Frenético. 1-1 aos 90, 3-3 no final do prolongamento. 4-5 nos penáltis para os alemães, graças a dois remates defendido pelo vilão Harald Schumacher, que deixara inconsciente Battiston quando este corria isolado para a baliza. O holandês Charles Corver tornara-se cúmplice da «entrada assassina» sobre o avançado francês, que o deixara sem dois dentes, várias costelas partidas e obrigara a que saísse de maca do relvado. Não houve cartão vermelho. Nem amarelo. Ou sequer falta. E essa imagem apagou todas as outras de um dos melhores jogos da história, um dos que escreveram a lenda do Campeonato do Mundo. 

O campeão da Europa de dois anos antes ganha ao sucessor de daí a quatro anos, e chega à final do torneio planetário. Mas, no jogo decisivo, Paolo Rossi e o resto da   Squadra Azzurra não dão qualquer hipótese a Harald e à   Mannschaft. Uma França desmotivada, de segunda linha, sem Platini e o hospitalizado Battiston, entre outros, também cai para o quarto lugar depois de um desaire frente à Polónia (3-2) em Alicante. O português António Garrido é, dias depois, testemunha desse adeus infeliz dos  Bleus ao Mundial espanhol.

Até à final

A República Federal Alemã começa mal o Campeonato. Uma Argélia irreverente, comandada por Rabah Madjer e pelo futebolista africano do ano Lakdar Belloumi derrota a poderosa seleção de Jupp Derwall por 2-1. Os africanos, que também bateriam o Chile, acabam eliminados na diferença de golos, depois de, no dia seguinte, uma confortável vitória dos alemães frente à Áustria (1-0) qualificar as duas seleções. A polémica em torno desse último encontro – depois do golo de Hrubesch as duas equipas não fizeram em 80 minutos um único remate à baliza – determina que, a partir daí, os jogos da última jornada se realizem à mesma hora, sem exceções.

Impassível perante os protestos de   Fuera, fuera! dos adeptos espanhóis nas bancadas e das críticas argelinas, a   Mannschaft vence o Grupo B com os mesmos quatro pontos que Áustria e Argélia, mas com 6-3 em golos (contra 3-1 dos austríacos e 5-5 dos argelinos). Na segunda fase, a equipa de Derwall integra o Grupo 2, com Espanha (0-0) e Inglaterra (2-1), que vence, garantindo o apuramento para as meias-finais. Chegava então a vez da França. Uma França que construíra uma geração fantástica e perseguia o primeiro título mundial.

Já o conjunto de Michel Hidalgo teve como rivais, no Grupo D, a Checoslováquia, a Inglaterra e o Kuwait. Perdeu com a Inglaterra (3-1) – Garrido não dava mesmo sorte aos gauleses –, mas ainda foi a tempo de se qualificar com um triunfo frente aos asiáticos e um empate perante os checos. Os golos também foram responsáveis pela festa de Michel Platini e dos companheiros (6-5 contra 2-4 da Checoslováquia, que perdera com a Inglaterra e empatara surpreendentemente com o Koweit), que seguiam no segundo lugar para a fase seguinte. No Grupo 4, estão agora Áustria e Irlanda do Norte, e a França não tem dificuldades para vencer as duas partidas e seguir para o muito aguardado embate com a Alemanha.


Rummenigge, limitado, fica no banco

No Sánchez Pizjuán, em Sevilha, estão cerca de 63 mil nas bancadas. O talentoso Karl-Heinz Rummenigge, futebolista europeu do ano, é obrigado a sentar-se no banco devido a uma lesão muscular. O patrão da equipa é Breitner, único sobrevivente do título mundial de 1974 e que tinha sido convencido a voltar depois de se ter retirado. Hidalgo, do outro lado, entrega a titularidade a Didier Six, que conhece bem o futebol germânico, uma vez que joga no Estugarda. Soler fica, desta vez no banco, tal como Battiston, que acaba, como se sabe, ligado à história da partida.

Com espaço para levar a bola até ao meio-campo do rival, o encontro é de parada e resposta. Com faltas bem agressivas, que hoje não seriam alvo de tanta tolerância. As duas equipas mostram uma energia inesgotável. A França começa ao ataque. Giresse é o primeiro a tentar, aos cinco minutos, mas o chapéu passa ao lado do poste. A Alemanha responde, dez minutos depois, num livre de Littbarski à trave. Uma oportunidade para cada lado, a anunciar o que aí vinha. Genghini atira por cima da trave, depois de assistência com o peito de Rocheteau, mas, na resposta, os germânicos marcam mesmo. Trésor não tem força para aguentar Fischer, depois do passe de Breitner, com Ettori a ser obrigado a sair da baliza. Littbarski é o mais rápido na recarga, fazendo a bola passar entre Trésor e o guarda-redes.

Depois do 1-0, a reação francesa

Os   Bleus reagem. Aos 21, Platini cabeceia ao lado. Seis minutos depois, Genghini é derrubado por Kaltz. Giresse marca o livre de trivela, Platini ganha no ar e tenta assistir Rocheteau. O   Anjo Verde é agarrado por Berndt Förster. Penálti! Platini beija a bola e engana Schumacher, que se atira para o lado esquerdo. 
  
Aos 38, Schumacher dá mostras do seu feitio difícil. Confronta Six, que ainda está no chão. O jogo continua muito físico, com os alemães a ganhar muitos duelos. Com um meio-campo bem mais macio, sem um verdadeiro médio-defensivo, Giresse e Genghini são obrigados a ir à luta e vêem amarelos.

O encontro continua aberto. Platini ameaça no contra-ataque, servido por Rocheteau; Briegel surge na área, remata de primeira e obriga Jean-Luc Ettori a defesa de recurso pela linha final. Littbarksi, sempre muito perigoso, cabeceia à figura, depois de cruzamento da direita. Intervalo.

O drama de Battiston

No regresso, Michel Hidalgo manda Battiston aquecer. E sete minutos depois do intervalo, entra mesmo para o lugar de Genghini. A França está mais forte e sente-se que pode estar perto do golo. Rocheteau bate Schumacher, mas fez falta antes do remate e não é golo. Platini atira por cima. Battiston imita-o.

Agora, Battiston vem isolado. Bossis fizera o carrinho. Tigana colocara a bola em Platini. E o génio lançara o contra-ataque. É a grande oportunidade para a França. Schumacher, Stielike e o avançado francês correm para a bola e este último desvia-a do guarda-redes, que salta e cai-lhe com todo o peso em cima. A bola sai pela linha final. O gaulês cai de peito no chão e vira-se. Não se mexe. Platini pensa que o companheiro tinha morrido, como refere depois do jogo: «Não tinha pulso, estava pálido…»

«Pediu desculpa, perdoei-lhe, mas não quero falar mais disso. Não quero encontrar-me com ele. Senti que ao longo dos anos ele ficou marcado por isso, mas acabou. Passou. Foi um acidente em campo, nunca saberemos se foi propositado ou não», contaria o antigo futebolista do Bordéus, em 2012, em declarações à RTL.

Dois dentes partidos, três costelas fraturadas, vértebras danificadas. Schumacher observa de longe todo o aparato da assistência médica à sua vítima. Está na pequena área à espera para marcar pontapé de baliza. Masca tranquilamente uma pastilha elástica, e tem uma mão na bola e outra na anca. Sai o sinal para o banco francês de que é necessário substituição. Battiston mal consegue respirar, dão-lhe oxigénio. É necessário colocar uma rampa sobre o fosso para que cheguem a Cruz Vermelha e a maca. É Platini quem lhe pega na mão e diz palavras de conforto enquanto é levado, praticamente inconsciente. Mais tarde, entra em coma, mas recupera.

Schumacher defender-se-ia, anos depois, na sua autobiografia   Anpfiff, em que relata que não se aproximou para ver o estado de Patrick Battiston por este estar rodeado de companheiros que lhe dirigiam gestos ameaçadores. Palavras que não batem muito certo com as declarações proferidas no final da partida.

Giresse e Janvion explicam a Hidalgo a gravidade da lesão, perante os avisos do responsável da FIFA, numa altura em que é proibido o contacto verbal durante os jogos. 

Entra Christián López.

Entra a «Besta cabeceadora»

Na Alemanha, Hrubesch, o Das Kopfball-Ungeheuer («A Besta Cabeceadora», numa tradução livre), substitui o pouco inspirado Magath, aos 72 minutos. Depois da quebra para assistir Battiston, o ritmo volta a acelerar. López ganha no ar a Schumacher, mas a bola sai por cima. Aos 80, o guarda-redes alemão defende o remate de Six. Do outro lado, Ettori tem de se aplicar perante Briegel. Fischer e Littbarski assustam outra vez, mas não há emenda ao segundo poste. Schumacher, agora ele, voa para evitar o golo de Rocheteau.   Entra-se nos descontos. Amoros tenta de longe e acerta na trave. Breitner também tenta a meia-distância, para Ettori defender para o lado e ainda ter de mergulhar e evitar a emenda de Fischer.


Prolongamento. E a vertigem continua. 92 minutos, livre lateral de Giresse, a bola desvia na barreira e apanha Trésor sozinho na área. O vólei não dá hipótese alguma a Schumacher. 2-1. A França não chega ao 3-1 sem Ettori voltar a ser testado por Littbarski, a fazer um jogo soberbo. E também sem que Karl-Heinz Rummenigge, mesmo debilitado, entre em campo. Passam seis minutos desde o remate certeiro do central gaulês e os «Bleus» parecem ter morto o jogo em definitivo. Rocheteau leva a bola e passa-a para o maestro Platini no meio. Este entrega-a na esquerda em Six, que a devolve atrasada para a entrada da área. Aí já não está o 10, mas sim Giresse, que remata com o peito do direito, fazendo a bola bater no poste antes de entrar. 3-1 no prolongamento. 

A Alemanha bate no fundo, mas está derrotada?

O «não» chega por parte de Fischer, que acerta na baliza. Não é golo por posição irregular, mas fica o aviso. Aos 102, a Alemanha reduz. Giresse perde a bola em zona de ataque. Breitner e Rummenigge fazem a bola chegar ao lado esquerdo, onde está Littbarski. O cruzamento é perfeito e Rummenigge ainda chega a tempo de desviar ao primeiro poste, praticamente de costas para a baliza e pressionado por Janvion. Um grande golo!
   
A   Mannschaft pressiona. Littbarski continua impressionante. Aos 108 minutos vai à esquerda, cruza para o segundo poste, Hrubesch, a   Besta, ganha nas alturas a Janvion e assiste para trás, onde está Fischer para um belo pontapé de bicicleta. Fantástico!  A intensidade continua, até o árbitro apitar para os penáltis.

Stielike foi apenas o primeiro a chorar

A lotaria de sempre, mas a primeira vez que uma meia-final de um Mundial era decidida nos penáltis. Giresse marca o primeiro, Kaltz responde. O mesmo acontece com Amoros e Paul Breitner. Na terceira grande penalidade, Rocheteau mantém a eficácia dos franceses, mas Uli Stielike permite a defesa de Ettori. O central desfaz-se em lágrimas e fica sentado na relva, até ser levado até ao resto da equipa por Littbarski. Senta-se à margem e continua com as mãos na cara. Chora.

Na ronda seguinte, é a vez de Six falhar, permitindo a igualdade a Littbarski. As estrelas Platini e Rummenigge levam a decisão para a morte súbita. Schumacher defende o segundo penálti, desta vez de Bossis, e Hrubesch, com uma frieza incrível, assina a passagem à final.  Com a vitória todos procuram Stielike, ainda no chão. O primeiro abraço é de Schumacher, que passara de vilão a herói. Depois, é o resto da seleção germânica que conforta o seu defesa. 


«Se foram só os dentes eu pago as coroas»

«O jogo mais bonito» da carreira de Michel Platini tinha acabado, e com uma derrota. De volta a uma meia-final, a primeira desde 1958, a França volta a ficar afastada do título. No entanto, mais do que os golos fantásticos, a intensidade, a garra, a agressividade, todos pensavam em Battiston inconsciente primeiro, depois com falta de ar, e transportado de maca para fora do relvado, sem se conseguir mexer. Quando disseram a Schumacher que Battiston tinha perdido dois dentes, o alemão incendiou ainda mais o ódio que os franceses já tinham por ele: «Se é só isso que está errado com ele digam-lhe que pago as coroas.» 

Num jornal francês, poucos dias depois, um inquérito era claro: o guarda-redes era o alemão mais odioso da história, atrás de Adolf Hitler. 
   
Nem as palavras de Platini, completamente extasiado apesar da derrota, apagavam o que se tinha passado: «O que aconteceu nessas duas horas incorporou os sentimentos da própria vida. Nenhum filme ou peça de teatro conseguiria capturar todas contradições e emoções. Foi completo. Tão forte. Fabuloso!»  

FICHA DE JOGO  
Estádio Ramón Sánchez Pizjuán, em Sevilha  
Meias-finais do Campeonato do Mundo 
8 de julho de 1982  
ALEMANHA – Schumacher; Kaltz, Karl-Heinz Förster, Stielike e Briegel (Rummenigge, 96); Bernd Förster, Dremmler, Breitner; Magath (Hrubesch, 72); Littbarski e Fischer  
FRANÇA – Ettori; Bossis, Janvion, Trésor e Amoros; Giresse (Battiston, 52) (López, 62), Tigana, Genghini e Six; Platini e Rocheteau  
Marcadores: Littbarski, 17; Platini, 26 gp; Tresor, 92; Giresse, 98; Rummenigge 102; Fischer, 108  
Disciplina: cartão amarelo a Giresse e Genghini; Bernd Förster  
Penalties: 0:1 Giresse, 1:1 Kaltz, 1:2 Amoros, 2:2 Breitner, 2:3 Rocheteau,(2:3) Stielike (save Ettori), (2:3) Six (save Schumacher), 3:3 Littbarski, 3:4 Platini, 4:4 Rummenige, (4:4) Bossis (save Schumacher), 5:4 Hrubesch  

Veja o jogo completo: