A história de um clube também são os adeptos. Dos mais velhos aos de tenra idade, gerações com o tempo. Em Santa Maria da Feira, o centenário do Clube Desportivo Feirense não passa ao lado de quem, outrora, enraizou o clube no dia a dia. Hoje, ficam as memórias de uns. Noutros, cresce a paixão.

Às portas dos 100 anos do Feirense, vive-se. Recorda-se. Respira-se o centenário, um pouco a cada canto.

Na Rua Viana da Porta, na Feira, Artur Lima abre essa porta ao Maisfutebol. Encontramos o sócio número um do Feirense com algumas dificuldades - fruto da idade - mas com apego suficiente ao clube da terra.

«É o nome mais pequeno da terra, é só Artur Lima», apresenta-se, com um dístico fogaceiro ao peito. «Foi quando fiz 50 anos de sócio», justifica.

Lima caminha para 88 anos na certidão e lembra-se bem do passado do clube. «É do meu tempo, o Campo do Moutinho. Então não», atira, falando do segundo campo de jogos da história do Feirense. «Todos os domingos ia ao futebol aqui. Fora não, não havia dinheiro», continua.

De «chauffeur» às memórias paternais

Na Praça República, paredes meias com a Câmara Municipal, o nosso jornal dá com o dia a dia de Manuel Plácido. É uma espécie de mercearia local. «Casa Plácido», pode ler-se em azulejo, à entrada. Local – mais que - centenário, o que o seu clube agora cumpre.

Manuel tem 87 anos e é o sócio número quatro do Feirense. «Nasci em 1930, sou jovem (risos)», solta, para início de conversa. Tamanha ligação aos fogaceiros? Entre um cliente a pedir acendalhas e outro um tubo de bola, explica.

«Comecei a ver o Feirense desde novo, na altura em que nem sequer era da 3.ª Divisão [Nacional]. Jogava com grupos que a gente não sabia de onde eram: Bustos, Mamarrosa…», recorda.

O seu pai, Francisco Plácido, foi um dos jogadores dos primeiros plantéis do Feirense, década de 20. Nessa altura, o Campo da Mata tornou-se o primeiro recinto desportivo do clube, no lugar de Picalhos, freguesia de Sanfins. E foi lá, bem perto, que se desenrascaram balneários improvisados. À boleia familiar.

Manuel Plácido é o sócio número quatro do Feirense

«O campo, na fundação do Feirense, era na mata de Picalhos. E a casa da minha avó foi o primeiro balneário do Feirense, porque o Feirense não tinha balneário. Como o meu pai namorava para a minha mãe, a minha avó permitia que fossem lá lavar-se e mudar de roupa: 1918, 1919… Eu ainda não era nascido, o meu pai contava», descreve Manuel.

Orgulhoso do «prestígio» que 100 anos dão ao Feirense, Plácido é a ponte viva para os primórdios registados pelo seu pai. E por si próprio. Do Campo da Mata a «chauffeur» dos atletas.

«O meu pai também contava: em relação ao Campo da Mata, andavam de noite a roubar madeira para fazer as vedações e as balizas. Era tudo muito primitivo. O Feirense também utilizou o meu automóvel muitas vezes para levar os jogadores, naquela altura havia dificuldades. Eu servia de chauffeur, por volta de 1965. Fui ajudando conforme pude», prossegue.

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Vivência e distância

Artur Lima e Manuel Plácido têm em comum a longevidade na ligação ao Feirense. E também o desapego próximo ao atual Marcolino de Castro, onde deixaram de ir há alguns anos. Lima por chatices de bancada, Plácido por entender que o próprio é «um fenómeno do Entroncamento». Ora explique lá.

«Gosto de fotografia, música clássica, pintar, teatro, ópera. E o futebol, acho que é um desporto repetitivo. Depois de ver centenas de jogos, tenho a sensação que os jogos são semelhantes uns com os outros. Não tenho ido com regularidade», admite Plácido, embora leia os «jornais da terra», dos quais é «assinante». Sabe, por isso, que há um Feirense-Benfica em véspera do centenário. E não duvida. «Em primeiro lugar, o Feirense. Gostava que ganhasse 10-0 ao Benfica. Apesar de ser benfiquista, em primeiro o Feirense, em primeiro lugar está a terra», insiste.

Artur Lima tem em mente alguns «jogos brutais», mas também já não visita o estádio como outrora. Pelo meio, lembra como era antes. «Sou do tempo em que íamos ao campo de futebol, era terra. Chuva. Era o fruto da época», nota, antes de falar da época de estreia do Feirense na 1.ª Divisão, 1962/63.

«O Feirense fez sete pontos, não havia hipótese. Hoje, há», compara.

Lima solta onomatopeias de garra quando recorda intensos duelos do Feirense com clubes da periferia: Lourosa e Arrifanense. Puro bairrismo. «Eram jogos… (suspira) agora, vou ver o quê?», defende. É que os desentendimentos na bancada tiraram-lhe o fulgor de ir ao estádio. «Mas vou vendo pela televisão», acautela. «Tenho um enorme gosto que o Feirense ganhe».

Sinal dos tempos.

Os novos «Civitas»

Da terceira idade à juventude, soltam-se novas vozes a pulso no Marcolino de Castro. Na casa dos vinte, Flávio Correia e Tiago Vieira personificam, entre outros, uma ligação renovada ao Feirense. Fazem parte do grupo «Civitas Fortíssima 1514», de apoio aos fogaceiros.

O nome desse grupo resulta de um povo local que, há quase um milénio, «era considerado o mais forte». «Chamava-se Civitas Fortíssima. E 1514 é a data em que o foral chega à Feira». História patente. Está explicado.

Em 2016, Flávio Correia, em primeiro plano, saúda os jogadores do Feirense pela subida à Liga, conseguida em Chaves

«A ligação ao clube da terra é lógica, devia acontecer em todo o lado. Infelizmente, é cada vez mais raro», acredita Flávio.

Para quem tem 23 anos, as memórias são bem mais vivas que as de Lima ou Plácido. Frescas. «O primeiro jogo que vi do Feirense, ganhámos 5-2 ao Fátima, na época 2002/03, quando subimos à Liga de Honra [atual II Liga]. E as subidas à primeira não se esquecem: o jogo com o Gil Vicente, há dois anos. Estávamos a perder 2-1, acabámos a ganhar 3-2 e ficou a bastar o empate para a subida», continua.

Tiago, barba robusta e chapéu a diferenciar, nota mais. «As memórias mais interessantes são quando eu ia para o antigo campo de treinos, em Picalhos. Era o campo de futebol de juniores, ia lá com o meu tio e ficava a ver os jogos da formação. Vinha poucas vezes ao estádio ver a equipa sénior», conta, em plena conversa na bancada onde, a cada jogo no Marcolino de Castro, cantam e gritam pela equipa.