Semana após semana são local de romaria. São palco para os artistas e tribuna para os espectadores de um dos espetáculos que mais mexe com as gentes. Aguentam saltos, gritos, lágrimas e sorrisos, em amálgamas de emoções tão instáveis quanto uma bola que rola mais para cá ou para lá. Todos lhes reconhecem a designação, mas poucos conhecem a história da figura por detrás e é por isso que vamos em busca da Anatomia de um nome.

No passado dia 8 de dezembro cumpriram-se 107 anos desde a fundação do histórico Sport Comércio e Salgueiros. A data foi assinalada com um presente especial: o anúncio do regresso do clube à cidade do Porto, passando a competir no Complexo Desportivo de Campanhã, depois de vários anos a jogar em Matosinhos e na Maia.

Este motivo extra para a celebração do aniversário do clube fez-nos saltar à memória um palco icónico do futebol nacional: Estádio Engenheiro Vidal Pinheiro.

Foi por isso que mergulhámos na história do clube que recuperou o nome original em 2016, depois de ter andado anos a competir como Salgueiros 08 devido a graves problemas financeiros.

Quem foi, afinal, Alexandre Vidal Pinheiro, e o que fez para que o Salgueiros imortalizasse o seu nome na história do futebol português?

Desde já, podemos dizer quer foi alguém que fez do Salgueiros um bastião da democracia e cuja existência foi praticamente apagada da história devido aos ideais republicanos que defendeu até ao fim precoce dos seus dias.

«Uma figura quase mística»

Por aquilo que se afirmou atrás, a primeira coisa a dizer sobre Alexandre Vidal Pinheiro é que foi uma figura da resistência antifascista. Esse é o seu principal legado, mas também a razão para que a sua existência tenha sido, em grande parte, censurada.

Ou, dito de outra forma: «Vidal Pinheiro é uma figura quase mística», como afirma José Pedro Reis, historiador que tem trabalhado num livro sobre o SC Salgueiros que deverá ser publicado em breve.

«Ele tornou-se uma personagem completamente desprezada pelos meios jornalísticos por ser um homem de convicções fortes e uma voz contra o regime. Era um progressista de ideias fortes e caracter vincado. Ou seja, os registos sobre ele são quase inexistentes devido à censura», explica.

Ora, aquilo que se sabe é que Alexandre Vidal Pinheiro nasceu na freguesia de Bonfim, no Porto, a 10 de junho de 1903, no seio de uma família de algumas posses e ligada ao desporto.

Sobre a educação e convicções republicanas de Alexandre Vidal Pinheiro, escreveu Helena Pato, autora da página «Antifascistas da Resistência».

«Começou os estudos no Colégio Militar e dali seguiu para a Academia Militar, escola em que se formou em engenharia, profissão que exerceu até ser proibido pelo regime.»

A proibição aconteceu, ainda de acordo com a mesma autora, porque com a Revolução de 28 de maio de 1926, após a qual foi implantado o Estado Novo, Vidal Pinheiro recusou o convite para frequentar os Altos Estudos Militares, «com a condição de abandonar as atividades políticas».

A recusa valeu-lhe ordem de prisão, tendo sido enviado, inicialmente, para os Açores, e depois para Cabo Verde, por ter participado numa rebelião a bordo do navio onde ia detido.

Após cerca de dois anos na antiga colónia portuguesa, o Tenente Vidal Pinheiro voltou aos Açores onde, em 1931, integrou a Junta Revolucionária de Angra do Heroísmo que promoveu uma revolta que lhe valeu a expulsão do exército.

Helena Pato explica que os repetidos episódios de resistência fizeram com que Vidal Pinheiro acabasse proibido de desempenhar a profissão de engenheiro, ficando «privado de qualquer remuneração para o resto da vida.»

Isso, no entanto, não o impediu de continuar a pautar a vida pelos seus valores, incluindo a luta intransigente pela liberdade e democracia.

O clube de base operária que criou alma eclética

Pela mesma altura da saída do exército, a ligação a outra das suas paixões tornou-se mais forte. No início da década de 30, foi Vidal Pinheiro quem cedeu uns terrenos na freguesia de Paranhos – o clube nascera na Lapa, mas foi-se afastando do centro da cidade «devido a algo que continua muito atual: a especulação imobiliária», explica José Pedro Reis -, onde viria a ser erigido o estádio para o Salgueiros.

«Os terrenos foram cedidos por ele, e depois houve um trabalho e esforço dos sócios que ajudaram a construir o estádio com as próprias mãos».

«Vidal Pinheiro encontrou um clube que tinha nascido no seio da fábrica de Salgueiros, de base operária, mas com homens progressistas. Os salgueiristas sempre tiveram uma mentalidade muito própria e foi isso que permitiu que o clube tenha chegado a rivalizar com o FC Porto em termos de mobilização popular.»

«Vidal Pinheiro foi sempre uma figura salvadora do Salgueiros. Foi alguém que trabalhou, lutou e angariou apoios para o clube. Ele sabia que o grande problema do clube sempre fora a falta de infraestruturas e por isso cedeu os terrenos.»

«Mas foi também ele o grande responsável por construir o ecletismo que se tornou a alma e mentalidade do Salgueiros», elogia ainda José Pedro Reis, enumerando as equipas de andebol, polo aquático, atletismo, entre outras, que o clube chegou a ter.

Ainda que não haja registos que mostrem com rigor o tempo durante o qual Vidal Pinheiro foi presidente do Salgueiros, o historiador diz que o engenheiro Vidal Pinheiro fez parte de várias comissões administrativas e que cita pelo menos uma entrevista em que ele é apresentado como presidente do clube.

A coragem que castigou o Salgueiros

Em 1949, foi Vidal Pinheiro o grande responsável por um ato que viria a tornar o Salgueiros um ícone da luta pelo fim da ditadura, mas que marcaria também para sempre a relação do regime com o clube do Porto.

Na corrida de José Norton de Matos à Presidência da República contra o Marechal Carmona, candidato do regime, a oposição quis fazer um comício no Porto. E quando tantas outras portas se fecharam, as do estádio do Salgueiros escancarou-se para receber o homem que representava a esperança de maior liberdade.

«Esse foi um dos momentos que tornou o Salgueiros num símbolo da resistência. Estiveram milhares de pessoas no comício da oposição e tudo correu sem incidentes», garante José Pedro Reis. A repercussão desse momento de contestação ao regime, porém, foi grande, orgulha-se o historiador do Salgueiros.

«Foi por causa do que aconteceu naquele estádio que Salazar proibiu, daí em diante, a realização de comícios políticos em estádios de futebol. Ele percebeu a força que aquilo podia ter e não quis que se repetisse», revela.

O clube sofreu, depois, com a vingança do regime, que passou, desde logo, pela retirada de todos os apoios. A ousadia saiu cara e, só por isso, aquele momento não foi uma vitória total de Alexandre Vidal Pinheiro.

Foi, contudo, a última que teve em vida o homem que faleceria em setembro de 1950, com apenas 47 anos, numa altura em que já tinha sido eleito por unanimidade presidente honorário do Salgueiros.

A história encarregou-se do resto. O Estádio Vidal Pinheiro tornou-se um dos mais míticos do futebol nacional das décadas de 80 e 90. Hoje, é verdade, já não existe. O local onde outrora jogaram os nomes maiores do futebol é agora paragem de metro. A história que ali corre, porém, é difícil de apagar.

[Foto de capa cedida pelo zerozero.pt]

[artigo originalmente publicado às 23h55, 17-12-2018]

----

Leia outros Anatomia de um nome:

1. Mário Duarte, o rival que se tornou indissociável do Beira-Mar

2. Sánchez-Pizjuan: apontou o Sevilha aos títulos e democratizou-o na ditadura

3. José Alvalade: acima do Sporting, só a ambição pelo ecletismo

4. Antonio Vespucio Liberti: o pai que ergueu um templo Monumental ao River