O Brasil ainda é pouco mais do que uma equipazinha que joga um futebol bonito e mostra potencial. O próprio país apenas agora começa a mudar, com a eleição de Juscelino Kubitschek. Há dois anos, o novo presidente convencera o seu povo que, além da estabilidade política e prosperidade financeira que chegava consigo, havia que lançar as primeiras pedras de uma nova capital: Brasília.

No Escrete, Pelé e Garrincha ainda não são Pelé e Garrincha. O Rei e o Anjo das Pernas Tortas figuram apenas como meros suplentes de Mazola e Joel. O psicólogo João Carvalhaes, depois de vários testes psicoténicos, não acredita que os dois craques já sejam capazes de aguentar a pressão e dá o seu veto nos primeiros encontros.

O joelho de Pelé, ainda em recuperação, também se queixava, como o avançado reconheceria anos depois na sua autobiografia. 

«Pode ter razão, mas o doutor não sabe o que é mais importante no futebol. Se o joelho de Pelé estiver bem, vai jogar», atirava Feola, disposto a lutar contra tudo e contra todos, e também empurrado pela necessidade criada por um problema físico de Joel. 

E há ainda que convencer o resto do mundo sobre o pequeno pássaro Garrincha.

«Havia dúvidas sobre Garrincha. Fomos a Itália antes do Campeonato do Mundo, e defrontámos a Fiorentina. Garrincha pegou na bola, fintou o central, o líbero e o guarda-redes. Parou em cima da linha. O guarda-redes tentou recuperar em corrida e ele marcou de calcanhar. O chefe de delegação Carlos Nascimento dizia que isso mostrou que não estava preparado para a Copa, porque estava sempre a brincar», contou o defesa Djalma Santos.


Feola não se deixa desmotivar, e o destino coloca no caminho dos jovens, para o seu país ainda algo infantis, o mais exigente dos embates. 

União Soviética, uma força da natureza

Se o 3-0 frente à Áustria no jogo inaugural colocara a Seleção no bom caminho, o nulo perante Inglaterra obrigava o Brasil a ganhar à forte União Soviética, liderada pelo Aranha Negra Lev Iashin no terceiro jogo do seu grupo, o grupo 4. Havia também Nikita Simonyan, que comandara o seu país à conquista da medalha de ouro olímpica dois anos antes, em Melbourne. Os soviéticos tinham conseguido o mesmo que o Brasil: triunfo frente à Áustria, empate com a Inglaterra. Eram uma verdadeira força da natureza, e favoritos claros para ganhar o grupo. Atléticos, fortes, obcecados com a vitória.

«No dia após o jogo, os jogadores da URSS, que estavam hospedados perto de nós, vieram cumprimentar-nos. Estávamos a jantar, e o Garrincha perguntou: quem são estes gigantes? Irmão, são os soviéticos. Jogámos contra eles ontem. Ele respondeu-me: «Meu deus, cada um deles é uma besta!», recordou Djalma Santos.

O Maracanazzo acontecera há oito anos, e as aspirações do primeiro título mundial tinham ficado soterradas na memória coletiva brasileira, que viajara para tão longe, para a fria Suécia. O Brasil reconstruira-se, a sua seleção tinha renascido das cinzas. Estava disposta a prová-lo em Gotemburgo.

Bola para Garrincha!

A precisar de ganhar, Vicente Feola acredita sempre mais do que os outros. «A primeira bola é sempre para Garrincha», diz o técnico a mestre Didi, o cérebro da equipa. E todos fazem o que lhes pede. Zagallo, o extremo esquerdo, limita-se a olhar de longe. «Não tenho vergonha de dizer que nos primeiros minutos fui sempre um espectador.»

Os sul-americanos estão endiabrados pela direita, onde mora seu Mané, mas também Didi e o moleque Pelé. Quatro fintas (sim, sempre para o mesmo lado!) e quatro vezes Boris Kuznetsov fica sem norte. Yuro Voinov vem depois e fica prostrado na relva. Bola ao poste. O Brasil já encanta.

Sessenta segundos depois, Pelé acerta na trave e anuncia o que aí vem: o golo de Vavá, rasteiro, depois de um passe fabuloso de Didi. Primeiro, a dança, a convidar ao desarme, e depois a trivela a isolar o campanheiro.

Respirem fundo: passaram apenas três minutos! Três minutos que mudaram a face do planeta futebol. «Os melhores três minutos que alguma vez se jogaram», escreveu Gabriel Hanot, jornalista e fundador da Taça dos Clubes Campeões Europeus.

Pelé, Garrincha. O futebol nunca mais os esqueceu. Mas o jogo ainda não acabou!



«Na segunda parte, os soviéticos voltaram com força, mas a nossa defesa aguentou-se firme», escreveria Pelé nas suas memórias. O jovem avançado acaba por construir o segundo, de novo de Vavá, aos 77 minutos, acabando com toda a tensão acumulada. «Foi um alívio. Celebrámos tanto que Vavá se magoou e teve de ser assistido fora de campo por vários minutos. Mas tínhamos feito o nosso trabalho. Estávamos nos quartos de final.»

E depois vieram as meias-finais. A final frente à Suécia. O primeiro título mundial. Quatro anos depois, no Chile, o bicampeonato, com muito Garrincha e um Pelé lesionado. O futebol tinha novos reis, e foi nesse dia 15 de junho, na Suécia, que reclamaram o seu trono.

FICHA DE JOGO
Campeonato do Mundo, 1958
Estádio Nya Ullevi, em Gotemburgo (Suécia)
Jogo 4, 3ª jornada
Árbitro: Maurice Guigue (França)
BRASIL - Gilmar; De Sordi, Orlando, Bellini, Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá, Pelé e Zagallo

URSS - Iashin; Voinov, Kesarev, Krizhevski e Kuznetsov; Netto e Tsaryov; Valentin Ivanov; Aleksandr Ivanov, Simonyan, Ilyin e  Tsaryov

Algumas imagens:


Outras anatomias de um jogo:
1953: Inglaterra-Hungria, o jogo que mudou o jogo (e um país)
1967: Celtic-Inter, a primeira ferida mortal infligida ao catenaccio
1970: Itália-Alemanha, o jogo do século
1973: Ajax-Bayern, o futebol nunca foi tão total
1974: RFA-RDA, o dia em que a Guerra Fria chegou ao Grande Círculo
1982: França-Alemanha, o jogão que o crime de Schumacher abafou
1986: Argentina-Alemanha, a vitória de uma nova religião
1994: Milan-Barcelona, o fim do sonho do Dream Team
1994: Leverkusen-Benfica, empate épico sentido como grande vitória

1999: Bayern-Manchester United, o melhor comeback de sempre
2004: Holanda-Rep. Checa, o futebol de ataque é isto mesmo
2004: Sporting-FC Porto, o clássico da camisola rasgada
2005: Milan-Liverpool, o fim do paradigma italiano
2005: Argentina-Espanha, a primeira página da lenda de Messi
2009: Liverpool-Real Madrid, pesadelo blanco aos pés da besta negra
2009: Chelsea-Barcelona, Ovebro vezes 4, Iniesta e o início do super-Barça​

ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus ( @luismateus   no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na   MFTotal .