Wembley, 5 de maio de 1973. «Para onde quer que eu vá, há sempre um adepto do Sunderland que me recorda esse momento. O Jim foi a praga da minha vida.»
Mais de 40 anos depois da final da Taça de Inglaterra de 1973, Peter Lorimer, avançado escocês que fez parte das melhores equipas da história do Leeds entre as décadas de 60 e 70, ainda mastigava aquela final que os Peacocks deixaram escapar para o Sunderland.
No meio de um período difícil, os Black Cats, então mergulhados na segunda divisão de Inglaterra, fizeram um intervalo na crise e até chegar a Wembley desembaraçaram-se de Manchester City e Arsenal pelo caminho.
Mas o Leeds era outra loiça. O Leeds, uma das maiores potências desportivas do país, recheado de internacionais e detentor em título da Taça de Inglaterra.
Atalhando já caminho, fique a saber que o Sunderland venceu por 1-0 com um golo de Ian Porterfield por volta dos 30 minutos. O nome do antigo médio escocês estará para sempre ligado àquela que foi, até aos dias de hoje, a última grande conquista do emblema do norte de Inglaterra (e a única no pós II Grande Guerra), mas talvez fique com um papel secundário por culpa de Jimmy Montgomery.
O antigo guarda-redes tem lugar na história do Sunderland (pelo menos) por duas razões: por ser o jogador com mais jogos realizados pelo clube e por ser apontado como o grande responsável pelo triunfo épico sobre o Leeds a 5 de maio de 1973.
Ao minuto 66, o Sunderland resistia à pressão da equipa orientada por Don Revie quando o guardião de 29 anos ganhou o direito de se tornar numa praga para Peter Lorimer.
Uma fantástica intervenção a um cabeceamento de Trevor Cherry não foi suficiente para afastar o perigo. Montgomery ainda se recompunha quando Lorimer, ainda na pequena área, surgiu sem grande oposição para a segunda vaga. Talvez num ato de fé para tentar evitar o que parecia inevitável, o guarda-redes dos Black Cats atirou-se para a esquerda, para onde a bola foi rematada. As imagens da parada, ainda hoje recordada como um dos momentos icónicos da Taça de Inglaterra, são deliciosas dos poucos ângulos que as equipas de realização nos proporcionavam há cerca de 40 anos, mas há uma que se destaca de todas as outras e que prova por que razão uma grande defesa pode rivalizar com os melhores golos: Montgomery em cima da linha de golo a desviar a bola para a barra com o braço esquerdo.
O momento foi comparado à mítica defesa de Gordon Banks no frente a frente com Pelé nos quartos de final do Campeonato do Mundo de 1970. Ainda hoje há quem coloque os dois momentos ao lado um do outro. «Não acho que tenha sido tão boa quanto a de Gordon Banks, mas tenho-a gravada na memória», recordava Jimmy Montgomery a dias da final da Taça da Liga inglesa de 2014, na qual o Sunderland procurava pôr fim, diante do Manchester City, a 41 anos sem títulos. «Só pensei no significado da defesa quando depois do jogo toda a gente me perguntou sobre ela nas entrevistas. Lembro-me de travar o primeiro remate e sabia que tinha de me levantar e tentar defender o segundo. Treinava isso constantemente nos treinos. De nada adianta fazer uma primeira defesa se deixarmos entrar o segundo remate.»
O resultado de 1-0 permaneceu inalterado e a defesa de Montgomery imortalizou-se a partir daí. Pela primeira vez desde o West Bromwich Albion em 1933, uma equipa de uma divisão secundária vencia a Taça de Inglaterra. Nas imagens do jogo, que pode ser integralmente revisto no Youtube, vê-se Bob Stokoe, treinador do Sunderland, a abraçar em êxtase o herói da partida instantes após o apito final, numa espécie de entrega informal do prémio man of the match. O momento era de todos, mas ele, no fundo, sabia quem tinha sido o maior responsável por ele.
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Artigo original: 22/10, 23h50