da dupla do Ajax. O primeiro registo de algo semelhante surge num particular entre a Bélgica e a Islândia: uma combinação entre Rik Coppens e Andre Piters com o primeiro a tocar a bola e a recebê-la de volta para bater o guarda-redes Hermannsson.

A invenção não é de Cruijff, porém, foi ele que a tornou famosa.

Recuemos então àquele dia 5 de dezembro de 1982… A altura é propícia: dentro de duas semanas, o lance então polémico cumpre 34 anos (tantos quantos este que vos escreve) e esta semana completam-se oito meses da morte de um dos maiores nomes do futebol mundial.

16.ª jornada do campeonato holandês, o Ajax vence o Helmond, então campeão em título da II Divisão e recém-promovido à elite do futebol neerlandês. Johan Cruijff é já um veterano de 35 anos a cumprir a sua última época no Ajax e a penúltima da sua carreira como futebolista – que viria a terminar no rival Feyenoord.

Aquela equipa comandada por Aad de Mos tem uma série de teenagers a despontar: Frank Rijkaard, Wim Kieft, Vanenburg e até um tal de Marco Van Basten. Há, portanto, que passar o testemunho da insolência àquela geração talentosa.

Mesmo no ocaso como mago dos relvados, antes de o mundo saber que conservaria esse dom também no banco, Johan conserva o seu instinto provocador e não perde a oportunidade para querer brilhar. A faúlha dos génios continua lá como nos tempos em que era vértice do «Futebol Total» de Rinus Michels e ele, ídolo de Amesterdão, quer provar a sua irreverência mais uma vez diante do seu fiel público no velho Estádio De Meer. É aí que surge a oportunidade para mostrar a todos aquilo que testado nos treinos parecia um exercício genialmente simples e ao mesmo tempo a mais engenhosa cobrança de uma grande penalidade.

Bola na marca dos 11 metros, Cruijff encaminha-se para bater… E passa para o companheiro Jesper Olsen, que a devolve para o craque encostar num golo fácil perante o espanto dos adversários. A contestação, porém, não tem motivo de existir: a bola foi tocada para a frente e Olsen, de sobreaviso, apareceu de rompante vindo de fora da grande área no momento do passe… Lance legal; golo validado.

O génio holandês já andava a magicar nos treinos algo de semelhante, de facto. Saber-se-ia mais tarde que este lance já havia sido ensaiado, por exemplo, num treino em que o relvado estava coberto de neve. Num jogo oficial, porém, era uma novidade instigada por Cruijff, que anos mais tarde confessou em entrevista à Televisão da Catalunha a sua confiança em converter na perfeição aquela grande penalidade, que resume o seu génio na perfeição:

É até uma forma bastante segura de marcar um penálti, porque ninguém está à espera. Além disso, era algo novo e as pessoas gostariam de ver. Logicamente, o grande risco era falhar e fazer figura de parvo…»

O alerta faz sentido, até porque, anos mais tarde, houve quem tentasse a proeza e caísse no ridículo. Certo, Pires e Henry?

O alerta que faz mais sentido será este: nem todos são Cruijff para tomarem a irreverência e a criatividade em doses desmesuradas.