Já não foi surpresa para ninguém, mas é um marco a assinalar um facto consumado. Anunciada neste sábado, a decisão do International Board, abrindo a porta à tecnologia vídeo para decisões de arbitragem no futebol vai dar início a um novo ciclo. Uma revolução? Ainda é cedo para tirar conclusões. Mas não será cedo para abordar algumas questões práticas que o tema fatalmente levantará.

O ex-árbitro Pedro Henriques, comentador de arbitragem da TVI, autor do livro «Árbitro de Bancada» e há muito defensor desta medida, prestou-se ao desafio e aceitou responder a algumas dessas dúvidas.

Face aos prazos e à rejeição – para já – dos pedidos de análise (os challenge, como no ténis) por parte das equipas, o International Board foi conservador na introdução da medida?

O vídeoárbitro com acesso à repetição dos lances de jogo só entrará em vigor em 2017/18 e será alvo de uma série de testes, que numa primeira fase experimental serão fora do quadro competitivo. Embora o figurino ainda esteja por definir, foi anunciado que haverá um árbitro com recurso às imagens, que pode ser consultado pelo juiz de campo ou intervir por sua iniciativa, alertando-o para algo que lhe passou despercebido. As equipas não poderão solicitar a sua intervenção. Por outro lado, só quatro situações de jogo – validação de golos, marcação de grandes penalidades, sanções disciplinares e erros na identificação de jogadores – estão abrangidas por estes primeiros ensaios. Teria sido possível ir mais longe e andar mais depressa? Pedro Henriques, que até defende uma aplicação mais ampla das tecnologias, prefere sublinhar a mudança: «Olhando para a intransigência com que Collina olhava para estas situações ainda há quatro anos, é uma mudança radical. Para quem não queria nada há apenas quatro anos, esta abertura está muito para lá das minhas expectativas», sublinha.

Pedro Henriques- visão mais radical do que a do International Board

A verdade é que historicamente o International Board sempre foi um organismo muito resistente à mudança, defendendo o princípio de que a simplicidade das regras e universalidade da sua aplicação era a chave para o sucesso global do futebol. Daí que talvez não fosse realista esperar mais do que esta abertura.

Justamente, a diferença de meios necessários para os jogos terem recurso ao vídeo árbitro é o fim da universalidade do futebol?

Um pouco como acontece no ténis, onde só os torneios de topo têm essa possibilidade, parece inevitável que esta decisão marque um fosso mais profundo entre o futebol amador e dos escalões de formação e o de elite. Para Pedro Henriques, a questão existe, mas é pacífica: «Estamos a falar de Mundiais, Europeus, Champions e as principais Ligas nacionais. A separação entre o futebol profissional de topo e o restante é uma realidade. Já a questão das diferenças dos estádios poderem gerar diferentes captações de imagens, não me parece um problema. Nem todos os estádios podem receber uma cobertura televisiva com 19 câmaras, por exemplo. Mas do que se fala aqui é de um número limitado de câmaras – imagino que cinco ou seis – independentes da cobertura televisiva para esse jogo. Todos os estádios das competições profissionais terão de estar homologados para as receberem», refere o ex-árbitro.

Outra questão resulta dessa diferença entre as câmaras da transmissão TV e as câmaras «oficiais» para as tomadas de decisão: quem é o responsável por essas imagens «oficiais»? E serão acessíveis ao público, seja em tempo real, seja à posteriori? Pedro Henriques não tem dúvidas: «Creio que as imagens terão de ser de uma produtora a trabalhar exclusivamente para as entidades oficiais. Questões como a propriedade das estações televisivas e os direitos de transmissão de jogos não podem condicionar a perceção das decisões por parte do público», lembra.

Os problemas de credibilidade institucional da FIFA, envolvendo também o presidente da UEFA, Michel Platini, terão contribuído para o timing desta abertura?

Lembre-se que foi o Mundial 2010 – e em particular o clamor que se seguiu ao célebre golo-fantasma de Lampard no Inglaterra-Alemanha, a tornar irresistível o recurso à tecnologia da linha de golo. Blatter cedeu aí pela primeira vez – contra a opinião de Michel Platini – e a porta ficou entreaberta.

O golo fantasma de Lampard

O descrédito em que a FIFA mergulhou, à luz das últimas investigações, pode ter ajudado a perceber que uma medida altamente popular serviria para virar uma página, coincidindo com a chegada de Infantino à presidência. Pedro Henriques concorda com esta leitura, e lembra: «A guerra tonta de opiniões entre Blatter e Platini, sobre a questão da tecnologia de golo, e a rapidez com que se passou disso para esta abertura faz-me crer que a rejeição da tecnologia resultava mais de posições pessoais do que das estruturas dirigentes. E isto que se passou nos últimos meses, levando à necessidade de acabar com suspeições, veio ajudar muito.»

Infantino- um sinal de mudança

E agora, o que esperar dos próximos passos?

Em Portugal, tanto a FPF como a Liga de Clubes aplaudiram a decisão do International Board. Sabe-se que Portugal está entre as 12 associações que já manifestaram à FIFA a sua disponibilidade para acolher os testes nas suas competições – tal como as Federações britânicas, que pretendem aplicar o vídeo-árbitro nas Taças de Inglaterra e da Escócia.

O modelo de funcionamento referido para já na reunião do International Board prevê a possibilidade de o árbitro validar no relvado, através de um tablet, ou dispositivo similar, junto do quarto árbitro, a indicação recebida pelo vídeo, o que, na opinião de Pedro Henriques obriga a esclarecimentos adicionais: «Os bancos serão proibidos de se dirigir ao quarto árbitro? Uma decisão dessas não pode ser tomada sob pressão» lembra. E, depois, resta aquela que e a questão essencial no seu entender: «Quem faz de vídeo árbitro? Um árbitro no ativo, um árbitro retirado? É legítimo um árbitro de categoria inferior interferir num jogo dirigido por um árbitro de categoria superior? Para mim, só poderão ser árbitros no ativo do mesmo nível, ou então árbitros retirados, de categorias superiores. Mas isso levanta a questão do número de efetivos disponíveis. Em Portugal, nesta altura, seriam insuficientes para as competições profissionais», lembra.

Que impacto terão as restantes alterações decididas pelo International Board, algumas delas para entrarem em vigor já a 1 de junho?

A possibilidade de uma quarta substituição nos jogos com prolongamento será testada em breve em competições ainda por definir. A ideia é evitar situações em que jogadores visivelmente diminuídos se arrastam em campo durante a meia hora extra. Pedro Henriques mostra-se favorável e vai mais longe: «Concordo mas parece-me tímido. Eu sei que os treinadores me vão cair em cima por dizer uma coisa revolucionária, mas eu sou a favor de substituições volantes, como no râguebi e em outras modalidades. E também sou a favor de assistência médica em campo com o jogo a decorrer, desde que seja fora das áreas. Tudo a favor da fluidez do jogo», resume.

David Elleray e as alterações às leis do jogo

Já a decisão de anular a tripla punição – penálti, expulsão e suspensão para o jogador que, em falta, evita situação flagrante de golo – trocando o cartão vermelho por amarelo, que entrará em vigor já no próximo campeonato da Europa é vista com mais reservas por parte do antigo árbitro português: «Percebo a intenção, mas ponho-me na posição da equipa que viu o seu ataque interrompido em falta e admito que esta alteração beneficie mais quem faz a irregularidade. Se calhar os jogadores ficam mais desinibidos para cometer este tipo de infrações. Parece-me uma medida defensiva, que beneficia quem defende e, para mim, no futebol atual todas as alterações às regras deveriam ser em benefício dos ataques», refere.

O antigo árbitro subscreve também a ideia de que já vai sendo tempo de o futebol contemplar a necessidade de controlar o tempo de jogo de outra forma, recorrendo ao tempo útil, como acontece em quase todas as modalidades. «No futsal, por exemplo, se a buzina soa no momento em que um jogador vai rematar, ninguém estranha, ninguém discute. O tempo está acessível a todo o público e a sua gestão é sempre igual. Os descontos são sempre uma aproximação e se um árbitro de futebol acaba o jogo no momento em que uma equipa vai cobrar um canto, é um escândalo», lembra, acrescentando que, em sua opinião, o controlo do tempo útil poderia ser um bom instrumento para evitar o antijogo: «Simular lesões para gastar tempo deixaria de fazer sentido. Claro que poderá haver sempre a tentação de quebrar o ritmo ao adversário, mas acredito que a própria atitude dos jogadores mudaria com este sistema. E tecnologicamente não seria algo de muito complicado», sublinha.

A mão de Ronny em Alvalade

Em jeito de balanço, Pedro Henriques acredita que o futebol vai ficar melhor depois deste sábado. E dá um exemplo concreto para ilustrar a sua convicção: «Quando se fala destas questões, lembro-me sempre do exemplo do João Ferreira, no Sporting-Paços decidido com o golo do Ronny, marcado com a mão. É o mais dramático que me lembro dos últimos anos, porque passado um minuto já todo o estádio sabia da irregularidade, os bancos também e a informação chegou aos jogadores. As únicas pessoas que permaneceram sem certezas foram as da equipa de arbitragem e lances desses marcam a carreira de um árbitro para sempre. Com vídeo-árbitro, continuará a haver erros, mas esses, pelo menos, serão evitados», conclui.