Diego não veste ainda pele azul-dourada nesse 9 de novembro, ano de 1980. As bancadas do José Amalfitani adoram-no todo de vermelho, com vinte anos ainda pintados de fresco, feitos um mês antes.

Já campeão do mundo sub-20, já internacional A e já a ostentar a braçadeira no braço esquerdo e o número de sempre nas costas. Franzino, seco, longe daquela figurinha de aí a uns anos, desafiadora das leis da física.

«É muito bom jogador, o melhor do momento, e que estão a fazer inchar de maneira incrível. Preocupa-me o seu físico. Tenho a sensação de que em poucos anos não irá conseguir evitar a tendência de ser um gordinho.»

Hugo Orlando Gatti é o melhor guarda-redes argentino. E o primeiro a dizê-lo a toda a gente é o próprio.

Como todos os keepers é um pouco louco e, como os argentinos têm a mania das alcunhas, não foi difícil chegar a um consenso. El Loco, claro. Estava na cara. Mais do que louco, o número 1 do Boca nunca disfarçou um ego tremendo, inchado.


O princípio da lenda 

Um louco revolucionário

Claro que Gatti não é apenas isso. Aos 36 anos, luta com Fillol pela baliza da albiceleste, e ainda aparenta estar em vantagem. Catorze anos depois de ter estado entre os eleitos para o Mundial 1966, El Loco não parece disposto abdicar do seu reinado na baliza xeneize por nada deste mundo.  

Não é só Fillol quem traz aos guarda-redes uma evolução, com as saídas aos cruzamentos pelo ar. Gatti também é um evolucionista. Nos treinos recusa-se a ser alvo de pelotões de fuzilamento e de se atirar para chão, e treina como avançado-centro. Diz que é assim que melhor os compreende. Depois, corridinha, abdominais, conversa com os jornalistas e está feito. É a sua rotina.

Não gosta dos novos guarda-redes, os voadores, que se atiram para a fotografia. Se não chega à bola não se mexe, pois claro. Em campo, ajoelha-se na cancha, braços estendidos junto ao corpo. Chamam-lhe o  El achique de Dios. Ou encosta-se ao poste, de olhos fechados, a sentir o sol na cara enquanto os companheiros atacam a baliza rival. Num ápice, reage, lê as jogadas, sai da linha de golo, antecipa-se. Faz de líbero antes do tempo. Custa-lhe alguns golos, é verdade, mas granjeia-lhe reputação de ídolo em La Doce. Gatti é dos poucos que pode dar um frango sem que a Bombonera em peso lhe caia em cima. Ídolo, sim.

Só não consegue estar calado. O La Razon reproduz as suas respostas a Oscar Bergesio, do El Litoral.

«O problema de Gatti é de loucura. Ele foi, já não é um grande guarda-redes. Não é ninguém, estão a marcar-lhe golos estúpidos. Parece que tem de falar para continuar a ser figura. Não me admira que fale de mim, porque da outra vez meteu-se com Fillol. Disse que era o pior guarda-redes que tinha visto. Por que não se mete com mais ninguém? É comigo, ou com Fillol. É isso que me chateia! Mas fiz-lhe sempre golos. Pode dizer o que quiser que eu, desde que lhe faça golos, vou estar tranquilo. Doeu-me isto, não devia tê-lo dito, mesmo que o tenha pensado, por respeito por mim. Nunca lhe disse nada, a não ser que tenha ficado chateado pelos golos que lhe marquei. Em todos os jogos em que o defrontei fiz golos.»

A foto dos dois juntos na Bombonera, pedida por Gatti, perdurará no tempo apesar da animosidade. Serão colegas aí no ano seguinte, depois de Maradona recusar transferir-se para o River.


A foto do jogo da Bombonera

De dez para dez, de zurda para zurda
 
Não é só destes dois egos que se faz a batalha no José Amaltifani. Se Dieguito enche um dos lados do campo com classe pura, no outro Marito é ainda monarca regente, e com pouco feitio para aturar pretendentes ao trono, legítimos ou não. Mario Zanabria, zurdo como Maradona, dez como Maradona, é a grande esperança do Boca para a vitória. Doze anos separam os dois melhores jogadores em campo.

Zanabria não resistirá, mas é do seu talento que se inspira a sua equipa naquela tarde. O Boca, que no ano seguinte incorporará El Diego, não terá espaço para os dois. Marito seguirá para o Argentinos, de onde vem Maradona, e voltará à Bombonera quando o Pelusa sair para o Barcelona. Os destinos sempre cruzados.

Na cancha, sublinhe-se, passa-se também o testemunho.
 
Quatro maneiras de responder, ao perguntar: «Gordo, eu?»

Não rezam as crónicas que Maradona tenha dito «toma», rido ou feito gestos de provocatórios para Gatti. Não precisa, cada um dos golos que marca é um soco no estômago do guarda-redes.

No entanto, é o Boca que marca primeiro. O árbitro Juan Carlos Loustau assinala falta de D’Angelo a Coscia, e Ribolzi atira fortíssimo a meio da baliza.


1-1, por Maradona

O Argentinos reage. Aos 23 minutos, Maradona tenta um cruzamento de rabona e a bola acerta na mão de Hugo Alvez. Apesar de não parecer intencional, os braços abertos do defesa valem novo castigo máximo. Diego faz bola entrar suave do lado direito de Gatti, depois de enviar o guarda-redes para o outro lado com uma simulação de corpo. O primeiro já estava.

A equipa da casa vira mesmo para 2-1. Depois de falta sobre Maradona, e quando todos esperavam o seu remate, Espíndola atira direto para a vantagem, com a bola a entrar entre Alvez e Gatti.

O Boca está bem na primeira parte, sobretudo nos primeiros 35 minutos – Abel Alvez e Ruggeri tem conseguido vigiar Maradona com algum sucesso, Zanabria tem criado desequilíbrios lá à frente –, e volta a igualar a dois golos. Marito, de livre direto, marca, com Alles a ser traído por um desvio.

Só que o intervalo não chega sem novo momento de magia. Livre lateral para o Diez, com a bola a sobrevoar Gatti e a entrar ao segundo poste ao ângulo. Golazo! Um dos que o acompanharam para sempre (ver fotografia de abertura).

Diego não está satisfeito. Gordinho, ele?
 
Gatti tenta retratar-se

Antes do pontapé de saída da partida, Gatti procura Maradona.

«És um fenómeno, como posso ter dito isso de ti? Esquece-te disso!» Era tarde de mais, não o esqueceria e estava disposto a vingar-se.

Bergesio, o jornalista que entrevistara El Loco, reafirmaria o que lhe foi dito. Gatti não tinha mesmo conseguido ficar calado.
 
O terceiro, e depois o quarto

Aos 48 minutos, Pasculli isola o seu 10, que desvia a bola perante a saída de Gatti. Desta vez, não consegue antecipar-se como tantas vezes a tantos outros no passado. A zurda desvia suavemente a bola para as redes.

Ainda não chega. Aos 75, Hugo Alvez derruba Maradona em cima da linha de grande área, e o árbitro marca novo livre direto, ao jeito do pé esquerdo mais famoso da história. Um companheiro de Maradona coloca-se à frente de Gatti para atrapalhá-lo. Quando finalmente se desvia, a bola já sobe, imparável, com o ângulo superior direito à espera. Na mouche.

Quarto! Quarto golo marcado, quarto golo aplaudido pela hinchada do… Boca, que se antecipa uma e outra vez aos adeptos da casa nos festejos. Estavam apaixonados, e seriam em breve correspondidos.

Não são só quatro golos, claro. Há dois passes fabulosos para Pasculli, vários remates defendidos, um ou outro túnel e um ou outro drible. Uma tarde para recordar para sempre.

Gareca ainda vai a tempo de fechar o resultado em 5-3. Fantástico! Um hino ao jogo.
 
Quem diria que Gatti resistirá mais oito anos?

Cinco golos sofridos, quatro de Maradona. 36 anos. Uma imagem de impotência. El Loco parece acabado.

O Boca, apesar de ser ainda matematicamente possível, não se qualificará para a fase final.

O Argentinos, sim, segue em frente, mas não terá Diego para os jogos decisivos. Está convocado por El Flaco Menotti para o Mundialito. É eliminado nos quartos de final, pelo Racing, que, por sua vez, cairá na final perante o Rosario Central.

No que diz respeito a Mario Zanabria, por muito que não o quisesse a sua sucessão tinha sido decidida ali.

Gatti perderá a titularidade no Boca, ano seguinte. Mas voltará a recuperá-la e a mantê-la, apesar de um ou outro erro, terminando a carreira aos 44 anos. Continua louco até ao fim, e com o maior defeito de sempre: fala de mais. Talvez por isso hoje seja o que seja: apresentador/comentador televisivo, repartindo-se entre Espanha e Argentina.

Maradona torna-se o que todos nós sabemos.
 
Gordo, ele?

Jorge Horacio Cyterszpiler, o primeiro empresário do Pelusa, acende o rastilho para a explosão, depois de ler os jornais na noite anterior.

«Bem, hoje marcas-lhe dois golos, hein?»

«Não, Jorge, hoje marco quatro, acredita!»

Verdade seja dita, Hugo Orlando Gatti tinha razão. Quem viu jogar Diego Armando Maradona sabe que ele tinha razão. Só que não teve qualquer importância!

O jogo completo:


FICHA DE JOGO
Torneio Nacional (2ª fase do Campeonato Argentino), 12ª jornada
Estádio José Amalfitani, em Liniers (Buenos Aires)
Árbitro: Loustau
Resultado final: 5-3

ARGENTINOS -
Alles; Carabelli, D'Angelo, Francheschini, Domenech, Vidal, Garcia, Maradona, Magallanes, Espíndola e Pasculli

BOCA JUNIORS - Gatti; Hugo Alvez, Sá, Ruggeri (depois, Capurro), Córdoba, Ribolzi, Alvez, Zanabria, Coch (depois, Gareca), Randazzio e Coccia

Marcadores: 0-1, Ribolzi (20, gp); 1-1, Maradona (23, gp); 2-1, Espíndola (26); 2-2, Zanabria (32); 3-2, Maradona (42); 4-2, Maradona (48); 5-2, Maradona (75); 5-3, Gareca (84)


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ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (  @luismateus  no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na   MFTotal.