As bancadas do Metropolitano lotadas, o ambiente de um grande jogo. E lá em baixo quem joga são mulheres. Atlético Madrid-Barcelona, um domingo de março de 2019 que fez história: 60.730 espectadores, nunca antes se tinha visto uma assistência assim num jogo de futebol feminino de clubes. Bateu um recorde com… 100 anos. E isso só por si diz tanto sobre o difícil e sinuoso caminho do futebol jogado por mulheres até chegar a estes tempos de entusiasmo.

Há um século havia futebol feminino a arrastar multidões, por incrível que pareça visto daqui. Partamos desta imagem de 2019 para recuar até então. No Boxing Day de 1920 as Dick, Kerr Ladies defrontaram as Helen’s Ladies no Goodison Park com 53 mil pessoas a assistir, dizem as crónicas. E dizem também que muitas mais ficaram de fora. Era o recorde que perdurava até agora.

O fenómeno tinha nascido na I Guerra Mundial. Era o tempo em que a maioria dos homens jovens partia para a guerra e as mulheres assumiram muitos dos seus papéis tradicionais. No trabalho e também no desporto. Elas eram a força de trabalho nas fábricas, muitas delas em fábricas de munições, e muitas passaram a jogar futebol como forma de aproveitar o tempo nas pausas para almoço.

As equipas femininas floresceram em Inglaterra, com o campeonato masculino suspenso por causa da guerra, chegaram a ser mais de uma centena. Organizavam-se competições, também jogavam contra equipas masculinas e muitos dos jogos serviam para angariar dinheiro para os soldados vitimados pela guerra. Em 1917 jogou-se um torneio a que chamavam «Munitionettes Cup», precisamente em alusão às origens das jogadoras/trabalhadoras. Esses jogos eram um sucesso e apareciam com frequência nas «atualidades» noticiosas. Ainda é possível encontrar imagens nos arquivos da British Pathé. Aqui, uma compilação preciosa de algumas dessas imagens.

A equipa das Dick, Kerr Ladies foi a mais bem sucedida daquele tempo. Nasceu em 1917, criada por trabalhadoras da fábrica que lhe deu o nome, uma empresa de locomotivas com a produção recentrada, como muitas, para o fabrico de munições durante a Grande Guerra.

Tinha verdadeiras estrelas, como Lily Parr, que jogava a extremo e era dona de um pontapé poderoso. Conta a lenda que um dia partiu o braço a um guarda-redes com um remate. Também se diz que fumava muito e recebia parte do salário em tabaco. Marcava seguramente muitos golos, à volta de mil numa carreira que havia de durar até 1951. Morreu em 1978 e tornou-se em 2002, a título póstumo, a primeira mulher a entrar no «Hall of Fame» do Museu Nacional do Desporto britânico.

As Dick, Kerr Ladies tornaram-se a primeira equipa a competir internacionalmente, tendo defrontado a França, primeiro em solo britânico e depois retribuindo a visita. A fantástica história das Dick, Kerr Ladies foi contada no livro «In a League of their own», publicado em 1994 por Gail Newsham, com muita informação aqui, no site que lhe é dedicado.

Pelo meio elas foram protagonistas daquele tal jogo que foi imortalizado até agora como recorde de assistência num jogo de clubes, no Boxing Day de 1920. E pouco depois, acabou.

Um fim ditado pela própria Federação inglesa, menos de um ano depois daquele jogo no Goodison Park. O livro e o site dedicado às Dick, Kerr Ladies recuperam também o comunicado de 5 de dezembro de 1921 em que os senhores do futebol inglês dizem aos clubes seus filiados para proibirem a realização de jogos femininos nos seus campos.

«Tendo havido queixas relativas ao futebol jogado por mulheres, o Conselho considera-se impelido a manifestar com veemência a opinião de que o jogo de futebol é muito inadequado para mulheres e não deve ser encorajado», diz a acta dessa reunião da FA de 5 de dezembro de 1921. «Também houve queixas em relação à forma como alguns desses jogos foram organizados e jogados, e à apropriação de receitas para outros fins que não de caridade. O Conselho é da opinião de que uma proporção excessiva das receitas é absorvida por despesas e uma percentagem inadequada aplicada em fins da caridade. Por estas razões o Conselho exorta os clubes pertencentes à associação a recusarem o uso dos seus campos para estes jogos.»

As Dick, Kerr Ladies continuaram a jogar, tal como várias outras equipas, recorrendo a campos não oficiais. Viriam a mudar o nome para Preston Ladies FC e o seu papel de pioneiras foi imortalizado recentemente no estádio do Preston North End, com a inauguração de uma placa gigante.

Mas nada voltou a ser como antes depois daquele «diktat» da Federação inglesa. A proibição só viria a ser abolida 50 anos depois: em 1971, dois anos depois da criação da Federação feminina, entretanto absorvida pela FA.

O futebol feminino teve de percorrer um longo, longo caminho, que se fez também dessa luta contra a discriminação e o preconceito. Continua essa caminhada, agora com muitos sinais de mudança.

O que nos leva de volta ao Wanda Metropolitano, cem anos mais tarde. O recorde absoluto de assistência em jogos de futebol feminino é do Mundial de 1999, quando estiveram mais de 90 mil pessoas no Rose Bowl de Pasadena a assistir à final entre os Estados Unidos e a China. Mas este foi um jogo de campeonato, o líder a receber o segundo classificado. E representa a segunda enchente em estádios espanhóis nos últimos três meses. Em janeiro, o At. Bilbao-At. Madrid dos quartos de final da Taça da Rainha tinha registado 48.121 espectadores em San Mamés.

Agora, o At. Madrid apostou forte para o duelo com o Barcelona, com muita promoção ao jogo nas últimas semanas. Os bilhetes para sócios eram gratuitos e os ingressos para o público em geral tinham preços entre os 5 e os 15 euros. Chegou ao número mágico de 60.739 espectadores, num estádio que tem lotação total de 67.800. Desses, 26.912 compraram bilhete, segundo informação do clube. Todos fizeram do jogo um momento de festa, apesar da vitória do Barcelona ter encurtado a vantagem do Atlético, onde joga a portuguesa Dolores Silva, agora de três pontos.

Não é regra, nem vai repetir-se por magia todas as semanas a partir daqui. Mas é um marco mais na afirmação do potencial do futebol jogado por mulheres. E o caminho, lá está, continua a fazer-se, como dizia no final Lluis Cortés, o treinador do Barcelona.

«Ando nisto há muitos anos e já joguei em campos com 20 ou 30 pessoas, as famílias e pouco mais. Estar num cenário como este é bestial. Quero felicitar o Atletico Femenino pela promoção que fez», afirmou o treinador, cuja equipa não joga no Camp Nou, mas no Mini Estadi do Barcelona. Quando lhe perguntaram para quando a repetição de algo como isto no Camp Nou, respondeu assim: «Para já o que temos de conseguir é encher o Mini Estadi. Se tanto nós como as outras equipas conseguirmos encher os nossos estádios os clubes não terão remédio se não abrir os campos.»

[artigo originalmente publicado às 23h55, 18-03-2019]