David Elleray esteve em Portugal para as Football Talks, organizadas pela Federação Portuguesa de Futebol. O diretor técnico do International Board (IFAB) explicou a utilização do vídeo-árbitro (VAR-Vídeo Assistant Referee), que será «bastante provável» já no Mundial 2018.

O antigo juiz inglês sublinhou que o VAR será utilizado em apenas três categorias de lances: golos, penáltis e cartões vermelhos diretos. Mais um subnível, que é o engano na identidade de um jogador que recebe um cartão. Jogadas de fora de jogo, portanto, só em caso de golo (explicação mais abaixo - pode também ver o vídeo-árbitro em funcionamento quase no final da entrevista). 

A ideia é delinear fronteiras, não estar a rever todas as situações que acontecem, porque o futebol «não pode ser um jogo de pára-arranca» como são outras modalidades. Aos críticos que afirmam que o vídeo-árbitro vai quebrar o jogo, o inglês recordou o Brasil-Peru (vídeo seguinte), «em que o árbitro validou o golo ao fim de cinco minutos e, se tivesse apoio do vídeo-árbitro tinha resolvido a situação em 45 segundos». 

O Maisfutebol e outros dois órgãos de comunicação (Diário de Notícias e Record) entrevistaram em conjunto David Elleray, que admitiu uma maior abertura do International Board, ao ponto de se testarem algumas «potenciais mudanças radicais» nas Leis do Jogo.

Eis a entrevista na íntegra:

P- Gostava de ter tido o apoio do vídeo-árbitro durante a sua carreira?

DE - Sim, e creio que muitos árbitros veriam com bons olhos o vídeo-árbitro porque quando um juiz olha para a carreira que teve, vê uma série de erros que gostava de ter corrigido. Os meus maiores erros podiam ter sido corrigidos pelo vídeo-árbitro. Dá a possibilidade aos árbitros de estar a salvo de falhas que mudam o resultado dos jogos.

Aquele famoso penálti na final da Taça de Inglaterra…(1993/94, segundo penálti do jogo Manchester Utd-Chelsea, 4-0)

É interessante porque, depois desse jogo, alguns acharam que era penálti e outros que não. No nosso protocolo, essa decisão manter-se-ia porque não seria vista como um erro claro. Não queremos tirar o debate do futebol, queremos é (corrigir) o lance de Thierry Henry (vs Irlanda) e o de Maradona (Mão de Deus), ou a eliminação do Brasil da Copa América. É para esse tipo de situações que servirá o sistema.

Mesmo com vídeo, a decisão continuará a ser baseada na opinião de alguém…

Temos de aceitar que muitas decisões não são preto e branco. Não podemos mudar isso e ninguém disse que o vídeo-árbitro será perfeito. Ele existirá para mudar o erro evidente, aquele que toda a gente vê. O que dizemos sobre o erro claro é aquele em que, todos nós aqui, nesta sala, olhamos e dizemos, “não, isso não é penálti”. Se começarmos a debater o penálti, é porque não é uma falha evidente. Não queremos que o jogo seja interrompido 10 ou 15 vezes para um debate, porque ao fim do debate as pessoas vão discordar na mesma.

A decisão final será sempre do árbitro, é um peso extra nos ombros?

O vídeo-árbitro será uma pessoa experiente. E se ele me disser, “David, enganaste-te rotundamente naquele lance”, eu gostaria de ter a ocasião de corrigir algo que estava tremendamente mal. Acho que não aumenta a pressão, pelo contrário, retira-a, porque sabe-se que pode continuar a tomar decisões e, se houver algo de errado, ou que não se pode ver, há uma hipótese de revisão.

Um dos vídeos que mostrou era de um lance em que há um penálti numa área, a jogada prossegue e há golo na outra. O penálti não foi muito claro, portanto haveria um grande ponto de interrogação sobre se o árbitro devia marcar falta ou não. Isso vai ser debatido depois de um golo ter sido marcado...

Mostrei o vídeo não para dizer que era penálti, mas para sublinhar que temos de estar conscientes de que haverá alturas em que algo acontece numa área e um golo é marcado na outra. E depois voltamos atrás! Esse é o desafio!

Acho que em qualquer sistema, se olharmos para as partes negativas, nunca se faz nada. O que aconteceu é que o futebol debateu o replay durante anos. Todas as outras modalidades usam-no, exceto o futebol. Tivemos pessoas completamente contra e outras completamente a favor. O que aconteceu foi que o IFAB disse à FIFA: “Oiçam, isto está a ser discutido há tanto tempo que temos de encontrar uma resposta.” E a única maneira de isso acontecer é testando. Pode ser que no final digamos não, que o futebol está bem como está.

Considera que isso ainda é possível? Dizer não ao vídeo-árbitro?

Diria que, no ponto em que estamos, os benefícios são claramente maiores do que as dificuldades. O desafio é gerir as expectativas das pessoas e isso terá de ser muito bem trabalhado convosco [imprensa] também. Temos de dizer que isto não vai corrigir todas as decisões do futebol, nem vai retirar o debate do futebol. Existirá para terminar com injustiças evidentes.

Acha, portanto, que a comunicação sobre o vídeo-árbitro e a educação dos adeptos terá importância igual.

Temos de explicar aos adeptos. Como disse lá dentro [no auditório], é marcado um golo na sequência de um pontapé de canto que devia ter sido um pontapé de baliza. Eles perguntam, “porque é não se mudou a decisão”? Bom, poder-se-ia, mas o que é que se vai fazer? Vamos esperar para ver se o canto dá golo, depois verificar se devia ter sido canto e dar um pontapé de baliza? Haveria um motim no estádio! Se for assim, vamos ter de avaliar cada pontapé de canto que existir no jogo. E quando se começa a analisar cantos, começa-se a analisar um lançamento lateral e, depois, os livres. Portanto, as pessoas têm de aceitar que isto não é perfeito e temos de traçar fronteiras sobre o que é revisto ou não. No geral, o que achamos é que, ao contrário do rugby, do ténis, do cricket ou futebol americano, o futebol quase não pára. O público já fica irritado se um lesionado demorar mais de um minuto a sair. O futebol não quer tornar-se num jogo de pára-arranca. Temos de ter um equilíbrio. O interessante é que todos os países envolvidos na experiência aceitam as fronteiras que delineámos e estão felizes com elas.

Não se corre o risco de se criar um futebol de ricos, que pode suportar o gasto do vídeo-árbitro, como as ligas profissionais, e outro pobre, nas ligas amadoras, que é tradicional?

Sim, é verdade, mas isso também é verdade com a tecnologia da linha de golo, que já existe, com os árbitros adicionais, que já existem. O importante é que isto não é uma imposição. Se Portugal quiser isto na sua Liga, cabe a Portugal decidir. Não prejudica mais ninguém. Porque temos de aceitar que há aspetos do futebol que são diferentes. Metade dos campos de futebol no mundo não têm redes nas balizas, porque não há dinheiro para elas. Temos de aceitar que há níveis diferentes. O que perguntamos é: “Pode o futebol ser mais justo com o vídeo-árbitro usado numa série de ocasiões?” Queremos mínima interferência e máximo benefício com o vídeo-árbitro.

David Elleray na sua intervenção nas Football Talks (foto FPF)

Na sua intervenção, referiu o fora de jogo, que será apenas revisto caso haja golo. Não receia que os assistentes tenham mais não-decisões, ou seja, deixar a bandeirola em baixo porque pode ser revisto em caso de golo?

Temos de educá-los de que têm de continuar a decidir. Se eu ficar com a bandeirola em baixo, porque pode ser revisto pelo vídeo-árbitro, numa jogada em que alguém se isole e o lance termina num canto, o meu erro não é revisto. Mas pode haver um golo desse canto!

Portanto, a única altura em que vamos dizer para eles terem mais cuidado é quando um jogador está prestes a marcar um golo. Imagine-se um avançado a cabecear e não se tem a certeza se vai dar golo ou não, aí poder-se-á esperar. Porque se der em golo, pode ser revisto. O que dizemos é que arbitrem o jogo como se não houvesse vídeo-árbitro. Não queremos mudar o modo como eles operam. Não queremos que corram riscos só porque pode ser revisto.

Mas quando um avançado se isolar a 30 metros da baliza e ficar um para um com o guarda-redes, há uma clara oportunidade de golo…

Nesse momento não se sabe se é uma oportunidade clara ou não. Se será revisto? Não.

Portanto, há um modo diferente de arbitrar?

Não, o que dizemos é que arbitrem todas as situações normalmente. A única diferença é, caso um jogador esteja para marcar, aí, os assistentes poderão demorar mais na decisão. Se correr o risco e não der um fora de jogo que, na verdade, era, o avançado isola-se e não marca, a bola vai para canto quando não devia existir um canto.

Uns adeptos dirão que aquilo [isolado a 30 metros]  era praticamente um golo…

Eles já dizem isso, de qualquer modo.

Mas agora têm outros meios para ter a certeza.

A dificuldade é, se eu aceitar esse argumento, que é válido, traz-se esse argumento a outras situações e vamos acabar por rever muitas situações. Nos EUA, tivemos 10 jogos-teste, analisaram 12 casos e só reviram três. É esse nível de que estamos a falar, em erros claros!

Na sua opinião, qual foi o momento-chave que levou o IFAB e a FIFA a admitir que este era um problema que tinha de ser encarado? Isto foi por causa da televisão, da internet?

Por duas coisas, uma é a mudança no IFAB, que se tornou independente. Eu tornei-me diretor técnico e o IFAB deixou de ser um subcomité dirigido pelo sr. Blatter [antigo presidente da FIFA]. Nessa altura, achávamos que o IFAB era demasiado conservador e dizia “não, não, não” até dizer sim. Depois, fomos persuadidos pela tecnologia. Se toda a gente num estádio conseguia ver o lance e a única pessoa que tinha de o ver não o conseguia, isso não está bem. Dissemos que, agora, há argumentos muito fortes para testarmos isto. Tivemos uma mudança psicológica no IFAB e depois a entrada de Gianni Infantino na FIFA. Praticamente, a primeira decisão que ele teve como presidente foi apoiar a proposta de teste do vídeo-árbitro do IFAB. Falámos disto demasiado tempo, podemos falar mais cem anos, mas não saberemos se resulta se não experimentarmos.

Falou do IFAB ser conservador. Este mês, permitiram a opção de expulsões temporárias a nível das camadas jovens. Isto foi uma das famosas ideias de Marco van Basten. Estão abertos a mais algumas?

Com todo o respeito, não foram ideias dele, porque nós já a tínhamos proposto há uns seis ou nove meses. Propusemos uma série de ideias e o Marco apoiou-as. Estamos muito abertos a novas ideias. O IFAB vai lançar uma nova estratégia chamada Jogar Limpo (Play-Fair), no âmbito do fair-play da FIFA, na qual vamos analisar uma série de possíveis mudanças radicais.

Isso inclui eliminar o fora de jogo?

Não, não inclui a eliminação do fora de jogo. Mas incluiu os penáltis, não como Marco van Basten sugeriu, mas sim a ordem de marcação. Há muitas provas académicas de que quem começa a marcar primeiro vence. Portanto, o que vamos testar é: tu marcas o primeiro, eu o segundo, eu o terceiro e tu o quarto. Tipo o tie-break no ténis. Há muitas áreas deste género que o IFAB vai analisar e debater com pessoas como o Marco e outras. Temos de olhar para a mudança. O Marco sugeriu os shoot-outs como os americanos. Falámos com eles, porque os tiveram há 20 anos. E eles disseram que não, mas que apoiavam a ideia de a,b,b,a nos penáltis. O importante é o IFAB discutir as coisas com a FIFA. É uma mudança em comparação com o anterior conservadorismo “não, não, não”.

Na FIFA sempre se opuseram a mostrar as imagens nos estádios. Isto pode mudar?

Talvez. Nalguns países isso pode acontecer. O desafio é que muitas das decisões não são claras. Mostrar um incidente irá ajudar o ambiente no estádio, a segurança? Esse é o desafio do momento ao qual o futebol ainda não respondeu. O árbitro dá um penálti, é revisto, vê-se e os adeptos da casa claramente apoiam a decisão. Os visitantes dizem claramente que não é penálti. Ao mostrar-se isso, tornamos o ambiente no estádio e dentro de campo melhor ou pior? Acho que não sabemos a resposta. Alguns dirão que é melhor levar esse debate para o bar ou restaurante, depois do jogo, do que tê-lo no estádio. Por exemplo, num caso claro, como o de Zidane na final do Mundial (cabeçada em Materazzi), isso acalmaria toda a gente. Mas se não for tão claro, alguns espectadores podem achar que é, através dos seus óculos.

E que tal explicar a decisão através de áudio?

Iremos analisar isso. Esperamos que o vídeo-árbitro comunique com quem está a transmitir o jogo e dizer que o árbitro mudou a decisão porque o replay assim indicou. Quem transmite o jogo pode assim comunicar essa ideia. O que queremos é que as imagens que o árbitro usou sejam mostradas no final. Queremos transparência e por isso queremos que eles mostrem o árbitro a ir para o sítio de revisão.

O vídeo-árbitro terá acesso a todas as imagens do operador que transmite a partida?

Sim, porque assim pode analisar como quiser, pode mudar a velocidade das imagens, inclusive. Se assim não fosse, o realizador teria um poder enorme! Queremos acesso independente às imagens, mas igualmente que não tenham outras às quais o realizador não tem acesso, porque queremos que as pessoas vejam o que os árbitros viram [no replay].

Apesar de toda a tecnologia, continuaremos dependentes do fator humano...

Sim, temos de aceitar que todos no futebol se baseiam em decisões humanas. O futebol no momento não aceita erros de árbitros. Aceita de jogadores, treinadores, não aceita de árbitros. O vídeo-árbitro vai mostrar como é difícil decidir.