Istambul, 25 de maio de 2005. Ao intervalo, aquele Liverpool-Milan – o jogo de cartaz do ano na Europa – ameaçava tornar-se numa das finais mais desequilibradas da história da Liga dos Campeões. A vencer por 3-0, aquele Milan recheado de estrelas estava a 45 minutos de pôr as mãos em mais uma taça, mas um plot twist digno do mais rocambolesco filme de Hollywood recolocou os ingleses na luta. Entre os 54 e os 60 minutos, Gerrard, Smicer e Xabi Alonso concretizavam o primeiro milagre da noite: recuperar de uma desvantagem de três golos frente àquele Milan. Um Milan com Nesta, Jaap Stam, Maldini e Cafu na defesa.
O guião de um jogo de loucos deixou de ser escrito a um ritmo frenético. Ainda que animicamente de rastos, os rossoneri estancaram a gigante hemorragia infligida pela equipa de Rafa Benítez e a dois minutos do final do prolongamento tiveram a chance de redenção na cabeça e no pé direito de Andriy Shevchenko.
Serginho levantou para a área e o avançado ucraniano atirou para fantástica intervenção de Jerzy Dudek. A parada do guarda-redes polaco deixou, no entanto, a bola à mercê de uma segunda tentativa de Shevchenko, ainda mais flagrante do que a anterior. Há lugar para o demérito do avançado ucraniano, mas (muito) mais espaço para o instinto de Dudek.
«O cabeceamento dele foi poderoso. Cabeceou de cima para baixo, ligeiramente para a minha direita. Mergulhei para bloquear o remate e a bola ressaltou a dois metros da baliza. Tudo o que eu consegui fazer foi tentar levantar-me e colocar-me à frente da baliza para reduzir o espaço ao jogador do Milan. Eu estava de joelho. Penso que uma das minhas pernas até estava atrás da linha de golo. As probabilidades estavam contra mim. Naquela fração de segundo, com o jogador do Milan quase em cima de mim, levantei as mãos instintivamente. Foi um impulso. Quase que gritava: ‘Estou aqui! Acerta-me!’», descreveu Dudek na autobiografia que lançou na primavera de 2016 (Jerzy Dudek: a Big Pole in our Goal).
O antigo guarda-redes, agora com 45 anos, elegeu essa defesa como a melhor de uma carreira de 20 anos e centenas de jogos ao mais alto nível. «Pela primeira vez na minha vida eu fiquei orgulhoso de mim. Foi um momento que nunca esquecerei. As pessoas chamam ‘O milagre de Istambul’ a essa final da Liga dos Campeões. Bem, este foi o meu milagre. A defesa da minha carreira. Da minha vida.»
Sem a primeira defesa não haveria segunda; e sem a segunda não haveria desempate da marca dos penáltis. Mas, se o Liverpool tivesse capitulado dos onze metros, talvez o momento de uma vida tivesse caído no esquecimento. Aqui, o polaco voltou a ser protagonista. Nos registos visuais fica a imagem de Dudek a dançar em cima da linha de golo e a movimentar os membros freneticamente de frente para os batedores do Milan. Shevchenko, o homem que falhara um match point minutos antes, voltaria a perder o duelo com o guardião do Liverpool no pontapé decisivo.
Recentemente, Jerzy Dudek admitiu a existência de códigos combinados com Benítez e os adjuntos para o desempate dos onze metros. Ironia do destino: fez tudo ao contrário.
Estava escrito? Shevchenko, que dez anos depois ainda tinha o falhanço na cara de Dudek atravessado na garganta – mais até do que o pontapé da marca de penáltis –, acredita que sim. «Vi aquele momento vezes sem conta e ainda hoje não consigo acreditar como é que a bola não entrou. Dudek também não acredita. Já estive com ele várias vezes nos últimos anos e tenho-lhe perguntado: ‘Como é que conseguiste defender o meu remate?’ Acho que foi o destino», disse o antigo internacional ucraniano ao L’Equipe.
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Artigo original: 1 outubro, 23h47