Possesso. Enlouquecido. Mourinho, que ainda não era o Special One, o Happy One ou sequer o Normal One ( copyright: Eden Hazard), deixou-se levar para lá do limite, desgovernado, nesse intenso Sporting-FC Porto de há dez anos. O de dia 31 de janeiro de 2004.

Era o primeiro clássico no novo Estádio de Alvalade, com os da nova casa ainda a sonharem com o título. A liderança ficaria a dois pontos em caso de triunfo; o Benfica andava ainda longe, mas começaria aí a recuperação que o levaria a terminar no segundo posto, com mais um ponto que os pupilos de Fernando Santos. O velho rival até estava bem presente, com Luís Filipe Vieira em carne e osso, e a memória de Miklos Fehér, falecido há uma semana em Guimarães. Um minuto de silêncio sentido, uma tarja naquelas bancadas, outrora território inimigo, com o seu nome.

Mou como raramente o vimos. Rui Jorge não tinha deixado ainda assentar o fair play – o colega João Vieira Pinto tinha chocado com o painel publicitário e parecia ter o ombro deslocado -, e o lançamento lateral apanhara meia-equipa distraída e Liedson ombro-a-ombro com Paulo Ferreira. O «Levezinho» faria jus ao nome e cairia fácil, levando Lucílio Baptista a apontar para a marca de 11 metros.

Fábio Rochemback criara um primeiro penálti, na etapa inicial, com um passe que desequilibrou não só a defesa portista mas também a si, caindo de rabo no relvado. E, a seguir, falhara a conversão. Não podia ser ele desta vez. Pedro Barbosa, que tinha estado em dúvida antes da partida, assumiu a responsabilidade de avançar para a bola. Baía, em noite infeliz, lançou-se para o lado certo. À altura certa. E chegou a julgar, por centésimos de segundos, que tinha defendido. Mas a bola passou-lhe por baixo das mãos. 1-1, aos 69 minutos. E Alvalade tornava-se o epicentro de mais um sismo que abalava o futebol português.


Pedro Barbosa empatou, de penálti

Culpado!

Quatro meses e meio depois, a Comissão Disciplinar da Liga consideraria provadas as acusações dos dirigentes do Sporting contra Mourinho. José Eduardo Bettencourt, administrador da SAD leonina, aparecera na sala de imprensa de Alvalade com a camisola rasgada de Rui Jorge e incendiara o clássico para o resto do ano.

O roupeiro Paulinho levara duas camisolas de jogadores do Sporting até ao balneário do adversário para trocá-las, entregou-as a Baía e o guarda-redes pediu-lhe que esperasse. Quando Paulinho regressou junto dos seus, fê-lo com a camisola de Rui Jorge rasgada e um recado para o futebolista. Mourinho desejava que ele morresse em campo. 

José Eduardo Bettencourt, na sala de imprensa, a acusar Mourinho:


O castigo ao técnico saiu já depois de se tornar campeão europeu frente ao Mónaco e de ter assinado contrato com o milionário Chelsea: 10 dias de suspensão e três mil euros de multa, pela «conduta violadora de deveres elementares», com «consciência da ilicitude».

Os primeiros traços do escândalo

Antes, logo após o apito final de Lucílio, surgiram os primeiros sintomas de que Mourinho estava fora de si e que, por ele, não ficaria pedra sobre pedra em Alvalade. «Foi uma grande merda de jogo», dizia aos microfones da rádio. Logo depois, quando era Barbosa quem falava nas entrevistas rápidas à televisão, comentaria de perto: «Não digas isso, Pedro. Sabes que estás a mentir. Não te fica bem mentir.» Estava fora de si.

Mourinho pode não ter gostado, mas a verdade é que o jogo tinha sido intenso. O FC Porto a marcar cedo, aos oito minutos, por Jorge Costa, na sequência de mais um livre mágico com assinatura de Deco. Miguel Garcia impotente para controlar tamanha força de vontade do capitão no salto picado para a bola. 

Jorge Costa festeja o primeiro golo

O Sporting reagiria. O penálti de Rochemback em cheio na trave, com Baía já no chão e a olhar para cima para desviar com os olhos. Deco e Baía no limite do cartão vermelho. Os dois derrubes a Liedson. A lesão aparentemente grave, no ombro, do grande artista João Pinto. O golo de Pedro Barbosa. A estocada final falhada pelo pé cego de Niculae, que regressava aos relvados oito meses depois de lesão. Tudo num crescendo apoteótico.

Um FC Porto frágil

Foi esse talvez o único momento da época em que o dragão se mostrou mais frágil. Ou os outros pareceram mais próximos. O FC Porto jogou menos, controlou menos e esteve mais perto de perder do que em algum outro encontro até aí. Os leões tinham mesmo levado Mourinho e os seus para lá do imaginável. E tinham algo para os alimentar nos próximos jogos.

«Após o nosso golo e durante a primeira parte houve dez ou quinze minutos em que não houve futebol, houve uma grande palhaçada por parte de um grande jogador, o Liedson. Disse-lho no final. Com simulações de faltas, de agressões, o desrespeito por um colega, mandando-se para o chão, tudo isto com uma complacência total do árbitro. Depois, a primeira grande penalidade, talvez em fora de jogo; e, na segunda parte, vi das coisas mais sérias no futebol português nos últimos tempos: um jogador lesionado com uma gravidade que ninguém sabe. A dúvida se o João se lesionou na omoplata, no joelho, na cabeça; e no relvado todos ficam na dúvida. A bola está fora, os jogadores chamam a equipa médica, os do FC Porto são os primeiros a chegar e, num acto inqualificável - não quero dizer o nome do jogador que lança a bola - a bola é lançada, o Liedson participa da festa e depois é penálti. Em Inglaterra até se repetem jogos por causa destas coisas...»

Falar direito por palavras tortas

Mourinho prosseguia, numa fúria crescente. E o futebol português abria a boca, de espanto. «Depois do que vi neste jogo, muita gente vai ficar contente, sei que muita gente não gosta de mim... Por favor, presidente Pinto da Costa, no final da época deixe-me ir embora, rapidamente e para longe disto. Peço, peço para sair. Vamos ver se o presidente deixa, se deixar estou fora no final da época. Se deixar agradeço, se não deixar vou ficar. Não gosto disto, gosto de ganhar e se tiver de perder perco. Sonhava poder cumprimentar o adversário no dia em que perdesse e hoje, porque isto para mim é uma derrota, não o posso fazer. O futebol português também não gosta de mim, por isso quanto mais depressa sair, melhor para todos.»

Mou sairia mesmo. Mas, certamente, não terá sido a pensar em Rui Jorge. Assinaria contrato pela primeira vez com o Chelsea e faria história em Londres. E, depois, em Milão. Também em Madrid, seria ele quem bateria o super-Barça. Sempre polémico, sempre no limite, na capital espanhola também o veríamos fora de si algumas vezes, sobretudo naquele momento em que se decidiu vingar em Tito Vilanova, adjunto de Guardiola no Barcelona, espetando-lhe o dedo no olho. Mas talvez nada ultrapasse a intensidade daquele 31 de janeiro, em Alvalade. O dia do clássico da camisola rasgada.

Os melhores momentos do encontro:


Os onzes iniciais: