A 5 de janeiro de 1974, é anunciado ao mundo, a partir do Grande Estúdio da Rádio de Frankfurt, que a Guerra Fria chegará ao futebol no verão seguinte.

Sem a capacidade dos Estados Unidos para construir uma grande equipa que pudesse enfrentar de igual para igual a União Soviética, os papéis principais do primeiro embate com tão vincados contornos geopolíticos são entregues à República Federal Alemã (RFA, ou Alemanha Ocidental) e à República Democrática Alemã (RDA, ou Alemanha Oriental). O embate está marcado para o lado oeste do Muro de Berlim, em pleno Mundial.

Capitalismo contra Comunismo, mas não só. Sobretudo, irmãos contra irmãos. Um embate «fraticida».

É em Hamburgo que RFA e RDA se defrontam pela primeira e única vez num campo de futebol - Bem, na verdade é a segunda, já que dois anos antes duas equipas amadoras de ambos os países tinham-se encontrado nos Jogos Olímpicos, mas vamos esquecer esse jogo para ajudar a manter a lenda. E nunca mais voltarão a reencontrar-se.

É a primeira vez ainda que os de Leste participam num Campeonato do Mundo, depois de terem contrariado a favorita Roménia, mas também a Finlândia e a Albânia na qualificação. E será a primeira, obviamente, que se apuram para a fase seguinte.



Obrigados a manter distâncias

O que nos chega até hoje descreve um jogo tenso, um ambiente carregado. Mas não pelo jogo em si.

Tantos os rapazes de Helmut Schön, campeões da europa dois anos antes – só Erwin Kremers não fez parte desse grupo –, como os novatos de Georg Buschner estão qualificados já para a segunda fase de grupos.

Há um primeiro lugar em discussão, que nem muito desejado é. O vencedor do Grupo 1 tem destino traçado: à sua espera está o Brasil, mas também a surpreendente Holanda e a Argentina. Já o segundo classificado terá que disputar o apuramento para os jogos de atribuição e quarto lugares e também para a final com a Polónia (apesar do goleador Lato), a Jugoslávia e a Suécia.

Se não existia pelos pontos e pela classificação, a tensão sentia-se por tudo o que se passava fora das quatro linhas. Os jogadores da RFA tinham sido avisados para não mostrar qualquer tipo de empatia com os «irmãos» de Leste, e que qualquer manifestação de companheirismo ou troca de recordações deveria ser guardada para os balneários, longe dos olhares do resto do mundo e mais perto do controlo das Stasi.



Forças desiguais

60 mil espectadores no Volksparkstadion, e apenas 1500 torcem pelos que ali estão e pelos outros que ficam do outro lado do Muro. Um território fértil para nascerem heróis, assim do nada.

Buschner, que recolhera prestígio com a medalha de bronze conquistada nos Jogos Olímpicos de há dois anos, mantém a espinha dorsal dessa equipa, formada por 13 jogadores. Entre eles está o médio do Magdeburgo Jürgen Sparwasser, que ergue a Taça dos Vencedores das Taças mês e meio antes em Roterdão (2-0 ao Milan). Ele será o nosso herói, mas ninguém o espera.

Do lado dos futuros campeões mundiais – até o Bayern tinha ganho a Taça dos Campeões Europeus pouco tempo antes –, estão nomes bem mais conhecidos: Sepp Maier, Franz Beckenbauer, Berti Vogts, Paul Breitner, Uli Hoeness, Wolfgang Overath, Gerd Müller, entre outros.
 
Incapazes de ferir

O jogo não é brilhante, mas como já se disse o futebol parecia ser o menos importante desse dia. Na primeira parte, a Alemanha domina e cria oportunidades, mas Müller é um bombardeiro sem pontaria (e felicidade, porque ainda acerta no poste), tal como Hoeness e Overath. Do outro lado, a RDA tem plena consciência das suas limitações, mas consegue ir respondendo. Tem mesmo uma oportunidade flagrante, mas a finalização sai por cima da trave. Entretanto, apoia-se no físico e espera a sua oportunidade.

Com o tempo, a Alemanha Ocidental vai perdendo intensidade e o que era impossível ou, pelo menos, bastante improvável tem a sua janela de oportunidade.


 
A pincelada na história

Hamann recebe a bola na direita do seu guarda-redes, passa a linha do meio-campo até que Beckenbauer surge para fazer o primeiro movimento de pressão, e joga direto, rápido para a frente.

Da esquerda para o meio, Sparwasser acredita que pode levar a melhor sobre os três defesas que restam à RFA, entre os quais Vogts e Horst-Dieter Hottges. Domina com a cara o suficiente para diminuir a desvantagem para apenas dois adversários diretos e continua a fugir para a direita. Não remata logo e Maier, o gato, não tem reflexos suficientes para cair e voltar a levantar-se logo depois. Uma ligeira simulação tinha-o deixado praticamente batido.

Depois, Sparwasser remata para cima, para um golo histórico.

«Se um dia a minha lápide disser simplesmente Hamburgo 1974 toda a gente continuará a saber quem estará por baixo»
 
Festa? Qual festa?

Na verdade, Sparwasser não iria ser o herói que julgava certamente nesse momento, apesar do busto que lhe fizeram depois para a Expo Mundial de 2000 em Hannover. Nem ele nem o resto da equipa, mesmo após a excelente campanha. No Grupo A, a RDA ficaria atrás de Holanda e Brasil e seria eliminada, mas para primeira vez num Campeonato do Mundo e depois de vencer o futuro campeão nem estava mal.

Os jogadores não seriam recebidos em festa, nem haveria grande entusiasmo para lá da Cortina de Ferro. Talvez com receio da derrota, não tinha sido feita grande publicidade antes do pontapé de saída entre as duas Alemanhas. Depois, as baterias da propaganda iriam dedicar-se a isso. Mas à sua maneira.

O «The Observer» já tinha dado o mote e falado em «vitória política» dos alemães de leste.

O que valeu o golo?

«Houve rumores de que fui ricamente recompensado pelo golo, com um carro, uma casa e um prémio avultado em dinheiro, mas isso não é verdade», negou anos depois Sparwasser.

Para os ocidentais, a derrota pode ter reforçado o cliché e ter sido mesmo mãe de futuras vitórias. Algo em que Beckenbauer acredita: «O golo de Sparwasser serviu para que acordássemos. Sem este nunca teríamos sido campeões do mundo.»

Na Alemanha de Leste, terá certamente havido aproveitamento político desse momento de genialidade de Sparwasser. Poderá até ter ajudado a recuperar as fundações do Muro até 1989, ano em que já não aguentou mais.

Fez 25 anos no sábado que desabou, abrindo espaço para a reunificação.

No entanto, o antigo médio do Magdeburgo não foi dos que passou do Leste para o Ocidente nessa altura. Já o tinha feito um ano antes, aproveitando um jogo de veteranos para ficar do outro lado da fronteira. 

Os melhores momentos do RFA-RDA do Mundial de 1974:


RDA-RFA, 1-0
Campeonato do Mundo de 1974
Estádio: Volksparkstadion, Hamburgo
Assistência: 60.200 espectadores
Árbitro: Ramon Barreto (Uruguai)

RDA  Jürgen Croy; Gerd Kische, Bernd Bransch, Konrad Weise e Siegmar Wätzlich; Reinhard Lauck, Harald Irmscher (Erich Hamann, 68), Lothar Kurbjuweit, Hans-Jürgen Kreische e Jürgen Sparwasser; Martin Hoffmann
Treinador:  Georg Buschner

RFA   Sepp Maier; Berti Vogts, Paul Breitner, Franz Beckenbauer, Hans-Georg Schwarzenbeck (Horst-Dieter Höttges, 68); Bernhard Cullmann, Uli Hoeness, Wolfgang Overath (Günter Netzer, 69), Jürgen Grabowski; Gerd Müller e Heinz Flohe
Treinador: Helmut Schön

Ao intervalo: 0-0
Marcador: Jürgen Sparwasser, 77 minutos