Tinha as feições rudes dos homens do campo e falava com aquele sotaque, tão próximo do português, que é um cartão de apresentação. Na Corunha dizem que é património regional: um galego por inteiro, trabalhador e desconfiado, a quem assentava bem a alcunha de raposa.

Natural de Baiuca, um lugarejo que com o tempo acabou por ser absorvido pela vila de Arteixo, a quinze quilómetros da Corunha, era o mais novo de nove irmãos. Baiuca é uma palavra que em galego significa taberna ou tasca, de resto. O que mostra as raízes humildes de Arsenio.

Filho de lavradores, desde muito cedo teve de começar a trabalhar na lavoura: numa família tão grande, todas as mãos eram poucas para ajudar a trazer algum dinheiro para casa.

«A minha infância foi um tempo muito difícil», confessou mais tarde.

«Aproveitávamos todos os bocadinhos para jogar futebol. De vez em quando aparecia uma bola de borracha, a maioria dos dias eram bolas de trapos. Jogávamos descalços, na estrada. Mas nem tudo era mau: como na altura não tinha asfalto, não nos magoávamos ao cair.»

A bola era, por essa altura, a única brincadeira para Arsenio Iglesias. Por isso cresceu a gostar cada vez mais de jogar e a jogar cada vez melhor. Aos 14 anos, juntou-se ao Penouqueira, um clube de amigos, fundado em 1934, que disputava apenas alguns amigáveis por ano.

Não estava sequer regularizado e acabou por ser Arsenio Iglesias, em 1954, quando já jogava no Corunha, a registar o clube juntamente com mais uns amigos, tornando o Penouqueira da infância deles por fim um clube oficial e inscrito nos campeonatos regionais.

A juventude a estudar e a trabalhar em dois sítios diferentes... mais o futebol, claro

Antes disso, quando ainda era adolescente, encantou-se com a seleção espanhola que foi jogar na inauguração do Riazor e ficou concentrada no complexo termal de Baños de Arteixo.

«Naqueles anos os rapazes tinham de ajudar nos trabalhos do campo, mas procurei fugir sempre que possível e arranjar lugar para assistir aos treinos. Para um rapaz como eu, que só vivia para o futebol, ter os melhores jogadores espanhóis uma semana em Arteixo foi algo mágico.» 

Uns meses depois, quando completou 16 anos, Arsenio Iglesias inscreveu-se na Escola Industrial da Corunha e começou a jogar no modesto Ciudad Jardín.

Verdadeiramente foi nessa altura que começou a carreira dele.

Arsenio Iglesias dividia-se por esses dias em três: o curso de artesão, um trabalho de montagem de carris na linha Corunha-Carballo e um part-time de como guarda de linha numa estação. Mesmo assim ainda arranjava tempo para treinar e jogar nos regionais da Galiza.

Era um esforço quase desumano para não abandonar o sonho, mas que acabou por compensar. A velocidade e a força de Arsenio Iglesias, somadas a um grande sentido de baliza, começavam a chamar a atenção e a fazer do jovem adolescente um avançado cada vez mais conhecido.

No ano seguinte mudou-se, por isso, para o Bergantiños, onde também só ficou uma época. Depois assinou pelo Fabril e meia-dúzia de jogos foi suficiente para convencer o Corunha.

Começou pela equipa de reservas, que disputava a Segunda Divisão, e aos 21 anos foi chamado à equipa principal. A estreia aconteceu no mítico Campo Les Corts, o antecessor do Camp Nou, numa derrota por 6-1 frente ao Barcelona. Apesar da goleada, Arsenio Iglesias fez o golo do Corunha e estreou-se desta forma como um golo ao lendário guarda-redes Ramallets.

O curso e o trabalho nos caminhos-de-ferro foram abandonados, o jovem assinou contrato profissional e dedicou-se apenas ao futebol. Durante a carreira de jogador brilhou no Corunha, foi levado por Helenio Herrera para o Sevilha e por Alejandro Scopelli para o Granada.

Quando o mundo desabou no penálti falhado de Djukic aos 92 minutos

Terminou a carreira com 36 anos, regressou à Corunha que amava e foi chamado pelo Deportivo para treinar a equipa B. Durante trinta anos andou por várias equipas, mas tornou-se figura apenas numa: precisamente naquela que lhe fazia bater mais forte o coração.

O Corunha, claro.

Passou três vezes pelo banco e tornou-se a maior figura da história centenária do clube, com um total de 714 jogos oficiais pela equipa principal. Pelo caminho viveu alguns dos maiores feitos do Corunha e construiu aquele que ficou para a história como Superdepor.

Tudo começou em 1988, quando o Corunha levava duas décadas entre a Segunda, a Segunda B e a Terceira divisões. Arsenio Iglesias chegou para evitar nova descida de divisão, o que acabou por conseguir com um golo aos 92 minutos do último jogo, frente ao Racing Santander.

Na época seguinte falha a subida no play-off com o Tenerife e em 1990 faz a festa, conseguindo a promoção à Liga Espanhola quase vinte anos depois da última vez. Curiosamente, Arsenio Iglesias tinha sido também o treinador nessa última subida no início dos anos 70.

Após o último jogo, anunciou o fim da carreira de treinador, mas foi engano. A reforma não durou nem um ano. Com oito jogos para o fim da época, foi chamado para salvar o Corunha da descida de divisão, o que viria a conseguir num louco play-off de manutenção.

Ficou na memória, aliás, o discurso que fez no balneário antes do jogo decisivo com o Betis.

«Vamos, meninos. Sabe Deus quantas pessoas há neste momento na Corunha a rezar por nós. As vossas mães estão a rezar por nós ali na capela de Ribeira. Pelas vossas mães e pela nossa gente que ama o Deportivo, nós temos de fazer isso», atirou.

O empate a zero manteve a equipa na Liga Espanhola e criou as bases para os anos dourados do Superdepor. Na época seguinte chegaram Bebeto e Mauro Silva, que se juntaram ao mítico capitão Fran, para formar uma equipa que chegou a ser líder durante várias semanas e acabou no terceiro lugar, garantindo a classificação inédita para as provas europeias.

Até que em 1994 aconteceu história. Verdadeiramente história. Um dos episódios mais históricos do futebol espanhol: daqueles que quem viveu não esquece seguramente.

O Deportivo, reforçado com Donato, foi líder desde a 14ª jornada e entrou na última ronda em primeiro lugar. A Corunha engalanou-se para a festa: pela primeira vez iria haver um campeão galego em Espanha. O Riazor estava cheio de euforia, para a receção ao Valencia, e rebentou de alegria quando foi marcado um penálti nos descontos do jogo.

Donato, o habitual marcador das grandes penalidades, já não estava em campo e Bebeto não quis assumir tamanha responsabilidade. Djukic deu um passo em frente: central sérvio, nervos de ferro e homem da casa.

Só que falhou.

Ou melhor, González defendeu. As imagens mostram Bebeto a perder a força nas pernas. Djukic mete as mãos na cabeça. O Depor não saiu do nulo e o Barcelona foi campeão.

Um erro chamado Real Madrid e o fim da carreira após os insultos de Raul

Arsenio Iglesias, o menino de Baiuca, galego da cabeça aos pés, apaixonado pelo clube e pela cidade, surgiu na conferência de imprensa para dar a cara num momento tão difícil.

«Há muito a dizer e pouco a contar. Empatámos, não pudemos ser campeões. Estava escrito assim. Não deu, o que vamos fazer? É triste e é duro. Era algo que podíamos ter conseguido uma vez na vida e não foi possível.»

A sala de imprensa irrompeu num aplauso e uns dias depois uma idosa vestida de negro, em luto pelo marido, foi ao Riazor pedir-lhe que não deixasse o clube.

Arsenio ficou e no ano seguinte voltou a terminar em segundo, mas somou-lhe a Taça do Rei. Foi a primeira grande conquista do Corunha e do futebol galego.

Depois o Real Madrid chamou e ele foi.

Chegou a meio da época, para substitui Jorge Valdano, com a equipa a 16 pontos do líder At. Madrid. Correu tudo mal e Arsenio arrependeu-se para sempre de ter ido.

«Fui contra a minha vontade. Foi difícil, custou-me muito dizer que sim. Mas ia renunciar ao Real Madrid? É muito complicado. Quando cheguei lá, aquilo era outro mundo. Por isso a minha passagem foi muito curta e quando tudo acabou voltei para casa.»

O treinador foi engolido por um balneário de estrelas. A aventura terminou aliás com uma discussão com Raul, que se revoltou ao ser substituído no último jogo. O adjunto Mariano García Remón lançou-se contra o jogador, exigindo-lhe respeito por um homem mais velho, houve empurrões no relvado e insultos à solta.

Arsenio Iglesias deixou o Real Madrid e nunca mais treinou na vida. Voltou para casa, para viver ao lado dos netos, dar caminhadas no passeio marítimo da Corunha, beber copos de vinho com os amigos de infância e aparecer de vez em quando no estádio a ver o seu Deportivo.

Foi homenageado com uma música de uma banda de rock, inaugurou uma estátua no Riazor e deu o nome à rua agora alcatroada onde começara a jogar quando era um menino descalço.

Na semana passada morreu aos 92 anos, esteve em câmara ardente no Riazor e foi sepultado em Arteixo. Onde foi buscar todas as características que o tornaram um homem especial.

Um galego por inteiro, humilde, trabalhador e desconfiado.