Frenético. Arrebatador. Ataque depois de contra-ataque, depois de ataque. Sete golos, com três reviravoltas, e o golo triunfal nos descontos. Três anos depois de ter nascido, a Premier League vê aparecer o seu jogo-ícone, o hino de que tanto precisava para ganhar fama. A aura de imprevisibilidade que a acompanha até hoje nasce em grande parte nesse 3 de abril de 1996, em Anfield.

O Newcastle de Kevin Keegan, que nunca tinha conquistado o título e em janeiro estivera 12 pontos acima do segundo classificado, o Manchester United, visita o Liverpool de Roy Evans. Alex Ferguson e os seus red devils são agora líderes, embora com mais dois jogos do que os magpies e mais um que os reds, e, obviamente, espectadores interessados.

O moral já esteve obviamente mais alto nas duas equipas, que perderam ambos os compromissos antes do embate entre si: a 23 de março, o Liverpool saiu derrotado da visita ao City Ground e ao Nottingham Forest (1-0), naquele que foi o primeiro desaire em 21 jogos em todas as competições; já o Newcastle perdeu o terceiro encontro em cinco na liga na visita ao Arsenal (2-0), deixando-se ultrapassar pelos de Manchester.

Os olhares em Asprilla e nos «Spice Boys»

Keegan faz uma alteração nos Entertainers – chamados assim por serem uma equipa ofensiva e focada no espectáculo – em relação ao jogo anterior. Troca Warren Barton por Steve Watson na defesa, e mantém o 4x4x2 habitual, com Peter Beardsley e David Ginola sobre as alas, e Les Ferdinand e Tino Asprilla como dupla mais ofensiva. O colombiano, que chegou em fevereiro por 6,7 milhões de libras (8,5 milhões de euros), expiará a culpa pelo fracasso dos de Tyneside nessa época. Em causa os problemas recorrentes fora do relvado. Nesse dia, grande parte dos olhos dos adeptos estão sobre si, e ele corresponde.

Evans também muda. Michael Thomas, que virá a jogar no Benfica dois anos depois, é preterido pelo jovem médio de 22 anos Jamie Redknapp, filho de Harry, primo de Frank Lampard. Redknapp é um dos Spice Boys – termo pejorativo associado ao estilo de vida dos futebolistas fora de campo e que nasceu do rumor de que Robbie Fowler namorava com Emma Bunton, uma das Spice Girls, um pouco antes de David Beckham, do Manchester United, ter garantido para si o apelido ao começar a sair com a atual mulher, Victoria Posh Spice Adams – lançados pelo treinador em Anfield. Dominic Matteo também fica na bancada por troca com Rob Jones. A equipa está montada num 3x4x1x2, com o esguio Steve McManaman a ter como missão ligar meio-campo e ataque, onde moram Stan Collymore – o futebolista mais caro do futebol inglês de então, ao ter custado 8,5 milhões de libras, hoje 10,7 milhões de euros – e o enérgico Robbie Fowler.

Olhei para o nosso ataque, que tinha Beardsley, Asprilla, Ferdinand e Ginola, e pensei: ‘Bem, não viemos aqui para empatar, pois não?’ As pessoas falavam em estacionar o autocarro e foi o que fizemos, mas o nosso autocarro era uma daqueles abertos no topo e toda a gente era bem-vinda» (Beresford)

Fowler incendeia o rastilho

Alinhámos num 3x5x2 e aquele sistema era bom para nós. Qualquer um podia adivinhar que iria ser um caos organizado desde o primeiro apito» (Redknapp)

O Newcastle parece começar mais seguro de si, mas bastam dois minutos ao Liverpool para chegar à vantagem. Jones recebe um passe longo da direita e com um toque apenas coloca a bola mais à frente, ainda sobre a esquerda, em Collymore. O cruzamento sai perfeito, com o pé esquerdo, e chega ao segundo poste, onde Fowler cabeceia para bater Srnicek pela primeira vez.

A vantagem dura oito minutos. O tempo de Asprilla passar Ruddock com um túnel e servir Ferdinand, mais rápido a reagir que Mark Wright e a não dar qualquer hipóteses a David ainda-não-Calamity James.

A vertigem aumenta, o drible curto de Ginola começa a fazer estragos sobre a esquerda. Aos 14 minutos, o 1-2. O possante Les Ferdinand faz um passe de rotura de trivela para a entrada da área, onde aparece o francês. Três toques com o pé direito antes de finalizar com o esquerdo, perante um James novamente impotente.

O Liverpool reage. Redknapp começa a testar a meia-distância. Depois de um livre seu, Fowler não acerta na baliza na emenda. Em zona frontal, McManaman ameaça o golo, mas só consegue canto. Na outra área, Asprilla cai na área em luta com Barnes, mas a bola não pára. Redknapp remata novamente por cima, e chega o intervalo.

Um jogo que os de Liverpool recordam de bom grado

Respirar fundo num jogo sem dono

Evas tira Mark Wright e faz entrar Steve Harkness, que também virá três anos depois para a Luz. Mas o jogo não tem dono. O intervalo serve apenas para respirar fundo e voltar à carga. James faz grande defesa perante Lee. Srnicek defende um cruzamento traiçoeiro de McNamaman. Steve Harkness ganha de cabeça num canto, mas Fowler, à frente do guarda-redes, não consegue emendar.

Aos 55, o 2-2. Jason McAteer aproveita a quebra de Ginola e cresce no jogo. Lança McManaman sobre a direita, este arrasta quatro defesas consigo e serve, à entrada da área, o remate de primeira, fantástico, de Fowler.

Só que a festa dura apenas dois minutos. Lee inventa um passe soberbo entre Ruddock e Harkness, e Asprilla finaliza de trivela perante James. Nova vantagem, a segunda, para os de Tyneside.

McAteer e Batty trocam uns mimos no meio-campo. McManaman e Collymore acertam na figura se Srnicek. Um contra-ataque dos magpies não resulta por muito pouco: depois de servido por Les Ferdinand (jogo enorme), Ginola não consegue pôr do lado de lá em Asprilla e a oportunidade perde-se.

Quem aproveita é o Liverpool, aos 68. McManaman abre na direita em McAteer, que cruza rasteiro, fora do alcance dos centrais, para a emenda de Collymore ao segundo poste. Grandioso!

Quando as pessoas dizem que não consegui ser o jogador que podia ter sido, lembro-lhes noites como aquela. Foi para aquilo que recebi os meus dons como jogador: para dar espectáculo em noites como aquelas» (Collymore)

Final épico, claro!

O frenesim prossegue. McManaman cruza rasteiro e Fowler, em carrinho, faz a bola passar perto do ângulo. Harkness não consegue suster Ferdinand, que domina na área, vira-se e remata contra James. Srnicek nega o golo a John Barnes, um tanque a entrar na área e a explodir para o remate em potência.

Quase não há paragens, as faltas escasseiam, há muita correria, e passes falhados q.b., e a emoção está ao rubro. Ian Rush entra, aos 85 minutos. Ferdinand atira um livre por cima. Srnicek defende remate à figura de Redknapp.

Tinha mudado de posição, e agora jogava como médio centro, com o Jamie [Redknapp], o Stan [Collymore], o Robbie [Fowler] e o Stevie Mac [MacManaman] a serem responsáveis pelo ataque. Perto do fim do jogo, fartei-me. Parecia um jogo de basquetebol.» (Barnes)

E, dois minutos para lá dos 90, o punchline. Barnes e Rush combinam à entrada da área até que o médio vê Collymore a entrar sobre a esquerda. O remate é forte e bate Srnicek pelo poste mais próximo! Voltava a virar, e em definitivo.

O factor-espectáculo esteve ao rubro. Nenhuma equipa poderá ser campeã a jogar assim. Conseguimos safar-nos, ficando dois contra dois e um contra um lá atrás…» (Roy Evans)

Vamos continuar a jogar assim ou saio» (Kevin Keegan)

O remate imparável de Collymore para o 4-3 final
O desalento de Keegan depois do 4-3

Jogo da década, a antecipar a famosa explosão de Keegan

Em 2003, na celebração dos dez anos da Premier League, é considerado o jogo da década. Há quem diga que é o melhor da história.

O Manchester United será campeão, perdendo apenas mais um encontro até ao final. O Newcastle, por sua vez, não voltará a estar tão perto do título, e termina a cinco pontos dos rivais. O Liverpool acaba em terceiro, a sua melhor posição desde o início da Premier League.

Um pedido de demissão de Keegan ainda será recusado uma primeira vez no verão, mas o treinador sairá mesmo em janeiro seguinte, alegando que tinha levado o clube «o mais longe» que pudera.

Até final da época, ficará ainda famosa a explosão de Keegan perante as câmaras de televisão, com um «Vou adorar se os batermos», referindo-se ao Manchester United e à luta pelo campeonato. As declarações surgem depois da vitória sobre o Leeds, cujos jogadores tinham sido provocados por Alex Ferguson, técnico dos red devils, antes da partida. O escocês insinuara que adversários como o Leeds e o Nottingham Forest não iriam oferecer tanta resistência ao Newcastle como tinham oferecido à sua equipa:

I can’t understand the Leeds players. I’m absolutely in support of their manager (Howard Wilkinson). He doesn’t deserve his players. If they had played like that all season they’d be near the top. They raised their game because they were playing Manchester United. It was pathetic. I think we can accept any club coming here and trying their hardest, so long as they do it every week.» (Alex Ferguson)

Kevin Keegan foi a vítima perfeita dos mind games de Fergie, que chegaria ao seu terceiro título:

When you do that with footballers like he said about Leeds, and when you do things like that about a man like Stuart Pearce... I've kept really quiet but I'll tell you something, he went down in my estimations when he said that. We have not resorted to that. You can tell him now, we're still fighting for this title and he's got to go to Middlesbrough and get something. And I'll tell you, honestly, I will love it if we beat them. Love it.»

A declaração de Keegan foi escolhida em 1992 como a melhor de sempre na liga inglesa. Sairá em janeiro de 1997, como já se escreveu, não sem antes se vingar do Manchester United, com um 5-0 em Saint James Park.

O lançamento perfeito para a Premier League

O Liverpool-Newcastle de 1996 foi o jogo que deu fama à Premier League. O duelo perfeito, emocionante e imprevisível que a Sky promoveu ate à exaustão a cada fim de semana para ajudar a criar a lenda em torno do melhor campeonato da Europa. Esqueçam os erros defensivos, os passes falhados, a falta de controlo, o que a malta gosta é de golos. Muitos, se possível no último minuto, para que nos deixe de mãos na cabeça, encostados às cadeiras extasiados. Foi esse tipo de jogo, e pode vê-lo mais abaixo.

A Keegan, que levou a sua até final, e ao Newcastle teria ajudado menos frenesim, provavelmente.

FICHA DE JOGO

Premier League, 32ª jornada
Liverpool-Newcastle, 4-3
Estádio Anfield, em Liverpool, 3 de abril de 1996

Árbitro: Mike Reed

LIVERPOOL – David James; Rob Jones (Ian Rush, 86), John Scales e Neil Ruddock; Jason McAteer, John Barnes, Jamie Redknapp e Mark Wright; Steve McManaman; Stan Collymore e Robbie Fowler (Steve Harkness, 45)
Treinador: Roy Evans

NEWCASTLE UNITED – Pavel Srnicek; Steve Watson, Steve Howey (Darren Peacock, 82), Phillipe Albert e John Beresford; Peter Beardsley, Robert Lee, David Batty e David Ginola; Les Ferdinand e Faustino Asprilla
Treinador: Kevin Keegan

Marcadores: 1-0, Fowler (2); 1-1, Ferdinand (10), 1-2, Ginola (14), 2-2, Fowler (55); 2-3, Asprilla (57); 3-3, Collymore (68); 4-3, Collymore (90)
Disciplina: cartões amarelos a Beardsley e Batty.

O jogo completo:

Reacções depois do final:

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ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (@luismateus no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na MFTotal.