Naquele dia 24 setembro de 1988 Ben Johnson correu 100 metros do outro mundo, 9.79 segundos que bateram aquele que era então o seu próprio recorde mundial, 9.83. O segundo, Carl Lewis, fez 9.92. Mais: quatro dos oito homens naquela final olímpica de Seoul correram abaixo dos dez segundos pela primeira vez na história. São os quatro homens nesta foto. Foi épico, mas a glória durou pouco. O primeiro homem da imagem seria apagado da história. Dos oito, seis viriam a ser associados a casos de doping. Agora, 25 anos mais tarde, chamam-lhe a corrida mais suja de sempre.

Na sala de imprensa, depois da final, Ben Johnson estava eufórico.«Este recorde do mundo vai durar 50 anos, talvez 100», atirou. Também disse isto: «Uma medalha de ouro é algo que ninguém pode tirar-nos.»

Tiraram-lha menos de três dias depois de ter cortado a meta em Seoul e subido ao pódio, um lugar acima de um inconformado Carl Lewis. Esta imagem desse pódio diz tanto sobre esta história.



Muitos, mais velhos, lembrar-se-ão daquele que foi o primeiro escândalo de doping planetário, os resultados de laboratório a reescreverem uma história fantástica a que todo o mundo tinha assistido em direto. Talvez a única escala comparável seja Lance Armstrong, muitos anos mais tarde, para outra geração de fãs de desporto. Depois de Seoul o desporto de alta competição ganhou uma sombra. A cada grande proeza desportiva, poucos conseguem evitar um pensamento de dúvida. Será?

Os 100m de Seoul começaram muito antes daquele setembro de 1988. Viviam-se tempos de euforia no atletismo, com grandes nomes na velocidade. Carl Lewis era rei, foi a grande figura dos Jogos de 1984, em Los Angeles, ainda no tempo dos boicotes, sem atletas do Bloco Soviético. Ganhou os 100m e os 200m, mais os 4x100 e ainda o comprimento.

Ben Johnson era um rival emergente, foi bronze em 1984. Nascido na Jamaica, emigrou para o Canadá aos 15 anos. Foi evoluindo, ganhando corpo e velocidade e afirmando-se como o grande rival de Carl Lewis.

Em 1987, nos Campeonatos do Mundo de Roma, conseguiu o que ambicionava: derrotou Lewis, fixando novo recorde do mundo nos 100m, 9.83s.

A rivalidade entre ambos era séria e feia, depois de Roma Lewis chegou a deixar insinuações sobre a «limpeza» dos resultados de Ben Johnson. Mas chegaram ambos aos Jogos Olímpicos da Coreia do Sul sem que houvesse notícias de irregularidades.

Na final, Ben Johnson fez aquilo.



E depois desceu ao inferno. Acusou stanozolol, um esteróide anabolisante. Tiraram-lhe a medalha, o recorde do mundo e suspenderam-no por dois anos. Deram o ouro a Carl Lewis, a prata ao britânico Linford Christie, o terceiro homem na foto lá de cima, e o bronze ao norte-americano Calvin Smith.

Mais tarde, quando o próprio Ben Johnson admitiu que se dopava, tiraram-lhe também o recorde de Roma. Passaram a valer como recorde do mundo os 9.92s de Carl Lewis na final de Seoul.

Ben Johnson, que se tinha tornado herói no Canadá, virou pária. Caiu em desgraça, sem remissão. Ainda voltou, brevemente, à competição. Passou quase anónimo pelos Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992, no ano seguinte voltou a acusar positivo e foi banido para a vida.

Viveu desde então num quase anonimato, interrompido com notícias de ligações exóticas: em 1997 foi, por instantes fugazes, treinador de Diego Maradona, mais tarde treinador pessoal do filho de Muammar Khaddafi.

Em 2012 a CNN encontrou-o a treinar jovens candidatos a jogadores de futebol em Génova, Itália. E, a última ironia, em setembro de 2013, quando passaram 25 anos sobre a final de Seoul, voltou à Coreia do Sul, ao estádio olímpico. Como embaixador de uma campanha internacional anti-doping de uma empresa australiana, sob o lema «Choose the Right Track».

Cá está ele na pista de Seoul, 25 anos depois:



Os 100m de Seoul abriram caminho a um mar de suspeitas e teorias da conspiração. Ben Johnson e o seu treinador, Charlie Francis, repetiram à exaustão que toda a gente se dopava naquele tempo, e portanto eles apenas criaram condições para estar no mesmo plano que os outros. Achavam que alguém quis tramá-lo.

Francis, que morreu em 2010, disse, e escreveu, que o recurso a esteróides era prática generalizada entre os atletas que treinava, mas jurava que stanozolol nem era a droga que Ben Johnson usava. Ele preferia outra, furazabol.

Depois há tudo o resto. As dúvidas sobre Carl Lewis. O norte-americano, soube-se muitos anos mais tarde, teve três testes positivos em 1988, antes dos Jogos Olímpicos, mas a versão oficial foi que acusou valores reduzidos e portanto foi acolhida a sua explicação de que se deveu a suplementos alimentares que tomou inadvertidamente. Tal como aconteceu já depois da final, quando acusou um estimulante mas argumentou que a substância estaria num chá de ginseng. Foi apenas advertido, ao longo da carreira nunca foi formalmente sancionado por doping.

«A corrida mais suja da história»

E há todas as outras dúvidas. O norte-americano Richard Moore escreveu em 2012 um livro sobre aquela final. O título é «The dirtiest race in history». Chama-lhe a corrida mais suja de sempre e faz uma reconstrução daqueles tempos, com muito pouco controlo e muito pouca vontade política de manter o desporto limpo. Da rivalidade de Lewis e Johnson, da forma como seis daqueles oito atletas se viram mais tarde ou mais cedo envolvidos nas malhas do doping.

As exceções são o norte-americano Calvin Smith, quarto na pista, medalha de bronze para a história, e o brasileiro Robson da Silva. Smith, aliás, chegou a dizer anos mais tarde que devia ter sido ele a ficar com o ouro. «Nos últimos cinco anos sabia que me estavam a negar a hipótese de mostrar que era o melhor atleta limpo. Sabia que estava a competir com atletas dopados», disse Smith à Reuters, quando passaram 25 anos sobre a final.

Uma grande corrida, um grande embuste, provavelmente nunca será possível olhar para aquela final de uma única forma.

25 anos depois, Ben Johnson não tem dúvidas. «Independentemente do que diz o COI, é definitivamente a melhor final de sempre», disse o canadiano à CNN, num discurso em que continua presente o tom de desafio e vangloriação que marcou os seus tempos áureos e a relação com Carl Lewis. Johnson também acredita que, no que diz respeito ao recurso a doping, as coisas não mudaram assim tanto, apesar de tudo o que evoluiu no combate e no controlo. 

«Não há diferenças entre aquela altura e agora. Se sabem o que estão a fazer, estes atletas podem passar os controlos», atira: «Sei de pessoas que tomam várias drogas ao mesmo tempo. E ainda correm mais devagar que eu.»