Em dezembro terão passado 40 anos. A 5 de dezembro de 1976, o já inexistente Atotxa foi palco de mais um emocionante dérbi basco, talvez aquele que mais significado político carregou até hoje.

De um lado a Real Sociedad, de Arconada e também de Satrústegui e López Ufarte, treinada por José Irulegui. Do outro, o Athletic, de Iríbar, Irureta, Churruca e Ángel Maria Villar, atual presidente da federação espanhola. Koldo Aguirre a mandar do banco. Três pontos de vantagem para os da casa, a vestir de azul e branco, e como sempre, um ambiente efervescente.

A transição começara em Espanha. Franco estava morto. A democratização do país tinha avanços e retrocessos, altos e baixos. O ambiente era, obviamente, tenso. Não podia ser de outra forma. O perigo ainda rondava a cada esquina, à espreita. O Generalíssimo tinha sido enterrado há pouco mais de um ano.

Real e Athletic juntaram-se no acesso ao relvado, coisa pouco comum para estes tempos, e caminharam lado a lado. José Ángel Iribar e Inaxio Kortabarria, os capitães, erguiam ao mesmo tempo a ikurriña. A bandeira ilegal e proibida, usada pela ETA nos seus atentados terroristas, unia as duas equipas. Exibi-la ainda podia dar prisão, mesmo depois de Franco.

Transportá-la em segredo foi a chave para que tudo tenha saído bem. Foi uma decisão unânime» (López Ufarte)

A ideia terá sido de um eterno suplente. Josean de la Hoz Uranga só iria jogar três jogos essa época, mas terá sido o mentor de tudo o que aconteceu. Patriótico, de um patriotismo que algumas vezes levou ao excesso – como quando participou e colaborou com a ETA num rapto de um homem de negócios, e que o levou à prisão – conseguiu convencer colegas e rivais a carregarem a bandeira banida.

Cosida em casa, artesanal

Havia vários obstáculos. Proibida, não era fácil encontrar uma ikurriña. Não era propriamente o tempo em que se entrava numa loja e se comprava uma. Foi a irmã de Uranga quem fez a bandeira levantada pelos capitães no centro do relvado do Atocha. E Ane Miren só descobriria o uso que lhe foi dado dias depois, através da rádio.

Uranga entrou no estádio com a bandeira no saco desportivo, mesmo depois de o seu carro ter sido revistado, como era norma. Teve sorte. Ninguém a procurou aí. A ikurriña era, na altura, considerada símbolo da ETA, e tudo o que tivesse verde, vermelho e branco juntos estava proibido. Kortabarria, já na posse da bandeira, estava depois incumbido de convencer Iríbar a participar no gesto. A resposta foi: «Sim, se for unânime.» Foi. E o mesmo aconteceu do outro lado.

Uranga, como de costume, foi para a bancada.

Foi levada para o grande círculo e os jogadores colocaram-se à volta. As bancadas explodiram em aclamação. Era mais que um gesto político, era um desafio ao poder, em nome de um símbolo.

Os jornais poucas referências fariam à iniciativa dos dois emblemas, mas o que aconteceu acabaria mesmo por correr mundo.

A «Marca» omitiu o gesto político no Atocha.

Tornou-se a primeira apresentação pública da ikurriña desde a ditadura, e não teve consequências. Daí a poucos dias, a 19 de janeiro, seria legalizada e, dois anos depois, adotada como bandeira oficial da Comunidad Autónoma Vasca.

«Foi um passo importante que ajudou à legalização final da ikurriña. Primeiro foi permitida e logo depois legalizada. Houve dúvidas, sem que se soubesse como iriam reagir e o que se iria passar, mas sempre nos pareceu impossível que algo pudesse ser feito a duas equipas inteiras de renome. Foi como um impulso final.» (Iríbar)

Gesto terminado, a bandeira não voltou para os balneários. Foi finalmente confiscada pela polícia e hoje é peça de museu.

Os dois capitães continuariam a ter uma intervenção política. Iríbar faria parte das primeiras mesas nacionais como fundador do Herri Batasuna, partido político de «esquerda patriótica», antes de se afastar alguns anos depois. Já Kortabarria recusou várias convocatórias para representar a seleção espanhola, alegando motivos ideológicos. Hoje, é um dos principais defensores de uma equipa autónoma.

Goleada, também histórica

O jogo, cenário para o grito de liberdade, terminaria com uma goleada por 5-0 para a Real Sociedad. Nunca antes os blanquiazules tinham marcado cinco golos ao clube rico da Euskadi. O golo mais recordado será ainda, para quem o viu, o de Satrústegui, de cabeça, que tornou inútil o vistoso voo de Iríbar. O que sobreviveu à memória traz-nos relatos de um jogo espetacular, e com uma exibição portentosa de Arconada, que «destroçou o moral dos de Bilbau em momentos cruciais».

No entanto, o encontro será sempre lembrado como o Dérbi da Ikurriña.

FICHA DO JOGO

Estádio Atocha, em San Sebastian (Espanha)
Real Sociedad-Athletic Bilbao, 5-0
Árbitro: Sánchez Ríos

REAL SOCIEDAD – Arconada; Choperena, Murillo, Kortabarria e Olaizola; Gaztelu, Diego, Zamora e Idígoras; Satrústegui (Muruzábal, 84) e López Ufarte
Treinador: José Irulegui

ATHLETIC BILBAO – Iríbar; Lasa, Guisasola, Madariaga e Eskalza; Oñaederra, Villar (Iruretagoyena, 45), Churruca e Dani; Carlos e Rojo
Treinador: Koldo Aguirre

Disciplina: cartão amarelo a Lasa.

Golos: 1-0, Gaztelu (3); 2-0, Satrústegui (28); 3-0, Satrústegui (31); 4-0, Zamora (73); 5-0, Gaztelu (88, gp)

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ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (@luismateus no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na MFTotal.