15 de maio de 2018. Passava pouco das 17h quando um bando de encapuzados invadiu a academia de Alcochete. O que se passou lá dentro foram dez minutos de terror que chocaram o país e abalaram profundamente o Sporting. Equipa, direção, clube, nada ficou como dantes. Um ano depois o Sporting tem novo presidente, já não tem vários dos jogadores que eram referência do clube, teve dois treinadores diferentes e, em campo, prepara-se para voltar a jogar a final da Taça de Portugal. Mas ainda há muitas contas por acertar depois de Alcochete. O Maisfutebol olha para o que aconteceu neste ano e para o que ainda está no ar num processo longe do fim.

A tensão que crescia

Era uma terça-feira e devia ser o dia em que, no meio de muita incerteza, o Sporting começava a preparar a final da Taça de Portugal. Dois dias antes, o campeonato tinha terminado com uma derrota na Madeira, em casa do Marítimo, que custou o segundo lugar do campeonato e agudizou uma situação há muito tensa.

Vinha de trás uma rutura anunciada, que já antes do ataque de Alcochete colocava em causa a direção, o futuro do treinador e a estabilidade da equipa. Em fevereiro, Bruno de Carvalho convocou uma Assembleia Geral, já no meio de muita turbulência, em que colocou o lugar à disposição. E recebeu quase 90 por cento de votos a favor da sua continuidade. Em abril, a rutura estendeu-se abertamente à equipa. Depois da derrota do Sporting em casa do At. Madrid, para a primeira mão dos quartos de final da Liga Europa, Bruno de Carvalho desferiu nas redes sociais um ataque verbal à equipa, que motivaria um inédito comunicado de reação dos jogadores. E novas reações do então presidente, a ameaçar suspensões. E reações dos adeptos no estádio, a manifestar a insatisfação com aquilo a que assistiam. Pelo meio o presidente da Assembleia Geral defendia que estavam esgotadas as condições para a direção continuar e também a SAD requeria uma Assembleia Geral.

Nisto, a equipa tinha quase todas as decisões da época para jogar. A segunda mão com o At. Madrid, que terminou com uma vitória por 1-0, ainda assim insuficiente. A meia-final da Taça de Portugal com o FC Porto, que venceu nos penáltis. E seis jornadas de Liga, quando estava a seis pontos da liderança. Venceu quatro jogos seguidos, chegou ao dérbi da penúltima jornada em igualdade com o Benfica e a quatro pontos da liderança. Empatou o dérbi e terminou a perder com o Marítimo.

Faltava a final da Taça de Portugal, numa semana que começou desde logo a prolongar incertezas, com uma reunião na segunda-feira em que para Jorge Jesus ficou claro que não iria continuar na época seguinte e que poderia ser alvo de processo disciplinar. Sem qualquer confirmação. Naquele 15 de maio, duas horas antes do treino que iria marcar o arranque da preparação para a Taça, o Sporting emitiu um comunicado a dizer que o treinador iria orientar a equipa no Jamor, sem dar mais explicações.

O treino seria à tarde - até hoje um dos pontos questionados pela investigação ao ataque a Alcochete, porque a hora da sessão, inicialmente prevista para de manhã, foi alterada. Bruno de Carvalho diz que foi o treinador a mudá-la, Jesus diz que foi o presidente. Seja como for, o treino não chegou a acontecer.

O «filme de terror» no balneário

Passavam dez minutos das 17h quando tudo começou. Eram mais de 40 indivíduos, na maioria encapuzados. Estacionaram automóveis no exterior, ameaçaram os jornalistas que estavam cá fora e invadiram a academia, sem elementos de segurança na entrada capazes de o impedir.

A descrição da reportagem da TVI sobre aqueles momentos

Correram até à zona dos balneários da equipa profissional, onde estavam jogadores, equipa técnica e o staff a preparar-se para o treino. O que se seguiu foi «um filme de terror», como descreveu Jorge Jesus e várias das pessoas que lá estavam. Os invasores atiraram tochas e petardos para o interior do balneário e forçaram a entrada. Jogadores, treinadores e membros do staff foram agredidos a soco, com cintos, com paus, foram queimados com tochas. O balneário vandalizado.

O relato das agressões e o filme daquele dia

As imagens das câmaras no interior da Academia

A imagem da cabeça de Bas Dost, atingido com um cinto

Tudo aconteceu em pouco mais de dez minutos, o tempo que passou até os agressores voltarem a sair. Para trás deixavam um rasto de destruição.

O estado em que ficou o balneário

Tinha acontecido o impensável. E nada ficaria como antes. Apesar do discurso de aparente desvalorização de Bruno de Carvalho, que se dirigiu à academia depois dos incidentes e na reação disse coisas como «foi chato», mas «o crime faz parte do dia a dia».

Ainda nesse dia foram detidas 23 pessoas. Treinadores e jogadores ficaram na academia até ao início da noite e alguns deles saíram, nas suas viaturas, para a esquadra da GNR do Montijo, onde apresentaram queixa e prestaram declarações. E, enquanto Jaime Marta Soares anunciava que iria convocar todos os órgãos sociais, em Alvalade algumas centenas de adeptos juntaram-se em vigília, contra a violência daquilo que que tinha acontecido. Treinador e jogadores só deixaram a esquadra já para lá da meia-noite. O pesadelo nunca mais acabava.

A final no Jamor

As reações de repúdio ao que tinha acontecido sucederam-se, da Federação ao Governo. Mas desde logo a intenção foi manter a final da Taça de Portugal como previsto. Os jogadores acederam. No dia seguinte ao ataque, emitiram um comunicado a dizer que, embora considerando que não tinham «condições anímicas e psicológicas para de imediato retomar a sua atividade de uma forma normal», iriam jogar a final, por «respeito a todos quantos amam e vivem o futebol». E jogaram, mas o que se viu no Jamor foi uma equipa ainda em choque. Ganhou o Desp. Aves, uma imensa festa para o vencedor, o fechar de um ciclo de pesadelo para jogadores e treinadores. Mais tarde, Jorge Jesus disse que se arrependeu de ter jogado a final.

As detenções, a acusação a Bruno de Carvalho e o longo caminho da investigação

Boa parte dos agressores de Alcochete não foi longe. No próprio dia do ataque foram detidas 23 pessoas, desde logo indiciadas por terrorismo, ameaça agravada e sequestro, que ficaram em prisão preventiva. No início de junho houve mais detenções, entre eles Fernando Mendes, ex-líder da claque Juve Leo, a que vários dos indivíduos envolvidos estavam associados e que teve o apoio do clube suspenso. Em outubro mais duas detenções, uma delas a de Bruno Jacinto, antigo Oficial de Ligação aos Adeptos. E em novembro aconteceu a detenção do próprio Bruno de Carvalho, e ainda do líder da Juve Leo, conhecido como Mustafá. O antigo presidente saiu em liberdade ao fim de quatro dias, sujeito a caução e apresentações periódicas. É indiciado pela autoria moral do ataque a Alcochete e acusado de 98 crimes. A acusação é semelhante para Mustafá e Bruno Jacinto. São ao todo 44 os arguidos, 37 dos quais se mantêm em prisão preventiva. O início da instrução do processo estava marcado para esta segunda-feira, mas foi adiado, por um dos arguidos ter pedido o afastamento do juiz responsável pelo caso, Carlos Delca. É o segundo adiamento da fase de instrução e a terceira vez que um dos arguidos tenta afastar o juiz. Ambos os pedidos anteriores foram indeferidos. O processo foi declarado como sendo de especial complexidade, o que prolongou o prazo legal para a prisão preventiva. Mas o juiz tem até 21 de setembro para elaborar a decisão instrutória e decidir se o caso segue para julgamento, caso contrário os detidos serão libertados. Ainda não há nova data para o arranque da instrução. O processo na justiça e o apuramento de responsabilidades está muito longe do fim.

As rescisões, a começar em Rui Patrício

O cenário ficou no ar logo no próprio dia do ataque. A hipótese de rescisões em massa foi ganhando solidez, reforçada também pelo comunicado dos jogadores de 16 de maio, que falava em «eventuais medidas a tomar por cada um, de acordo com os temos e prazos legais». E aconteceu mesmo. O primeiro foi Rui Patrício, logo a 1 de junho. Com o Mundial 2018 à porta, o guarda-redes e capitão de equipa apresentou a rescisão unilateral, alegando justa causa e falta de condições psicológicas para continuar. No documento dava conta de muito do que se vinha passando, incluindo as mensagens que lhe foram enviadas diretamente pelo presidente, um procedimento repetido de Bruno de Carvalho com os jogadores.

Foram mais oito os jogadores que se seguiram: Bruno Fernandes, Bas Dost, Battaglia, William Carvalho, Gelson Martins, Podence, Rúben Ribeiro e Rafael Leão. Os três primeiros acabariam por voltar atrás e ficar em Alvalade. Os outros foram mesmo embora. O Sporting contestou as rescisões e conseguiu até agora acordo em três casos, o mais recente dos quais Gelson Martins, num acordo que inclui a contratação de Luciano Vietto. Houve acordo também por William com o Betis, por 16 milhões de euros que podem chegar a 30, e por Rui Patrício com o Wolverhampton, um negócio de 18 milhões de euros. Os outros casos ainda são processos em aberto. Jorge Jesus também saiu, rescindiu por mútuo acordo. Sem nunca ter voltado a entrar na academia.

Demissões, comissões e destituição

Se em relação à equipa as dúvidas eram muitas, no que diz respeito à direção do clube a confusão foi total a partir do ataque a Alcochete. A mesa da Assembleia Geral demitiu-se em bloco dois dias depois, tal como o presidente e alguns membros do Conselho Fiscal. Enquanto Marta Soares punha em marcha o processo para a destituição de Bruno de Carvalho, o ainda presidente reclamava legitimidade e nomeava ele próprio uma «Comissão Transitória da Assembleia Geral» e uma «Comissão de Fiscalização» alternativas, sem legitimidade estatutária. E Marta Soares nomeava uma Comissão de Gestão, que tinha como principal rosto Sousa Cintra, antigo presidente do clube. Uma sucessão de bizarrias que culminou, a 23 de junho, com a realização da AG que destituiu mesmo Bruno de Carvalho, com 71.6 por cento dos votos a porem um ponto final no mandato do presidente que tinha chegado ao clube em 2013.

Estava aberto caminho a uma nova era, com eleições marcadas para o início de setembro. O primeiro a dizer-se candidato foi Frederico Varandas, ele que estava em Alcochete no dia do ataque. O até então médico da equipa principal anunciou ainda em maio que estava disponível para uma candidatura.

Da preparação da época às eleições

Foi a Comissão de Gestão que preparou a época 2018/19. Bruno de Carvalho tinha anunciado a contratação de Sinisa Mihajlovic, mas Sousa Cintra despediu o sérvio e escolheu José Peseiro como treinador. No início de julho anunciou o regresso de Bruno Fernandes, dez dias depois foi a vez de Bas Dost. O Sporting recuperava duas das referências da equipa e conseguia ainda que Battaglia voltasse atrás na decisão. Também foi buscar Nani, de volta a Alvalade pela terceira vez, além de contratar Gudelj, Renan, Diaby e Sturaro. Uma equipa feita com os jogadores que ficaram e uma série de reforços, alguns deles contratados ainda por Bruno de Carvalho, como Raphinha, Bruno Gaspar, Marcelo ou Viviano, e uma pré-época condicionada pela situação do clube e por um verão com uma sucessão interminável de ruído.

E a seguir vieram as eleições. Estavam marcadas para 8 de setembro e foram as mais concorridas de sempre. Em número de candidaturas e na afluência às urnas. João Benedito, José Maria Ricciardi, Frederico Varandas, Rui Jorge Rego, Dias Ferreira e Fernando Tavares Pereira, seis candidatos que levaram até ao fim uma campanha com ênfase na situação financeira do clube.  Votaram 22.500 adeptos, mais do que em qualquer outra eleição na história do clube, e escolheram Frederico Varandas, que recebeu 42.3 por cento dos votos.

O filme das eleições de 8 de setembro

Uma época de altos e baixos

Foi no final de outubro que Frederico Varandas tomou a primeira grande decisão desportiva do seu mandato. Depois de uma derrota com o Estoril para a segunda jornada da Taça da Liga, com a equipa no quinto lugar da Liga e a dois pontos da liderança, afastou José Peseiro. O nome do sucessor do treinador português foi uma surpresa: Marcel Keizer, holandês que orientava o Al Jazira e tinha no currículo a ligação ao Ajax, onde foi treinador da equipa principal durante meia época. Os primeiros tempos de Keizer saíram melhores que a encomenda, com sete vitórias consecutivas e um futebol que empolgava e se fazia de intensidade e golos. Começou a quebrar com a derrota em Guimarães à 14ª jornada e a partir daí o Sporting vacilou. Mas manteve-se vivo na Liga Europa e ganhou a Taça da Liga em janeiro. Uma derrota pesada no dérbi de Liga que deixa a equipa no quarto lugar, a sete pontos do terceiro e a 11 da liderança, mais outra logo a seguir na primeira mão da meia-final da Taça de Portugal, também com o Benfica, voltaram a adensar nuvens sobre a época do leão. Seguiu-se o adeus à Liga Europa com o Villarreal e novo empate para a Liga, com o Marítimo. Mas a partir daí o leão foi recuperando, assente numa época de sonho de Bruno Fernandes, e alinhou 10 vitórias seguidas, o melhor registo do clube em muito tempo. Uma série interrompida no fim de semana passado, com o empate em Tondela, que selou o terceiro lugar no campeonato. Pelo caminho deu a volta à meia-final com o Benfica e volta a jogar a final da Taça de Portugal, agora com o FC Porto.

Muitas contas para acertar

Fora de campo, ainda há muitas contas a acertar. A atual direção do Sporting fala numa herança pesada deixada por Bruno de Carvalho, assente na auditoria forense que em abril foi tornada pública, à revelia da direção. O clube concluiu novo empréstimo obrigacionista e as contas do primeiro semestre saldaram-se num resultado positivo de 6,45 milhões de euros, mas ainda com capitais próprios negativos. O presidente também não tem estado imune a contestação por parte de alguns sectores de adeptos, como ele próprio assumiu em fevereiro.

As feridas de Alcochete, que Varandas definiu como «o maior rombo financeiro e desportivo» da história do clube, ainda não fecharam.

(Artigo originalmente publicado às 23:52 de 14-05-2019)