Semana após semana são local de romaria. São palco para os artistas e tribuna para os espectadores de um dos espetáculos que mais mexe com as gentes. Aguentam saltos, gritos, lágrimas e sorrisos, em amálgamas de emoções tão instáveis quanto uma bola que rola mais para cá ou para lá. Todos lhes reconhecem a designação, mas poucos conhecem a história da figura por detrás e é por isso que vamos em busca da Anatomia de um nome.

Vicente Calderón Pérez-Cavada nasceu em 1913, em Torrelavega, na região da Cantábria, no norte de Espanha, mas seria na capital do país que se iria fazer figura fundamental da história do futebol mundial, tornando o Atlético de Madrid, do qual se fez sócio em 1939, num dos clubes com maior palmarés do futebol espanhol.

A mudança para Madrid aconteceu quando Vicente Calderón tinha 19 anos, e foi na capital espanhola que construiu a carreira de empresário que lhe deu alguma visibilidade, tendo depois também exercido as funções de promotor imobiliário.

A par da gestão profissional das empresas que fundou e geriu, em 1963, Calderón integra a direção de Javier Barroso como terceiro vice-presidente do Atl. Madrid, numa altura em que o clube atravessava uma grave crise financeira. 

Ninguém melhor para gerir uma situação assim do que alguém que, em cerca de sete anos em Madrid se tornou presidente de 37 (!!) empresas.

Contudo, a forma como chega à presidência é até descrita em Espanha como «acidental»: ocorre quando o presidente e os outros dois vice-presidentes abdicam dos cargos, abrindo caminho a Vicente Calderón.

Depois de dirigir a junta diretiva até à realização de novas eleições, em março torna-se no 21.º presidente da história do clube colchonero, que nunca mais seria o mesmo.

Vicente Calderón e a sua principal obra: o estádio que o imortalizou na história do futebol mundial

A tentativa de humilhação… pelo Real Madrid

Durante a presidência de Javier Barroso, o Atlético Madrid iniciara uma necessária mudança de casa. Tudo, porque o antigo Estádio Metropolitano tinha-se tornado demasiado pequeno para os seguidores que o clube angariara desde que fora fundado, em 1903.

Atualmente, é fácil olhar para trás e perceber que Vicente Calderón se tornou no nome maior da história do clube devido aos títulos que a equipa venceu sob a sua presidência. Mas a forma como Calderón começou a conquistar os adeptos do clube foi, à época, bem mais importante: ele foi o homem que impediu a humilhação perante o Real Madrid, o grande rival.

Tudo começou na tal mudança de estádio e foi um feito eternizado numa tarja exibida no dia da inauguração do novo estádio, em 1966, na qual se lia: «Ya estamos en nuestra casa/y nadie nos ha humillado/mientras ellos van de pie/nosotros, todos sentados» [Já estamos na nossa casa/ e ninguém nos humilhou/ enquanto eles continuam de pé/ nós estamos todos sentados].

A razão foi explicada pelos autores da tarja, em declarações ao jornal As, anos mais tarde, em 2017, aquando da saída do Estádio Vicente Calderón.

«Quando tivemos de sair do Metropolitano, o novo estádio ainda não estava pronto. Então, o Atl. Madrid pediu para jogar no Chamartin, estádio do Real Madrid. Eles disseram que sim, mas com a condição de os sócios do Real poderem entrar de forma gratuita no estádio… o Vicente Calderón recusou aquilo e conseguiu prolongar por mais um ano a estadia no Metropolitano», recordou o grupo de adeptos.

Ou seja, Calderón não se vergou à exigência do rival - do qual, curiosamente, também era sócio - e, apesar das dificuldades, evitou que o Atl. Madrid passasse a poder ter nos jogos em casa adeptos infiltrados do histórico adversário da capital espanhola.

De Luis Aragonés (e Otto Glória) à venda da maior referência… ao rival

Depois da recusa à humilhação, a última época no Metropolitano acabou coroada com a conquista do título espanhol, o primeiro de quatro que o clube iria alcançar sob a direção de Calderón.

Foi, portanto, em clima de grande festa que em outubro de 1966 foi inaugurado o novo Estádio de Manzanares, nome que encontrava justificação no facto de a nova casa colchonera nascer junto de uma das margens do rio com o mesmo nome.

Um vídeo da inauguração do ainda Estádio de Manzanares, no qual se vê a tarja que ficou para a história:

O outro lado da provocação da tarja também tem explicação. É que o novo estádio, com capacidade para quase 70 mil espectadores, era distinto dos demais por… ter cadeiras em todas as bancadas. E isso era um claro motivo de orgulho para Vicente Calderón.

«Para mim há uma vantagem clara: todos os espectadores vão poder estar sentados. Isso faz com que o nível de vida suba em relação ao que tínhamos antes, algo que fará com que o estádio seja mais rentável. E é uma coisa que já se está a fazer nos Mundiais», declarou aquando da inauguração, em declarações à TVE.

Ora, do dia da inauguração, numa partida diante do Valência, sobram ainda algumas curiosidades. Desde logo, o facto de o primeiro golo no estádio ter sido apontado por outro dos nomes maiores da história do clube: Luis Aragonés. Isto, numa equipa que era orientada por Otto Glória, acabado de dirigir os Magriços no Mundial de 1966.

Naquela casa, que em julho de 1971 foi batizada com o nome do ainda presidente, Vicente Calderón, o Atl. Madrid celebrou, até à época 79/80, a conquista de mais três títulos espanhóis e de três Taças do Rei, bem como a presença na primeira final da Liga dos Campeões Europeus (1974) – perdida para o Bayern Munique – e a conquista da Taça Intercontinental, no mesmo ano.

Em 1980, porém, em virtude de resultados menos positivos e de uma fase de menor pujança financeira, Vicente Calderón demite-se da presidência. Isto, apesar de uma grande parte dos sócios se ter mostrado contra a decisão e terem pedido a reeleição de Calderón.

Nada feito… até 1982. Isso mesmo, dois anos - e quatro presidentes - depois do pedido de demissão, e com o clube mais afundado em termos financeiros, Vicente Calderón não resistiu aos apelos e voltou a assumir a presidência do clube, que, além de todos os restantes problemas, estava então de costas voltadas com as entidades federativas.

O retomar das relações institucionais do clube com a Federação fez de Vicente Calderón também o mediador das relações entre os principais clubes espanhóis, tendo presidido ao comité criado para a criação do que hoje é a Liga de Futebol Profissional, uma das marcas de futebol mais fortes a nível mundial na atualidade.

Desengane-se, porém, quem achar que a segunda fase de Calderón à frente dos colchoneros esteve isenta de críticas. Desportivamente, em cinco anos, o Atl. Madrid venceu apenas uma Taça do Rei (84/85) e uma Supertaça (85).

A maior derrota do presidente do clube aconteceu, no entanto, nesse mesmo verão. Com a grave crise financeira que o clube atravessava, Hugo Sánchez, a grande referência do clube nas quatro épocas anteriores, exigiu deixar o Atl. Madrid.

Quem viu nisso uma oportunidade imperdível foi o vizinho e maior rival, Real Madrid, que convenceu o avançado mexicano a mudar-se para a equipa blanca, apesar de o Barcelona ter apresentado uma oferta superior.

Com a operação, rezam as crónicas oriundas de Espanha, Vicente Calderón salvou o Atl. Madrid da bancarrota, mas viu aumentar a contestação por uma grande parte dos adeptos, bem como a oposição dentro do clube.

Os últimos anos de mandato foram, portanto, vividos num clima que se afastava daquele que fizera dele uma figura incontestada no clube. Em 1987, ainda na presidência do Atlético Madrid, Vicente Calderón morreu de forma repentina, depois de alguns dias em coma devido a um derrame cerebral.

A história, porém, encarregou-se de eternizar o nome de Vicente Calderón. E por muito que o estádio que batizou esteja a poucos dias de começar a ser demolido, dificilmente se irá desmantelar da memória geral o nome de Vicente Calderón.

O presente e o futuro do clube voltaram a mudar de casa, rumando novamente a um Metropolitano, o Wanda Metropolitano. Mas se existe presente e um passado recheado de títulos, a história mostra que isso é muito devido a Vicente Calderón. E a emotiva despedida do estádio deixa isso bem claro também.

Veja a forma como adeptos, jogadores e antigos jogadores se despediram do Estádio Vicente Calderón:

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Artigo original: 11/02/2019; 23h50