Romário e Bebeto. Romário e a receção orientada. Romário e a finta-elástico. O melhor Romário que se via então, melhor jogador desse Campeonato do Mundo. A inteligência de Bebeto, acompanhada pelos festejos de patriarca pelo filho nascido dois dias antes, é o complemento perfeito. É o Brasil de capitão-Dunga, e também de Mauro Silva, Zinho e Mazinho num meio-campo bem tonificado e operário.

Do outro lado, a Holanda. Ainda de Frank Rijkaard, mas com o novo cérebro Dennis (the menace) Bergkamp e embalado pela velocidade do jovem Overmars. Rijkaard, Jonk e Wouters são os que vestem o fato de macaco na sala de máquinas laranja. Valckx, ainda central do Sporting, faz dupla com o pontapé-canhão Ronald Koeman. O 4x3x3 desenha-se com Bergkamp no meio, e Van Vossen e Overmars bem abertos nos flancos, para impedir as subidas dos laterais brasileiros.

Carlos Alberto Parreira no banco canarinho, Dick Advocaat no noutro? Teria de ser cauteloso...

Acabemos já com as dúvidas, que duraram 81 minutos

É de livre direto que estes quartos de final de Campeonato do Mundo, no Cotton Bowl de Dallas, são resolvidos. Um remate seco, junto ao poste esquerdo, disferido com a parte de fora do pé, a nove minutos de um prolongamento. Cláudio Ibrahim Vaz Leal! Não conhece? E de Branco, lembra-se? Ex-FC Porto, já de volta ao seu país para jogar no Fluminense, depois de ter andado por Itália.

Uma bola parada, com assinatura de especialista, resolve o melhor jogo de um Escrete cauteloso, tático e aborrecido. A 9 de julho de 1994, os norte-americanos e os adeptos de todo o mundo assistem à melhor face do futuro campeão.

Parreira tem ouro no banco, mas não é garimpeiro. Ronaldo ainda não é O Fenómeno e permanecerá sentado.

Comportas abrem-se na segunda parte

Aos 63, o Brasil vence por 2-0. Aos 53, dez minutos antes, Aldair lança Bebeto sobre a esquerda, o camisola 7 domina e cruza para Romário, que bate de primeira. Golo de classe de um jogador que a tinha para dar e vender.

Branco ganha de cabeça, o Baixinho provoca a hesitação na defesa laranja e Bebeto aproveita. Finta De Goey e atira para as redes. Inventa uma celebração que terá réplicas de cópias, ao dedicar o golo ao filho Mattheus, que hoje joga no Estoril, e nascera dois dias antes. Promessa à mulher Denise cumprida.

Mazinho, Bebeto e Romário e um golo para Mattheus.

A peste Bergkamp ainda não está convencida e um minuto depois, recebe a bola de um livre, tira Márcio Santos da frente e bate forte, ultrapassando Taffarel. A Holanda lança-se no ataque e Winter, de cabeça depois de um canto, empata mesmo o encontro. Tinham passado 23 minutos desde o golo de Romário…

O suplente-herói

Não fosse a cabeça perdida de Leonardo e Branco provavelmente nem jogaria. Uma cotovelada inexplicável ao norte-americano Tab Ramos, que sofre uma fratura no crânio, vale-lhe o vermelho e a entrada do antigo jogador do FC Porto no onze.

A nove minutos do fim, é o lateral que cava a falta que irá bater de seguida. Uma bomba rasteira, que tem a cumplicidade de Romário, que se estica para desviar-se da trajetória, e que ainda acerta no poste antes de entrar. Depois de forçar para recuperar de 2-0 para 2-2 já era de mais para a pobre Holanda.

Trivela de Branco para a história.

O Brasil chega às primeiras meias-finais desde 1970, e também será campeão, vingando-se da derrota de 1974 (2-0) e dando o mote de equilíbrio para o que viria depois, em fases finais. Ganhará quatro anos depois nos penáltis depois de 1-1 nas meias-finais e perderá em 2010, na África do Sul, por 2-1, e no encontro de atribuição do terceiro e quarto lugares em 2014, com um claro 3-0.

O Escrete só uma vez tinha desperdiçado uma liderança por 1-0 num Mundial. Precisamente no Maracanazzo de 1950 frente ao Uruguai. A Holanda abanou-o, mas não fez com que caísse.

O jogo completo:

Estádio Cotton Bowl, em Dallas (Estados Unidos)
Campeonato do Mundo, quartos de final
Holanda-Brasil, 2-3

9 de julho de 1994

BRASIL - Taffarel, Jorginho, Márcio Santos, Aldair e Branco (Cafu, 90); Mauro Silva; Mazinho (Raí, 80), Dunga e Zinho; Bebeto e Romário 
Treinador: Carlos Alberto Parreira

HOLANDA - Ed De Goey; Aron Winter, Stan Valckx, Ronald Koeman e Rob Witschge; Jan Wouters; Wim Jonk e Frank Rijkaard (Ronald de Boer, 64); Marc Overmars, Dennis Bergkamp e Peter Van Vossen (Bryan Roy, 54)
Treinador: Dick Advocaat

Disciplina: cartão amarelo a Winter (40), Dunga (74) e Wouters (89).
Marcadores: 0-1, Romário (53); 0-2, Bebeto (63); 1-2, Bergkamp (64); 2-2, Aron Winter (76); 2-3, Branco (81)

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1953: Inglaterra-Hungria, o jogo que mudou o jogo (e um país)
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1967: Celtic-Inter, a primeira ferida mortal infligida ao catenaccio
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1973: Ajax-Bayern, o futebol nunca foi tão total
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1977: Liverpool-Saint-Étienne, o milagre que cria quatro Taças dos Campeões
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2004: Sporting-FC Porto, o clássico da camisola rasgada
2005: Milan-Liverpool, o fim do paradigma italiano
2005: Argentina-Espanha, a primeira página da lenda de Messi
2009: Liverpool-Real Madrid, pesadelo blanco aos pés da besta negra
2009: Chelsea-Barcelona, Ovebro vezes 4, Iniesta e o início do super-Barça​
2010: Barcelona-Real Madrid, a manita ao melhor do mundo​

ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (@luismateus no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na MFTotal.