O guarda-redes Hugo Laurentino decidiu, aos 35 anos, colocar um ponto final numa carreira que fez dele um dos andebolistas portugueses com mais títulos conquistados de sempre.

Só campeonatos nacionais, foram 10 aqueles que ajudou o FC Porto – sempre o FC Porto – a vencer. Pelo meio fez história também por ter sido um dos três protagonistas de todos os títulos do heptacampeonato que os dragões conquistaram, dominando o andebol nacional entre 2009 e 2016.

Numa conversa de quase duas horas com o Maisfutebol, Tino, como é conhecido no meio do andebol, falou sobre tudo: andebol, contabilidade e até do dia em que salvou uma vida.

Explicou como não conseguiu nem quer deixar de ter vícios de atleta, razão pela qual se levanta de madrugada para estar a treinar às 7h. No Dragão Arena, pois claro.

Mas também se deixou emocionar por uma despedida que ainda está em carne viva. Assumiu que os problemas no joelho direito começaram a surgir em 2009 e que desde 2011 «foi um descalabro.»

«Havia alturas em que não conseguia andar. Arrastei, arrastei, arrastei… até ao momento em que estava a tomar anti-inflamatórios para conseguir dormir. Não era para treinar: era para me tirarem a dor para conseguir dormir. Não dava mais para continuar ‘drogado’ para dormir, treinar e jogar.»

Foi, por isso, pelo final que começou esta conversa. Pelo final, que é também o início de uma nova aventura, como Team Manager da equipa de andebol do FC Porto. E essa foi a outra razão pela qual Laurentino deixou as balizas que defendeu durante mais de 25 anos.

Maisfutebol: Como se prepara o fim de algo que se fez durante quase toda a vida?

Hugo Laurentino: Sinceramente, nós achamos sempre que estamos preparados para acabar a carreira, mas quando chega o dia, percebemos que afinal não estamos. Eu estava parado por lesão há cerca de um ano e a fazer tudo por tudo para voltar a competir ao mais alto-nível. Um dos meus grandes objetivos era poder decidir: ‘este é o meu último jogo, não vou voltar a competir’. Infelizmente isso não aconteceu.

MF: Devido à lesão…

HL: Existe a especulação de que eu deixei de jogar só pela lesão, mas essa não é essa a pura verdade. Não foi por isso que eu deixei de jogar. Ninguém sabia, mas eu já estava a treinar com a equipa B. Já estava 99 por cento decidido que este seria o meu último ano a jogar, só que tinha aquela luta interna de poder voltar e mostrar às pessoas que ainda podia competir ao mais alto nível. Era o objetivo pelo qual eu estava a lutar.

MF: O que fez mudar o plano?

HL: Felizmente – ou infelizmente, só o tempo dirá (risos) – surgiu a oportunidade de ficar com o cargo de Team Manager, porque o anterior foi exercer funções na SAD.

MF: Uma grande mudança.

HL: Sim. Não foi fácil dar uma resposta no dia, e não dei, mas fui para casa pensar. E ao colocar todos os prós e contras nos pratos da balança, achei que apesar de não ser como eu queria, terminar a carreira era a decisão correta. Infelizmente não consegui chegar ao fim do objetivo que tinha traçado, mas foi por um objetivo a longo prazo. Pensei no futuro e no bem-estar, tanto meu como da minha família.

MF: Mas como foram esses meses de batalha. Vir para o pavilhão tentar recuperar diariamente, ver a equipa a jogar…?

HL: Foi muito duro. Foi um ano e pouco após ter sido operado que decidi aceitar esse novo desafio. Eu fiz tudo. Mesmo nas férias, estava com toda a minha família, e levantava-me mais cedo para ir treinar. Treinava duas vezes por dia, mesmo nas férias. Estava realmente focado. E nestes últimos dois meses, treinava três/quatro vezes por dia. Chegava às 10h já com dois treinos. Por isso, foi mesmo muito difícil decidir dizer: ‘Não vou jogar mais. Vou terminar por aqui’.

MF: Até porque não era assim que imaginava terminar…

HL:  Não, não era. Mas o FC Porto preparou-me uma despedida que nunca pensei poder ter. Foi realmente espetacular [a voz começa a ficar embargada], tornou-se um dia inesquecível e nunca me vou esquecer.

[Laurentino faz uma pausa, com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto]

MF: Mas acha que é justificado, que merecia isso por tudo o que deu ao clube, não só como jogador, mas pelo que representa enquanto pessoa?

HL: [limpa a garganta, pede desculpa e prossegue, ainda sem controlar as lágrimas e com a voz embargada durante toda a resposta] É como disse antes: eu gostava de ter terminado a saber que aquele seria o meu último jogo. Não foi possível isso acontecer. Mas não sei se teria sido tão giro e emocionante como foi, se isso tivesse acontecido. E talvez não fosse tão inesquecível como foi com tudo o que me prepararam no jogo com o Kiel. Ao olhar agora para trás, e se me dessem a escolher entre ter vivido o dia que vivi desta forma, nunca o iria trocar para escolher o meu último jogo.

MF: Quando a recuperação começou a complicar-se deu uma entrevista na qual assumia que não estava preparado psicologicamente para aquela lesão. Quanto tempo demorou a aceitá-la?

HL: Foi muito difícil. Para se perceber: a vinda do [Thomas] Bauer aconteceu porque a minha recuperação era para ter demorado dois meses. Nesse período íamos jogar com o Benfica, e como já tínhamos perdido com o Sporting, não podíamos voltar a perder, sob pena de ficarmos para trás na corrida pelo título. E era preciso alguém para ajudar o Quintana, com mais experiência do que o Chico [Francisco Oliveira, de 17 anos].

MF: Era uma contratação temporária.

HL: Sim, era só para vir fazer aqueles jogos até dezembro. E até hoje continua cá. Teve de continuar. E eu também tive de me adaptar. A verdade é que quando dei aquela entrevista, ainda não sabia se ia conseguir recuperar alguma coisa. Até há uma imagem em que me filmam de costas e vê-se perfeitamente que eu nem conseguia descer as escadas. Tentei descer, para disfarçar, mas não conseguia.

MF: Foi um período mais delicado…

HL: Sim, porque estava a ser muito difícil ver uma pequena melhoria. É difícil tu não conseguires descer escadas. É algo que dás como adquirido: chegas ali e desces. Nem pensas como é que desces ou sobes. E no momento em que não sabes descer escadas, começas a ponderar muita coisa. 

MF: Sentia que apesar da ambição de voltar, isso podia não voltar a acontecer?

HL: Eu estava a fazer a recuperação para voltar a jogar. Mas já não sabia se estava a fazer a recuperação de atleta ou uma recuperação para a vida. Não sabia quanto tempo iria durar. E acredito que também não fosse muito saudável para o FC Porto ter um atleta com o qual não sabe se pode contar. O meu objetivo era voltar a jogar, mas eu tive de começar por reaprender a andar. Depois a descer escadas, o que demorou muito, muito tempo. E caminhar, ir às compras… Quando consegui fazer isso, começámos a pensar no Hugo Laurentino como atleta. Mas a primeira preocupação foi recuperar o Hugo Laurentino como pessoa normal. E felizmente, estou apto para a minha vida.

MF: Esse arrastar da indecisão de saber se dava para voltar ou não, também tornou mais difícil a situação?

HL: Eu sei a lesão que tenho e como está o meu joelho. E também sabia que estava a recuperar muito bem, mas não sabia como iria reagir se voltasse a jogar. Podia acontecer eu regressar aos treinos e ao fim de 15 dias o meu joelho voltar a inchar e eu ter de para mais duas ou três semanas. O meu joelho é como uma bomba-relógio: eu não sei se ele ia durar uma semana, 15 dias, um ano ou dois. E por não saber isso é que já estava 99 por cento decidido a parar. Só que havia sempre aquele um por cento e o bichinho de voltar para dar mais um bocadinho. Até que apareceu esta oportunidade. Eu ponderei muito e aceitei.

MF: E assunto encerrado.

HL: Sim. Voltando a falar do dia da homenagem no jogo com o Kiel. Esse foi o dia em que consegui enterrar o assunto de não voltar a jogar. Nós dormimos sempre com a pulseira que nos controla o sono. E a noite a seguir ao jogo foi aquela em que tive a melhor noite de sono dos últimos dois, três meses. Por incrível que pareça. É como se tivesse sido o fechar de um ciclo. O ponto final em qualquer expectativa que eu ainda pudesse ter de voltar a jogar. E o início de outra vida.

MF: Definitivamente fora do campo?

HL: Sim. Já me disseram que agora posso jogar nos vintages, e eu disse que não. Eu não vou jogar mais andebol. Acabei a minha vida profissional como atleta de andebol. Claro que se acontecer alguma coisa ao Quintana e ao Bauer, não vou dizer que não. Mas está mesmo fechado o ciclo do Hugo Laurentino como atleta.

MF: E acaba realizado?

HL: Sim, acabei realizado. Juntamente com os meus colegas, sobretudo o [Ricardo] Moreira e o Gilberto [Duarte], consegui fazer história. Fomos os únicos heptacampeões, não só do FC Porto, mas do andebol português; consegui estar presente na dobradinha [na época passada] que nunca tinha acontecido na história do FC Porto; e estive, não como atleta, mas ainda como capitão, numa final-four da Taça EHF. E aí, posso não ter tido uma influência direta como jogador, mas tive no balneário e em toda a gente. Acho que fui muito importante nesse ponto.

MF: Até porque a lesão nunca o afastou da equipa.

HL: Nunca. A partir do momento em que comecei a conseguir descer escadas e caminhar mais normalmente, acompanhei a equipa para todo o lado. Fazia questão de estar em todos os treinos: eu fazia ginásio de manhã com a equipa, com o meu plano específico; e à tarde estava aqui no treino no pavilhão. Sentia que precisava de estar próximo da equipa. E era engraçado: quando eu falava nas reuniões de equipa, o Daymaro [Salina, que herdou a braçadeira], nunca falava. Dizia que não tinha nada a acrescentar [risos]. Que só era capitão quando eu não estava.

MF: Além do momento especial da despedida, está prestes a ser pai pela primeira vez, iniciou este novo ciclo profissional. Tudo isso ajuda a abafar a dor por ter deixado de jogar?

HL: Sim. Não faz esquecer, mas espero poder passar mais tempo com a família, uma vez que deixei de jogar. Mas pelos dois meses que levo neste cargo, já vi que é impossível [risos]. É chegar a casa e estar a trabalhar para o andebol; é tentar ter o domingo para desligar do andebol e sai tudo ao contrário… passas a manhã a tratar de coisas do andebol, à tarde tratas de coisas do andebol. Está sempre a acontecer algo inesperado. É diferente. Eu agora estou a apanhar o outro lado dos jogadores, que eu não me apercebia enquanto colega.

MF: Como ficam as relações com os antigos colegas de balneário com essa mudança?

HL: A verdade é que a relação com eles não é a mesma que era como atleta. Tenho de me distanciar um bocado e sei que é muito difícil. Sobretudo com os jogadores mais velhos - como o Quintana e o Daymaro, com quem jogo há dez anos. É muito difícil deixar de ter aquela relação de proximidade, mas também acho que eles compreendem. Mais os mais velhos do que os mais novos. É um novo desafio para todos.

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